Internacional

Quem foi o papa Francisco?

Marcel Wando, de São Paulo

29 de abril de 2025
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Papa Francisco Foto Catholic Church (England and Wales)

No dia 21 de abril de 2025, morreu Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco I, aos 88 anos, vítima de um AVC. Ele estava já com a saúde debilitada, incluindo um quadro de pneumonia, e faleceu no quarto 201 da casa Santa Marta onde residia, uma vez que se recusava a viver no Palácio Apostólico, nos apartamentos papais. Esse gesto simbólico representa a trajetória de Francisco, que assumiu o cargo em 13 de março de 2013, após a renúncia de Joseph Aloisius Ratzinger, o Bento XVI.

A mudança não foi só de pessoas que ocupavam o cargo, mas também de discursos e de trajetória da igreja, que sofria pressões por uma “modernização”, especialmente com o ascenso da luta de classes vivido no mundo entre 2009 até, ao menos, 2013. A escolha de Francisco foi rápida: 13 dias desde a renúncia de Bento e 1 dia desde o início do conclave. Foi a resposta que a Igreja deu aos clamores populares da época e essa era a sua missão.

Francisco era, dentro da igreja, um ponto de inflexão, uma contradição interna. O capitão de um navio de cruzeiro que decidiu virar o leme e que, vagarosamente, mudava a sua direção. Ao menos era essa a imagem que ele queria passar. É considerado por muitos como um progressista, ao menos para os padrões da alta hierarquia da igreja católica. Isso é reforçado pelas lágrimas sinceras dos ativistas de todo o mundo, as lágrimas oportunistas dos falsos aliados da esquerda reformista e as lágrimas de felicidade dos inimigos declarados da extrema-direita.

Não há o que recriminar na tristeza da pessoa comum que via a figura do Papa Francisco como um alento de esperança diante o desespero da vida dentro de um mundo desgovernado pelo Capital. Como dizia Marx “a religião é o ópio do povo”, empregado não no sentido moralista de hoje, da guerra contra as drogas, mas no sentido de que, à época, o ópio era um dos mais caros anestésicos, inacessível ao povo.

Por isso vemos que não são só os 1,4 bilhões de católicos que lamentam, mas um oceano de pessoas que sentiam nas falas do pontífice um calor espiritual em meio à gélida situação que vivemos.

A promessa do paraíso e da paz por uma autoridade tem sua importância, já que tantas outras só conseguem prometer guerras, catástrofe climática, desemprego, austeridade, deportação, prisões e violência policial. Mas, na verdade, essa tristeza é uma demonstração de como teve impacto na realidade uma política de conciliação de classes implementado inteligentemente pela hierarquia de uma instituição tão reacionária como a Igreja Católica.

Para entender como o papa conseguiu construir essa imagem e se ela condiz com o papel real da igreja no mundo hoje, é preciso entender as posturas do papa e as políticas da Igreja católica.

A imagem de Papa dos Pobres

A escolha por morar na casa Santa Marta e não no Palácio Oficial, as vestes papais mais modestas, a infinidade de pedidos de desculpas, até os menores gestos eram milimetricamente calculados para transmitir a ideia de modéstia. Claro, era necessário fazê-lo, mas se fosse apenas isso, certamente não seria o suficiente. Como, então, o Papa Francisco conseguiu reverter parcialmente a crise de imagem da igreja católica, marcada pelo conservadorismo, corrupção e escândalos de pedofilia? Vamos manter apenas 3 exemplos.

Quando o Papa questionou “Se uma pessoa é gay e busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, foi um escândalo. A igreja responsável por vários casos de “cura gay”, que seguem sendo praticadas até hoje na Itália; a igreja cujo livro sagrado determina que somente é permitido o matrimônio entre homem e mulher, sendo que o amor entre pessoas do mesmo gênero é considerado uma “abominação”; a igreja que se recusa a celebrar rituais de casamento para os LGBTs.

Isso chega aos ouvidos da vanguarda de luta contra a opressão como se o papa fosse um aliado que batalha internamente para avançar para a implantação de políticas de inclusão na igreja. Contudo, a igreja não vai julgar os gays, mas pode ser como os protestantes dizem “odiar o pecado, e não o pecador”, ou seja, que eles serão aceitos na medida que renunciem às suas práticas. Em janeiro de 2023, Francisco se referiu às relações homoafetivas: “Não é crime, mas é pecado”, expressando a continuidade da mesma rejeição

Em dezembro de 2022, durante o primeiro ano da invasão da Rússia à Ucrânia, o pontífice chorou ao falar do sofrimento dos ucranianos, afirmando que foram martirizados. Em sua última mensagem aos fiéis, no domingo de Páscoa, proferido pelo arcebispo Diego Ravelli, afirmou “Que Cristo ressuscitado conceda à Ucrânia, devastada pela guerra, o seu dom pascal da paz e encoraje todas as partes envolvidas a prosseguirem os esforços para alcançar uma paz justa e duradoura”. Ao afirmar que as partes devem “se esforçar”, sugerem que os ucranianos têm parte de culpa no processo, igualando os agressores russos e os agredidos ucranianos.

Ainda no discurso de Páscoa, afirma que “o meu pensamento dirige-se ao povo, em particular, à comunidade cristã de Gaza, onde o terrível conflito continua a gerar morte e destruição e a provocar uma situação humanitária dramática e ignóbil”. Isso é interpretado como um símbolo de aliança com o povo palestino, o que fez com que milhares de ativistas da resistência chorasse a sua morte. Mas, no mesmo discurso o Papa afirmou que defende os israelitas e a libertação dos prisioneiros, colocando no mesmo nível os genocidas sionistas e os que lutam contra o genocídio.

Essas mensagens de duplo sentido são construídas sob medida para ser ouvidas de um jeito pela vanguarda das lutas, e de outra forma pelos setores mais conservadores da igreja, acomodando os interesses de modo a ganhar a simpatia de ativistas, mas mantendo as políticas conservadoras da hierarquia da igreja católica.

Esse método é utilizado para os principais temas da luta de classes, desde as revoluções democráticas no Mundo Árabe, à resistência contra a pandemia de Covid-19, à catástrofe climática que vivemos. Discursos lapidados sob medida para atrair o apoio dos ativistas sem romper com os interesses da burguesia. Essa é a tradicional política de conciliação de classes, a busca da “paz”, sem enfrentar a dominação burguesa e imperialista.

Mas na luta de classes, desde o ângulo do proletariado é preciso lutar contra a burguesia. Ter nítido quais são os inimigos reais é fundamental nessa luta, e a ideologia da conciliação de classes, conscientemente, não define os inimigos do proletariado, como a burguesia e o imperialismo. E essa luta inclui, quando é necessária, a violência contra os opressores, contra a dominação burguesa. A ideologia amplamente difundida pelo Papa Francisco era, antes que nada, “contra a violência”, “pela paz”, igualando explorados e exploradores. Em essência  a da manutenção do status quo da burguesia.

O Bergoglio do velho testamento

Mas a trajetória de Jorge Mário não se inicia como Papa. O Papa argentino tinha certa experiência de “trabalho de campo” em comunidades pobres e boa aproximação com as massas, o que a Igreja católica orientava em sua “Renovação Carismática”. Essa era uma política da igreja da década de 1960 que respondia ao ascenso revolucionário em todo o mundo após o fim da segunda guerra mundial. Entre outras coisas, as missas começaram a ser rezadas no idioma nativo de cada país (antes era só em Latim), com os padres olhando para o público, e não ficando de costas para ele, além da aproximação com os setores mais pobres.

Essa política da igreja gerou como subproduto a “teologia da libertação”, que levou a vários membros da igreja a atuar como militantes contra as ditaduras da América Latina, inclusive entre os jesuítas. Isso gerou uma certa “fama” nessa congregação como sendo “de esquerda”, ainda que o seu histórico deponha contra isso. O fato de Bergoglio ser um jesuíta, o primeiro Papa a sê-lo, reforçou essa imagem.

Mas, na verdade, Francisco sempre esteve ligado às correntes de direita da ditadura peronista. Inclusive é acusado por grupos de defesa dos direitos humanos, como as Mães da Praça de Maio e o Centro de Estudos Legais e Sociais de não ter defendido dois sacerdotes jesuítas detidos e torturados durante a última ditadura militar argentina. Ele foi parte muito importante da hierarquia da igreja católica argentina que apoiou a ditadura militar nesse país, uma das mais violentas e assassinas da história latino americana.

Além disso, ainda promoveu passeatas contra o casamento de homossexuais na Argentina (conquistado somente em 2010), e fez duras campanhas contra o direito ao aborto das mulheres no país (conquistado em 2020).

Bergoglio pode ter encontrado sua redenção com Francisco perante a opinião pública, mas “a justiça se faz não pelo esquecimento, mas pela memória”, como foi escrito no prólogo do relatório Nunca Más, elaborado pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), responsável por investigar as violações de direitos humanos cometidos pelo regime militar da Argentina. Então, isso não pode ser esquecido.

A verdade é que o Papa Francisco defende, antes de tudo, os interesses da Igreja Católica. Ele não chegou a Cardeal sendo contrário aos Papas conservadores que o antecederam, mas por ser de sua confiança. Assim como os 138 cardeais que hoje disputam a vaga (sendo 110 indicados por Bergoglio) também defenderão os mesmos interesses. Mesmo que tenham maior diversidade, seja de país de origem, seja de pensamento, o Papa é, antes de tudo, um monarca chefe de Estado, que responde às necessidades capitalistas de seu país e dos países onde participa da vida política.

Vivemos sob um sistema que marcha de forma acelerada rumo à barbárie engendrada pelas elites financeiras e políticas da burguesia. Respeitamos os lamentos honestos de ativistas diante da morte do papa. Somos marxistas e militantes da revolução socialista. Por isso queremos contrapor as ilusões geradas pela política de conciliação de classes do papa com a realidade da exploração e opressão da burguesia. E queremos também lembrar da trajetória passada de Bergoglio no apoio a ditadura argentina e sua campanha contra o casamento gay e contra o direito ao aborto na Argentina para expor suas verdadeiras posições.

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