A vida em plástico, agora com nova embalagem
A tendência dos bonecos IA é só diversão ou espelho de um mundo que transforma gente em mercadoria?

A rapidez com que uma trend se espalha na internet pode ser explicada por muitos motivos. Um deles, com certeza, é a capacidade de ecoar concepções que já existiam antes — mesmo que sem uma forma muito bem definida.
Veja, esse é o império da internet, ou pelo menos das redes sociais. O impulso para o compartilhamento está muito mais na identificação do que na racionalidade. Compartilhamos um vídeo de um influencer porque ele “disse aquilo que eu gostaria de ter dito”. Pouco importa se a opinião é razoável ou não. E assim, compartilhamos compulsivamente memes, fake news e meias-informações pelo simples fato de que é isso que queremos dizer — independente de estar certo ou não.
Ninguém nas redes sociais passou imune aos desenhos no estilo do Estúdio Ghibli — seja aderindo, seja criticando. Quando algo encontra eco nas ideias correntes, se espalha feito rastilho de pólvora. E, sendo as ideias dominantes as ideias da classe dominante, não me parece exagero dizer que trends de internet, em algum nível, materializam aspectos ideológicos da nossa sociedade.
Na última semana, a trend da vez foi a de se transformar em action figures — bonequinhos de plástico e seus acessórios. Os estilos variam entre Barbies, Comandos em Ação e Funkos, mas a ideia é sempre a mesma: se eu — ou minha profissão — fosse um souvenir, como seria essa síntese caricatural? Você provavelmente viu alguma marca, atleta ou político entrando nessa. Tenho certeza.
Qual é… a grande maioria de nós brincou com algum tipo de boneco quando era criança. Sem medo de entregar a idade, como diz a música Barbie Girl, do grupo Aqua: “Life in plastic, it’s fantastic” [A vida em plástico, isso é fantástico].
Esse pode, sim, ter sido um bom motivo para tantas pessoas aderirem à trend. Mas não deixa de ser curioso o fato de que, com tamanha facilidade, nos submetemos a uma máquina (uma inteligência artificial) para nos transformarmos em um boneco inanimado e plástico, à espera de alguém que nos adquira como mercadoria e determine nossas atividades — até se cansar e nos descartar.
E, aqui, qualquer semelhança com o mercado de trabalho não é mera coincidência.
Marx dizia que, sob o capitalismo, a universalização da forma-mercadoria e a mediação pelo dinheiro criam uma espécie de véu ideológico que não nos permite compreender a fundo — e de imediato — as relações por trás das coisas. O dinheiro aparece como origem da riqueza, e não o contrário. E uma espécie de fantasmagoria vai tomando conta de tudo: as mercadorias inanimadas parecem ganhar vida e vontade própria, enquanto nós, sujeitos da produção, somos reduzidos a mercadorias — usados como meras ferramentas anexas às máquinas da produção fabril. A alienação é esse processo de estranhamento e inversão.
Se você acha que estou exagerando, basta uma passada rápida pelo LinkedIn para constatar a tendência geral: marcas cada vez mais se humanizam, enquanto trabalhadores cada vez mais precisam se gerir como marcas próprias.
Pode reparar. Grandes empresas investem pesado em mascotes — vide a Lu da Magalu —, brand persona, tom de voz, relacionamento etc. São milhões e milhões investidos anualmente para humanizar CNPJs. Enquanto isso, nós, humanos, somos empurrados para a pejotização: empresas privadas de uma pessoa só (MEIs), orgulho do capital ao anunciar recordes de novos empreendimentos e “empreendedores”. Tudo não passa de trabalho precarizado e alienação.
Num mundo que nos reduz a mercadorias na prateleira, virar boneco de plástico vira trend, e a busca por identidade está em anunciar: “agora, com nova embalagem”. E o que nos resta é torcer para que isso dure até a trend da semana seguinte. Pode até ser divertido, mas não deixa de ser perverso. E se isso nos empurra para uma epidemia de doenças mentais e solidão, é problema da OMS.
Esse é o sintoma ideológico por trás da trend dos bonecos — que, ao mesmo tempo, não explica o fenômeno da alienação, mas o retrata terrivelmente bem.
A propósito: já ouviu falar das crianças no TikTok que odeiam o CLT?