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Do Pau-de-Arara à Burocracia: Celso Brambilla e a violência contínua do Estado brasileiro contra seus anistiados políticos

Beatriz Borges Brambilla

4 de abril de 2025
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Celso Brambilla durante Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, realizado em 2013. Foto Alesp

No último dia 31 de março, véspera do aniversário do golpe civil-empresarial-militar de 1964, Celso Giovannetti Brambilla, 74 anos, trabalhador aposentado, ex-funcionário da Mercedes-Benz, recebeu a notícia de que o Estado brasileiro decidiu, mais uma vez, violentá-lo.

Celso foi preso, torturado, perseguido e impedido de trabalhar durante os anos de chumbo da ditadura. Como tantos outros trabalhadores que ousaram sonhar com justiça social e resistiram à repressão do capital, Celso pagou caro por sua coragem: sobreviveu ao pau-de-arara, a choques, latas de tomate prensando seus membros, ao famigerado “telefone” – método de tortura com tapas nos ouvidos que o deixou surdo. Desde então, vive com dores crônicas, sequelas neurológicas, lapsos de memória e um terror psicológico que nunca cessou.

Nos anos 1990, foi anistiado oficialmente. Sua aposentadoria, conquistada sob o regime de anistiado político, nunca teve o valor ajustado como se em atividade estivesse – um direito básico, segundo os termos da própria Lei da Anistia (Lei nº 10.559/2002). Vive, desde então, com cerca de R$ 6 mil mensais (derivados não de um “favor” prestado pela anistia, mas sobretudo pelos seus anos de trabalho vividos e, posteriormente, negados pela violência da tortura; paga, hoje, aluguel, não possui patrimônio, e segue resistindo ao cotidiano com dignidade, sem luxo, mas com o peso de uma história que o país insiste em apagar.

No entanto, em 14 de março de 2025, a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania publicou a Portaria nº 469, que modifica sua aposentadoria excepcional por reparação econômica para R$ 2 mil reais mensais, sem retroativos. Uma decisão que não apenas reduz drasticamente sua renda, mas também desconsidera décadas de violações, tratamentos médicos, incapacitação laboral e sofrimento psíquico. O Estado que o torturou agora o revitimiza.

Mas esta exposição não é sobre um Celso. É sobre vários Celsos. A decisão se estende a pelo menos 81 pessoas anistiadas, até onde se sabe, até o momento. É o retorno da violência, agora manifesta na forma de decisão administrativa. Como confiar na democracia quando os instrumentos que deveriam reparar feridas profundas da ditadura, passam a produzi-las novamente?

Na mesma época em que o Brasil celebra, com estatuetas e discursos internacionais, o reconhecimento artístico de sua própria tragédia ditatorial — um Oscar, uma narrativa comovente — trabalhadores reais, com nomes e CPF, são empurrados à marginalidade. A quem serve essa justiça? Como pode um país aplaudir a memória enquanto pune os sobreviventes?

Celso não está só. Está ao lado de centenas de anistiados, militantes, operários, professores, servidores, camponeses que resistiram à máquina de moer gente do regime autoritário. Hoje, sobrevivem à máquina do esquecimento.

É hora de dizer basta. Revogar essa portaria é mais que necessário — é urgente, é justo, é o mínimo.

A democracia precisa valer para todos. Inclusive para os que a conquistaram com o próprio corpo.

Beatriz Borges Brambilla – Professora da Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Filha de Celso Brambilla

Publicado no Portal da CSP-Conlutas

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