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Vale Tudo?

Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres

26 de maio de 2025
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Debora Bloch no papel de Odete Roitman no remake de “Vale Tudo” Divulgação

A nova versão da novela Vale Tudo, exibida pela TV Globo desde março de 2025, reacendeu debates intensos sobre a maternidade na sociedade brasileira. Duas cenas, em especial, provocaram repercussão nacional: a primeira, em que a personagem Lucimar (interpretada por Ingrid Gaigher) busca judicialmente a pensão alimentícia para seu filho, gerando um crescimento expressivo de quase 50% na procura por esse direito junto à Defensoria Pública de São Paulo; a segunda, protagonizada pela icônica Odete Roitman (Débora Bloch), que desabafa com o filho: “Ser mãe exige muita submissão, muita abnegação. É um pouco humilhante. Eu não nasci pra isso.”

Esses episódios ficcionais não são apenas entretenimento: condensam a experiência concreta de milhões de mulheres e revelam a essência da maternidade na sociedade capitalista, não como um direito ou uma escolha, mas como uma função compulsória, imposta sob a máscara de vocação natural e de missão divina.

Maternidade: função compulsória disfarçada de escolha

Na lógica social dominante, a maternidade é apresentada como a mais nobre das realizações femininas, algo que todas as mulheres deveriam desejar com alegria e naturalidade. No entanto, essa idealização mascara sua verdadeira função: garantir, a custo mínimo para o Estado e para o capital, a reprodução da força de trabalho.

As mulheres são responsabilizadas individualmente pela criação, cuidado e socialização das novas gerações, enquanto a sociedade, de forma deliberada, lhes nega o suporte material necessário para essa tarefa. As mães que, como Lucimar, reivindicam direitos como pensão alimentícia ou apoio público são muitas vezes vistas como interesseiras ou incapazes, enquanto as que, como Odete Roitman (ainda que na pele se uma burguesa), ousam questionar ou rejeitar o papel da mãe abnegada, são rapidamente rotuladas como frias, egoístas, más mães.

Na cena com Odete Roitman, a ideologia da abnegação materna como dimensão da opressão das mulheres fica explícita. A maternidade é apresentada como um ideal moral absoluto, no qual o amor incondicional e o sacrifício são condições indispensáveis para ser considerada uma “boa mãe”. Odete rompe com esse padrão, rejeita a ideia da abnegação e confessa não se sentir apta para o papel social que dela se espera.

Esse desabafo não é apenas um traço de personalidade, mas a expressão de uma contradição objetiva: no capitalismo, a paternidade é frequentemente dissociada do cotidiano da reprodução e do cuidado. Aos homens, mesmo quando pais, é permitido priorizar sua realização pessoal e sua inserção produtiva; às mulheres, impõe-se a tarefa da maternidade como missão central e exclusiva, relegando-as ao espaço doméstico, à invisibilidade e ao sacrifício.

A maternidade aparece, assim, como um dos principais instrumentos de perpetuação da opressão das mulheres mediante um processo social que a coloca na posição de suporte emocional e material de todos à sua volta, frequentemente em detrimento de sua própria subjetividade e autonomia. Nesse contexto, ser mãe deixa de ser escolha para tornar-se uma imposição, mantida não só através de pressões culturais, mas também por mecanismos jurídicos, institucionais e simbólicos que criminalizam qualquer tentativa de fuga dessa função.

A fala de Odete, portanto, é profundamente subversiva, ainda que apresentada como uma falha de caráter: ela denuncia a impossibilidade, para as mulheres, de serem amadas sem antes sacrificar-se e o sexismo que permite aos pais uma liberdade que às mães é sistematicamente negada.

O peso da maternidade para as mulheres trabalhadoras

No capitalismo, a maternidade é uma engrenagem invisível que ajuda a sustentar o funcionamento da sociedade: cuidar, alimentar, educar, apoiar emocionalmente e fisicamente — todas essas atividades, indispensáveis à reprodução social, são realizadas majoritariamente por mulheres, de maneira gratuita e invisibilizada.

Enquanto o sistema econômico extrai da estrutura familiar uma força de trabalho continuamente renovada, as mulheres trabalhadoras vivem sob a pressão constante de conciliar a exigência do cuidado com as demandas do trabalho produtivo assalariado. São, ao mesmo tempo, responsáveis pela manutenção da vida e submetidas à exploração econômica, carregando a dupla ou tripla jornada que destrói sua saúde física e mental.

Quando, como na cena da novela, uma mulher busca judicialmente a pensão para seu filho, não está apenas exigindo um direito, mas rompendo com o pacto silencioso que atribui exclusivamente a ela a responsabilidade pela sobrevivência e bem-estar das crianças. O enorme aumento na procura por esse direito após a cena apenas comprova o quão enraizada está essa opressão, mas também como cresce a disposição para enfrentá-la.

Dentro deste quadro, é preciso destacar também a forma como o Estado e a sociedade criminalizam, social e moralmente, as mulheres que decidem não exercer a maternidade. A criminalização do aborto transforma a interrupção voluntária da gravidez em um tabu, punindo as mulheres e reforçando a ideia de que a maternidade é uma obrigação natural e inescapável. Milhares de mulheres são forçadas a recorrer a procedimentos inseguros, colocando em risco suas vidas, enquanto são moralmente condenadas por se recusarem a assumir a maternidade compulsória.

Da mesma forma, mulheres que, por diversas razões, optam por entregar as crianças que deram à luz para adoção também enfrentam uma criminalização moral profunda. São vistas como “mães desnaturadas”, egoístas ou irresponsáveis, quando, na verdade, muitas vezes tomam essa decisão em contextos de extrema vulnerabilidade social, falta de apoio e ausência de políticas públicas que garantam condições dignas para criar uma criança. A maternidade é, assim, transformada em um imperativo inquestionável, onde qualquer tentativa de recusa ou de negociação sobre sua realização é socialmente punida.

Essa dupla criminalização — legal e moral — funciona como um mecanismo poderoso de coerção, que força as mulheres trabalhadoras a desempenharem o papel materno mesmo contra sua vontade ou em condições absolutamente adversas.

A luta pela socialização do trabalho reprodutivo

Diante disso, a crítica à opressão das mulheres não pode limitar-se às reivindicações por reformas parciais, como o aumento das creches ou programas de assistência social, ainda que tais medidas sejam importantíssimas na luta imediata e não podemos e não devemos renunciar a elas. Mas é preciso, nesse processo, atacar o fundamento material da opressão: o sistema de exploração capitalista e separação mecânica que faz entre trabalho produtivo e reprodutivo, entre esfera pública e esfera privada, entre a maternidade e a liberdade feminina.

Ser mãe não pode ser, numa sociedade emancipada, uma função compulsória, uma obrigação moral ou um fardo material. A maternidade deve ser um direito livremente exercido, sustentado coletivamente pela sociedade. Para isso, é necessária a socialização do trabalho reprodutivo: creches públicas em tempo integral e de qualidade, lavanderias coletivas, restaurantes comunitários, serviços de saúde e apoio psicológico universalizados e gratuitos. Só assim as mulheres deixarão de carregar sozinhas o peso da reprodução social.

Além disso, é preciso romper com a ideologia da abnegação materna, que associa a “boa mãe” ao sacrifício e à renúncia de si mesma. Como propõe a tradição socialista, não há emancipação feminina sem a destruição das estruturas materiais e ideológicas que sustentam a opressão.

Conclusão: entre a ficção e a luta real

As cenas da nova versão de Vale Tudo são um espelho, ainda que distorcido, da realidade vivida cotidianamente por milhões de mulheres, especialmente as mães trabalhadoras. Elas expõem, através do melodrama televisivo, as tensões, os conflitos e as dores que resultam da contradição entre a necessidade capitalista da reprodução social e a negação dos direitos e das condições para realizá-la de forma digna e livre para as mulheres trabalhadoras.

A crítica a essas expressões culturais, tem um valor profundamente pedagógico, serve como reflexão sobre a necessidade de uma transformação radical da sociedade. A emancipação das mulheres e a libertação das mães trabalhadoras só será possível com a superação do capitalismo e a construção de uma sociedade onde a reprodução da vida não seja subordinada à lógica do lucro, mas organizada coletivamente para garantir a plena realização de todas as pessoas.

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