“Desde a concepção”: como a proposta de mudança no Código Civil pode proibir totalmente aborto e acabar com fertilização in vitro

Atualmente, tramita no Senado Federal uma proposta de modificação do Código Civil brasileiro que pode trazer impactos significativos, especialmente nos direitos reprodutivos das mulheres. O projeto, que já passou pela Câmara dos Deputados, está sendo acompanhado com atenção pelos movimentos feminista e de mulheres, devido às suas implicações em temas sensíveis, como o início da personalidade civil e o aborto.
Aborto legal ameaçado
A proposta em discussão altera, entre outros pontos, o artigo 2º do Código Civil, que hoje estabelece que a personalidade jurídica de uma pessoa começa com o nascimento com vida. A mudança pretende incluir a expressão “desde a concepção”, o que, na prática, pode ser interpretado como uma forma de reconhecer direitos ao embrião desde a fecundação.
Essa alteração pode ter consequências diretas sobre os direitos reprodutivos das mulheres, visto que a mudança pode ser usada para restringir ainda mais o acesso ao aborto legal, já limitado no Brasil. Grupos contrários aos aborto podem argumentar que, se a vida começa na concepção, qualquer interrupção seria equivalente a homicídio, o que abriria caminho para revogar o direito ao aborto legal via interpretação judicial, sem precisar de nova lei e criminalizar vítimas de violência sexual e até mesmo mulheres que passarem por abortos espontâneos.
Países como El Salvador já criminalizaram abortos espontâneos por leis semelhantes – mulheres poderiam ser presas por perder uma gravidez.
Risco para reprodução assistida e pesquisas com células-tronco
Mas o risco não é somente da proibição total do aborto, mas a ameaça diz respeito inclusive à reprodução assistida e pesquisas com células tronco embrionárias. Técnicas como o da Fertilização In Vitro (FIV), poderiam ser impactadas, pois as clínicas de reprodução assistida teriam que parar de congelar embriões, tornando o tratamento mais caro e inacessível.
E uma vez que embriões não utilizados costumam ser descartados ou doados para pesquisa – algo que, com a nova lei, poderia ser considerado “assassinato”, o avanço científico poderia ser prejudicado, pois as pesquisas que utilizam embriões poderiam ser consideradas crime contra a dignidade humana.
Desde 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) garante que pesquisas com embriões inviáveis são constitucionais. Se o embrião for considerado pessoa, cientistas poderiam ser processados por “matar” células em laboratório. Isso paralisaria estudos sobre Parkinson, Alzheimer e doenças genéticas.
Direito de herança: caos jurídico à vista
Ao definir que a personalidade jurídica começa “na concepção”, a mudança no Código Civil pode ter efeitos diretos também no direito de herança, criando um imbróglio jurídico sem precedentes, com tribunais inundados por ações judiciais inéditas e polêmicas, e heranças disputadas por embriões, fetos e familiares. Como por exemplo, processos exigindo o direito de embriões congelados, produto de fertilização post mortem e “nascituros” em casos de morte do pai em herdar ou batalhas judiciais em situações de aborto espontâneo ou legal.
Atualmente, só quem nasce com vida tem direitos sucessórios, se a lei passar a considerar o embrião como pessoa desde a concepção, filhos ainda não nascidos, inclusive nos casos de aborto espontâneo, embriões congelados em clínicas de fertilização e produtos fertilização post mortem, poderiam ser incluídos em heranças, o que abriria espaço para disputas judiciais entre familiares e até mesmo clínicas de reprodução assistida.
Além disso, com o feto podendo ser considerado herdeiro imediatamente após a concepção, um homem que morrer e deixar uma mulher grávida, mesmo que a gestação não chegue a termo, dará o direito de reivindicar parte da herança. Em casos de aborto legal, familiares contrários à interrupção poderiam processar a mulher por “exclusão de herdeiro”.
Como essa proposta chegou ao Senado?
O projeto foi inicialmente apresentado na Câmara dos Deputados, onde foi aprovado com amplo apoio da bancada evangélica e de setores da extrema direita, que historicamente defendem pautas conservadoras relacionadas a gênero e reprodução.
A proposta segue agora em análise no Senado, onde foi escolhido para relator o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), conhecido por suas posições conservadoras e alinhamento com grupos antiaborto. Suas principais ações no Congresso incluem o PL 5.276/2020, proibindo o aborto em qualquer situação, mesmo em casos de estupro; o PL 3.942/2021, que obrigava a notificação policial em casos de aborto legal e o PL 4.539/2021, que buscava retirar o aborto legal do SUS em casos de anencefalia.
Girão também é aliado de grupos fundamentalistas, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e a bancada evangélica, e já declarou que “o aborto é um holocausto”.
Extrema direita e o governo Lula
A proposta é fortemente defendida por setores da extrema direita e por grupos religiosos, que enxergam nela uma forma de avançar sua agenda contra o aborto e os direitos das mulheres. Organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL) e parlamentares ligados ao bolsonarismo têm pressionado pela aprovação da mudança, utilizando-a como bandeira eleitoral e moralista.
Com relação à base governista, parte dos parlamentares aliados ao governo Lula (PT) no Senado hesitam em se posicionar contra o projeto, temendo desgaste político com grupos religiosos.
O Governo Federal, por meio do Ministério das Mulheres e da Secretaria de Direitos Humanos, manifestou preocupação com os impactos da proposta, mas até o momento não adotou uma postura firme de oposição. A ex-ministra Cida Gonçalves chegou a afirmar que a mudança poderia “representar um retrocesso nos direitos das mulheres”, mas o Planalto não definiu nenhuma estratégia para barrar a votação, demonstrando mais uma vez sua omissão em relação à pauta das mulheres e um silêncio pode significar um custo alto para os direitos reprodutivos.
Nenhum direito a menos
Se aprovada, a alteração no Código Civil pode abrir precedentes para criminalizar ainda mais o aborto e limitar avanços científicos, fazendo o Brasil retroceder décadas em direitos das mulheres e ciência. A pressão de grupos conservadores e a falta de uma posição firme do governo e da base aliada no Senado aumentam os riscos de que a proposta avance. Cabe aos movimentos sociais e de mulheres e as organizações da classe trabalhadora se mobilizarem para evitar que essa mudança se concretize e garantir a proteção dos direitos reprodutivos das mulheres. A hora de agir é agora!