É preciso repudiar a resolução transfóbica apresentada pelo Conselho Federal de Medicina
O CFM quer impedir o acesso de adolescentes transexuais a tratamentos de bloqueio de puberdade. Entenda o que está em jogo

No dia 8 de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução que, alterando o protocolo estabelecido desde 2020, proíbe o bloqueio hormonal (tratamento que reduz os níveis de hormônios no corpo e adia as mudanças físicas da puberdade, como desenvolvimento de mamas, pêlos etc.) para adolescentes transgêneros, aumentando a idade mínima de 16 para 18 anos.
A nova resolução também proíbe a realização de cirurgias de apoio à transição que tenham “efeito esterilizador” (ou seja, que afetem a capacidade reprodutiva, como a remoção de útero e ovários), aumentando a idade mínima, para este tipo de procedimento, de 18 para 21 anos.
Pessoas cisgêneras (aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer) que necessitam de hormonização não foram afetadas. Poderão fazer uso de bloqueadores hormonais em casos de puberdade precoce ou outras doenças endócrinas (que afetam a produção ou regulação de hormônios). Trata-se, portanto, de uma norma de proibição exclusiva para pessoas que queiram fazer a transição de gênero.
Leia também
Justificativas do Conselho Federal de Medicina
Para justificar a orientação de aumento da idade mínima de 18 para 21 anos para cirurgias de redesignação sexual, o CFM alega que está seguindo a legislação vigente, que reduziu a idade para procedimentos esterilizadores de 25 para 21. O Conselho mudou seu critério, desconsiderando os critérios científicos adotados pela Medicina e, também, a idade para o consentimento e autodeterminação; utilizando um critério jurídico.
Já a justificativa para aumentar a idade de 16 para 18 anos no emprego de hormônios está baseada exclusivamente na legislação do Reino Unido, como veremos abaixo. Em suma, não segue o consenso científico mundial sobre o tema; mas, sim, se baseia em um caso extremamente particular, criticado pela comunidade médica, inclusive dentro do país onde a regulamentação foi criada.
O relatório Cass
A pediatra doutora Hilary Cass foi a responsável pelo chamado “Relatório Cass”, um estudo independente emitido em abril de 2024. Nas 388 páginas do texto, ela examina a realidade do Reino Unido, especificamente, não do Brasil ou do mundo.
Em entrevista ao canal do YouTube do “British Journal of Medicine” (“Jornal Britânico de Medicina”), a médica demonstra ter uma preocupação com o tratamento dado a adolescentes trans, em especial nas clínicas de disforia de gênero (definido, nos manuais de Medicina, como o desconforto ou sofrimento em relação à incongruência entre a identidade de gênero e o sexo atribuído ao nascimento – leia mais abaixo), que, na prática, acabam sendo o primeiro destino dessas pessoas.
Dentre os problemas listados, a doutora cita as longas filas de espera, que atrasam o início do tratamento quando necessário; a falta de equipes multidisciplinares, o que impede uma análise multifacetada dos pacientes e induz a um tratamento padronizado e não específico para cada caso; a falta de informação, tanto da população quanto dos médicos, que cria expectativas irrealistas sobre o papel da hormonização; a falta de compartilhamento de dados entre essas clínicas e as que tratam de reversão do processo, nos casos em que isso acontece.
Contudo, mesmo que estas sejam questões reais, nada disso está colocado na realidade brasileira, nem diz respeito a efeitos colaterais específicos em adolescentes desses medicamentos.
Disforia de gênero
Disforia é um termo da psicologia que designa um estado emocional de mal-estar, insatisfação, tristeza ou irritabilidade. Disforia de gênero é quando esse estado é disparado por alguma característica da pessoa que não está em conformidade com o gênero com o qual ela se identifica e deseja expressar. Algo que pode se manifestar em relação à uma característica do próprio corpo, nas roupas, no modo de falar ou comportamento, ou mesmo como as demais pessoas a tratam.
Isso ocorre tanto com pessoas cisgêneras quanto transgêneras, porque o gênero consiste de uma série de normas sociais, que podem ou não ser idênticas às características biológicas de cada indivíduo. Por exemplo, o padrão de beleza para homens, como altos e musculosos, induz homens cis a fazerem cirurgias para crescimento ou tomar anabolizantes para ampliar os resultados na musculação. Nos casos de pessoas cis, mesmo com riscos de efeitos colaterais, é naturalizado o emprego de medidas médicas que visam amenizar a disforia de gênero.
No caso de pessoas trans, a disforia também é bastante discutida. É verdade que nem sempre ela exige intervenção de procedimentos cirúrgicos ou farmacológicos; mas, nos casos em que isso se faz necessário, é preciso acompanhamento médico e acesso. Caso contrário, a medida se transforma em uma política que visa combater uma identidade específica na sociedade. E é exatamente isto que está por trás da resolução da CFM.
Adolescentes trans
A adolescência é um período de autodescoberta para todas as pessoas. Estudos comprovam que, entre os sete e 19 anos, o desenvolvimento do cortex pré-frontal do cérebro já apresenta um desenvolvimento avançado, que só é concluído por volta dos 25 anos de idade. Essa área é a responsável, dentre outras coisas, pela tomada de decisões, planejamento, controle de impulsos, compreensão social, memória de trabalho, regulação emocional.
Também é nesta fase que a pessoa começa a desenvolver sua personalidade, sua identidade, a compreensão de si perante o mundo. Por isso mesmo, é quando iniciamos os questionamentos dos papeis sociais, estilos, crenças e grupos; quando começamos as buscas por novas experiências e o desenvolvimento de valores e preferências.
Ou seja, é um momento no qual a influência sobre a identidade não se dá mais através da hegemonia do núcleo familiar, mas também passam a pesar o papel das amizades, da escola, das redes sociais, da mídia, da cultura da sociedade e até eventos marcantes (bons ou ruins).
A partir dos 12 anos, tem início a puberdade, com a ação de hormônios sexuais, responsáveis pelas características sexuais secundárias. Essas são percebidas pela localização de deposição de gordura pelo corpo, alterações nos genitais, surgimento de pelos, alterações na voz, desenvolvimento muscular etc. Esse desenvolvimento pode trazer disforia de gênero tanto para pessoas cis quanto trans, justamente pelo descompasso entre a natureza dos corpos e as normas de gênero.
Consequências da proibição
O estabelecimento de 16 anos como idade mínima para início da transição hormonal respeita o fato de que, nesta idade, a pessoa já tenha tido alguma experiência com essas mudanças e, assim, consiga perceber se está desenvolvendo, ou não, alguma disforia. De qualquer forma, a permissão do bloqueio hormonal, nesta idade, como estabelecido pelo protocolo em vigor até a nova resolução do CFM, é bastante importante, pois permite que a pessoa “ganhe tempo” para uma decisão, já que impede o desenvolvimento das características de gênero com as quais ela não se identifica.
Em outras palavras, ao adiar esse tipo de tratamento, o CFM está negando o direito de que a pessoa ganhe tempo para poder decidir com melhor compreensão sobre seu próprio corpo. A consequência disso é o aprofundamento do sofrimento dessas pessoas, o que as induz a tomar medidas mais radicais e impulsivas, como o uso de hormônios sem prescrição ou acompanhamento médico, injeções de silicone industrial, cirurgias em clínicas clandestinas etc. Aliás, diga-se de passagem, como sempre foi na história com as proibições.
Conservadorismo no CFM e silêncio cúmplice do Governo Federal
A resolução do CFM não tem nenhum respaldo científico nos estudos médicos. Trata-se simplesmente de tutela sobre corpos trans, em especial sobre adolescentes. Essa é uma agenda política da extrema direita em nível global, em especial com a eleição de Trump, que, mal assumiu o governo, assinou um decreto afirmando que o Estado norte-americano somente reconhecerá os gêneros feminino e masculino. Um absurdo seguido do desmonte das políticas de promoção de diversidade e inclusão em várias áreas e instituições.
Mas, o conservadorismo do CFM não para por aí. Em abril de 2024, uma resolução da entidade proibiu médicos de realizar assistolia fetal (procedimento abortivo que consiste em interromper os batimentos cardíacos do feto) a partir de 22 semanas, o que dificulta o acesso ao aborto legal e seguro, mesmo para casos previstos em lei, como o de vítimas de violência sexual.
Como também vale lembrar que, em outra resolução, durante a pandemia, o Conselho deu autonomia aos médicos para receitar o “kit covid”, com cloroquina e ivermectina, que tinham ineficácia comprovada contra o coronavírus e diversos riscos de efeitos colaterais.
O que fica evidente em todos esses casos é que o CFM não tem compromisso nem com a legislação nem com o conhecimento científico e muito menos com a saúde. Sua prioridade é apenas com a agenda política dos conservadores, o que os caracteriza como uma entidade aparelhada politicamente.
A eleição do ano passado de representantes estaduais para o CFM contou com o apoio de políticos bolsonaristas, como Nikolas Ferreira, Carla Zambelli e Marcelo Queiroga, ministro durante a pandemia. Além disso, os dois últimos presidentes do CFM são bolsonaristas declarados, sendo que o atual, José Hiram Silva Gallo, chegou a participar de uma sessão no Senado onde defendeu o chamado “PL do Estupro” (que pune pessoas que tenham realizado aborto com pena de prisão), apresentando argumentos que não têm qualquer base científica e são rebatidos por médicos mundo afora.
Em meio a esse cenário, em que a direita faz tudo o que está a seu alcance para atacar a população trans; aqueles que se dizem nossos aliados e estão em posições de poder, se quisessem, poderiam tomar medidas de proteção a essas pessoas. Mas infelizmente não é o que vemos.
O governo Lula tem sido completamente omisso diante desses ataques. É a única coisa que explica, por exemplo, que o Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (Paes Pop Trans), apresentado em dezembro de 2024, com uma série de medidas e recomendações para o o acompanhamento da população trans em todo o ciclo de vida, incluindo a garantia de cuidado a sua rede de apoio, esteja parado em alguma gaveta do Planalto há mais de três meses.
Não se calar diante dos ataques
Diante de tudo isto, é importante, em primeiro lugar, denunciar os ataques, tanto os que ocorrem no Brasil quanto no exterior. Denúncias que devem ser encampadas por todos os setores da sociedade que defendam as liberdades democráticas e os direitos humanos; mas, de forma muito enfática e especial, pelas entidades e movimentos que representam os trabalhadores e trabalhadoras, até mesmo porque, nós pessoas transgêneros, somos parte integrante da classe trabalhadora.
Por isso mesmo, é fundamental que este debate seja levado para o interior dos sindicatos, das entidades estudantis e os movimentos sociais e populares para que, juntos, possamos lutar por uma sociedade onde as pessoas trans não só tenham o direito de existir, mas também tenham pleno acesso aos serviços públicos, a começar pelos de Saúde, que lhes garantam uma vida e plena.
Algo que, temos certeza, só será possível numa sociedade socialista, onde a classe trabalhadora, com toda sua diversidade, controle os meios de produção e, consequentemente, também decida os rumos das pesquisas, da medicina, dos serviços de saúde etc.