LGBT

“A estrutura do Estado está sendo usada para me punir injustamente, e quem cometeu essas ações segue impune”

Confira entrevista com a Major Lumen Lohn Freitas, a primeira oficial transgênero da Polícia Militar de Santa Catarina, aposentada de forma compulsória

Ray Maria, de Florianópolis (SC)

7 de maio de 2025
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Major Lumen, à esquerda, e Ray Maria

Em matéria recente do Opinião Socialista, relatamos sobre como o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), assinou a transferência da major Lumen Lohn Freitas – primeira oficial transgênero da Polícia Militar de Santa Catarina – para a reserva remunerada de forma compulsória, alegando “não habilitação para o acesso em caráter definitivo”.

Diante disso, o Coletivo Rebeldia e o PSTU entraram em contato com Lumen, que aceitou conceder uma entrevista. A conversa foi conduzida e documentada pela militante Ray Maria.

Ray: Pode se apresentar aos nossos leitores?

Lumen: Oi, sou Lumen Freitas.

Ray: Estamos aqui para falar da experiência dela enquanto uma travesti que, até há pouco tempo, estava trabalhando na Polícia Militar e que sofreu esse processo de aposentadoria compulsória. Estamos aqui para fazer algumas perguntas e saber melhor dessa situação, que é absurda por si só. Primeiramente, como você está?

Lumen: Então, eu estou me recuperando ainda do baque da decisão. Embora o processo já esteja correndo faz mais de 2 anos, eu tinha esperança de que alguém no meio do decorrer do processo percebesse a real razão e tomasse uma atitude diferente, mas infelizmente não foi o que aconteceu. Agora estou buscando as minhas outras alternativas e ver o que que a gente consegue resolver do problema.

Entendi. Eu gostaria de perguntar como foi o seu processo de transição de gênero nesse contexto de trabalhar para a Polícia Militar, que eu acredito que, bem, quando a gente vai comparar com outras experiências de transição de gênero é um tanto incomum uma pessoa trabalhar na Polícia Militar e transicionar. Como é esse processo?

Me reconheci como uma pessoa trans em agosto de 2022 e, a partir daí, iniciei minha transição. Avisei primeiro a minha família e colegas, deixando a polícia por último por saber que seria o maior desafio. Fiz uma reunião no trabalho, expliquei minha transição, pedi para ser chamada de Lumen e tratada no feminino, e tudo correu bem. Tive que me impor em alguns momentos, especialmente enquanto a polícia ainda não havia reconhecido oficialmente minha mudança de gênero. Mesmo assim, o processo foi tratado de forma cidadã e humanizada, talvez por eu atuar na diretoria de saúde, onde o ambiente é mais acolhedor.

A próxima pergunta seria em relação à dinâmica de suas relações afetivas e profissionais. Como isso mudou na transição?

O processo foi difícil, mas tive muito apoio, especialmente da minha esposa. Já morávamos juntas antes da transição, e ela foi a primeira pessoa para quem contei. Depois do choque inicial, ela me acolheu com muito carinho, e até nos casamos após a transição. Meus filhos também me apoiaram, principalmente minha filha mais velha. Algumas amizades se perderam, não por ofensas, mas porque algumas pessoas simplesmente se afastaram.

No trabalho, embora eu não tenha enfrentado confrontos diretos na polícia, senti meu espaço diminuir. Fui afastada de funções importantes e colocada em tarefas secundárias, sempre com algum impedimento para que eu não aparecesse em público.

Existem mais policiais trans em Santa Catarina ou além do estado que você conheça, tenha contato? Se sim, como seria a experiência dessas pessoas, se você sabe da experiência delas?

Na estrutura da polícia, há divisão entre oficiais e praças, e dentro do meu quadro, sou a primeira policial trans. Antes de mim, havia outra colega trans, que era praça no norte do estado. Conversei muito com ela no início da minha transição, e sei que o processo dela foi ainda mais difícil — na época, não havia retificação de nome em cartório, e ela teve que fazer tudo judicialmente. A polícia levou quase dois anos para atualizar seus dados, só o fazendo após pressão da imprensa. Também conheço a Páris Borges, da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina, que enfrentou forte perseguição, sendo colocada em funções onde sua identidade de gênero era usada contra ela, como por exemplo, atender o telefone. 

Agora eu gostaria de saber como é que foi todo o processo da aposentadoria compulsória. Como é que você se sentiu durante isso, como é que isso começou?

Iniciei minha transição em novembro de 2022, de forma pública e transparente. Embora a PM diga que o processo contra mim não teve relação com isso, nunca apresentaram uma justificativa real — usaram como pretexto o fato de eu não ter sido promovida, o que parece apenas uma desculpa legal. Em 2023 e 2024, o processo foi julgado por um conselho formado por três oficiais homens cis, que decidiram pela minha aposentadoria compulsória com base em uma licença médica regular e validada, alegando “inconstância laboral” e “questões comportamentais” que nunca foram especificadas. Para mim, é evidente que foi um julgamento moral motivado por preconceito.

Eu queria continuar na função até o fim da carreira, mas mesmo que isso seja revertido, o dano já está feito. Me sinto tratada como alguém descartável, e todo esse processo revela uma tentativa clara de me excluir. O mais grave é que tudo isso passou por várias instâncias — incluindo a Procuradoria e o governador — sem que ninguém questionasse. A estrutura do Estado está sendo usada para me punir injustamente, e quem cometeu essas ações segue impune.

Pelas matérias que eu li sobre a tua situação, falou que você é TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e TAB (Transtorno Afetivo Bipolar). Como é o tratamento que os policiais neurotípicos têm com outros policiais que têm esses transtornos?

Na minha vivência, a polícia trata transtornos mentais com preconceito. Qualquer policial que apresente um quadro de ansiedade ou depressão, mesmo que passageiro, é visto como fraco e inadequado para o trabalho. Enquanto há adaptações para quem tem problemas físicos, o mesmo cuidado não existe quando a questão é psicológica. Quem se afasta por motivos emocionais volta sendo punido — com mudanças de escala, transferências ou funções piores — como se o sofrimento fosse uma falha pessoal e não um problema de saúde.

Eu convivo com transtorno bipolar e TDAH, faço tratamento contínuo e estou estável há cinco anos, mesmo tendo passado por uma transição de gênero nesse período. Trabalhei por 25 anos sem crises, o que mostra que é possível ser funcional e produtiva mesmo com esses diagnósticos. Ainda assim, quem revela qualquer transtorno mental na polícia é imediatamente rotulado. E o mais alarmante é que, segundo dados oficiais, hoje é mais provável que um policial militar morra por suicídio do que em uma ocorrência — mas isso continua sendo ignorado.

Tendo trabalhado na Polícia Militar, o que você acha que precisa mudar referente ao tratamento com pessoas LGBTQIA +, de fora e de dentro?

Vejo que um dos grandes problemas da atuação policial hoje é essa lógica de que existe um inimigo a ser combatido. Por isso a polícia acaba sendo violenta, letal, agressiva — porque deixa de enxergar as pessoas abordadas como cidadãos com direitos e passa a tratá-las como inimigos. Isso precisa mudar. A polícia deveria ter uma postura mediadora, como determina a Constituição, mas o que se valoriza ainda é a repressão. Quando uma ação chega ao ponto da repressão, o certo seria perguntar: “onde foi que a gente falhou antes?” O foco deveria ser evitar que a situação chegue nesse ponto.

Essa mudança passa também por treinamento e conscientização. Mesmo depois do meu caso ter ganhado visibilidade dentro da corporação, muitos ainda não entendem o que é uma pessoa trans, uma pessoa gay, uma lésbica — e intersexo, então, nem entra no vocabulário. Não existe uma solução única. É um processo longo, feito de várias ações combinadas.

Você gostaria de deixar algum recado para as demais pessoas trans que podem estar lendo isso nesse momento, mais velhas ou mais novas?

Apesar de todas as dificuldades, posso afirmar que fazer a transição vale a pena. Mesmo enfrentando olhares, cochichos e perdas, minha qualidade de vida melhorou profundamente. Antes, eu vivia em conflito sem entender o motivo — hoje, mesmo com os riscos, vivo de forma verdadeira, e isso compensa tudo.

A sociedade está mudando aos poucos. Há retrocessos, mas também avanços importantes, como a lei municipal de Florianópolis que garante o uso do nome social e pune quem não respeita. Por isso, meu conselho é: não se esconda. Ser quem se é, hoje, é mais possível do que antes. Ainda há preconceito, mas já podemos existir, ocupar espaços e viver de forma mais digna — algo impensável décadas atrás. Então, vale muito a pena.

Muito obrigada, Lumen.

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