Casal transfóbico tenta impedir mulher negra de usar o banheiro em academia onde trabalha

Kely da Silva Moraes, uma fisiculturista e personal trainer negra de 45 anos, foi impedida de utilizar o banheiro feminino na academia Selfit, localizada no bairro de Boa Viagem, Recife, no último dia 26 de maio. O incidente ocorreu após ser abordada por uma cliente que a acusou de ser “um homem”. A situação escalou quando o marido da cliente invadiu o banheiro feminino para confrontar Kely, resultando em agressões verbais e físicas tanto a ela quanto a uma aluna grávida que tentou defendê-la. O caso foi registrado na delegacia como ameaça dolosa e vias de fato dolosa.
Kely relatou que, ao sair do banheiro, foi abordada pela cliente, que afirmou que ela não poderia estar ali por ser “um homem”. A cliente insistiu que Kely deveria usar o banheiro “inclusivo” localizado no andar inferior da academia. Durante a discussão, o marido da cliente interveio de forma agressiva, bloqueando a passagem de Kely e exigindo que ela se identificasse. Kely, sentindo-se humilhada, quase mostrou sua identidade, mas decidiu que não precisava provar sua identidade de gênero.
A aluna grávida de Kely, ao tentar intervir, também foi agredida verbalmente. Ambas registraram boletim de ocorrência na delegacia de Boa Viagem. A academia Selfit emitiu nota afirmando que repudia atos de preconceito e que colaborará com as investigações.
Este episódio não é isolado; reflete um padrão crescente de violência motivada por preconceitos de gênero e raça, alimentado por discursos transfóbicos e racistas que têm ganhado força no Brasil. A agressão a Kely, uma mulher cisgênero, evidencia como a intolerância baseada em estereótipos de gênero pode afetar qualquer pessoa que não se encaixe nos padrões tradicionais de feminilidade, especialmente mulheres negras e musculosas.
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Aumento da transfobia no mundo
O caso de Kelly da Silva Moraes ocorre em um cenário alarmante de aumento da violência contra pessoas trans e contra aqueles que não se conformam com os estereótipos de gênero. Em 2024, o Brasil registrou 1.713 denúncias de violência contra pessoas trans, um aumento de 45% em relação ao ano anterior. Além disso, 105 pessoas trans foram assassinadas, mantendo o país no topo do ranking mundial de homicídios dessa população pelo 16º ano consecutivo.
A extrema direita tem desempenhado um papel significativo na propagação de discursos transfóbicos, utilizando o “pânico moral trans” como ferramenta política. No Brasil, políticos como o deputado Nikolas Ferreira têm promovido ideias que associam a existência de pessoas trans a ameaças à sociedade, contribuindo para a marginalização e violência contra essa comunidade.
A falta de políticas públicas eficazes agrava a situação. Apesar de promessas de ampliação do atendimento a pessoas trans no Sistema Único de Saúde (SUS), iniciativas como o Paes Pop Trans estão paradas há meses, deixando essa população sem acesso adequado a cuidados de saúde essenciais. O programa, lançado pelo governo Lula em dezembro de 2024, prevê investimentos de R$ 152 milhões até 2028 e a inclusão de 34 novos procedimentos no processo transexualizador do SUS. No entanto, mudanças no Ministério da Saúde e pressões políticas têm travado sua implementação.
Esse avanço da agenda anti-trans não é um fenômeno isolado no Brasil. Pelo contrário, faz parte de um movimento internacional que busca restringir direitos. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva que reconhece apenas dois sexos (masculino e feminino) como imutáveis, eliminando o reconhecimento de identidades de gênero diversas em políticas federais. Essa medida impacta documentos oficiais, serviços de saúde e a participação de pessoas trans em programas federais. Essa ordem não apenas apaga a existência de pessoas trans, mas também compromete a capacidade do governo de implementar políticas baseadas em evidências para a saúde e bem-estar da população.
Além de ações de Estados, existem ações anti-trans por parte de movimentos organizados. Na Escócia, por exemplo, o grupo For Women Scotland conseguiu uma decisão da Suprema Corte que define legalmente “mulher” com base no sexo biológico, excluindo mulheres trans de certas proteções legais. A autora J.K. Rowling apoiou financeiramente o grupo, doando £70.000 para a causa e estabelecendo o JK Rowling Women’s Fund, destinado a financiar ações legais que defendam os chamados “direitos baseados no sexo”.
Afinal, o que é gênero?
O episódio vivido por Kely da Silva Moraes não é apenas um caso isolado de ignorância ou violência cotidiana. É a expressão concreta de uma disputa política sobre o que é (e quem pode ser) reconhecido como mulher em nossa sociedade. E essa disputa está profundamente marcada por dois pilares: o pânico moral trans e o racismo estrutural.
O debate sobre gênero não é uma questão biológica. Por mais que setores conservadores tentem reduzir gênero à genitália, aos hormônios ou aos cromossomos, ninguém anda nu em público, muito menos carregando laudos laboratoriais no bolso. Portanto não é possível sermos identificados a partir desses critérios.
A percepção de gênero se dá a partir de marcadores visíveis: cabelo, roupas, maneirismos, tom de voz, formas corporais, etc. O conjunto desses marcadores (ainda que uns tenham um peso maior que outros) constituem nossa expressão de gênero. São eles que estruturam a forma como identificamos e somos identificados no cotidiano. Esses marcadores são formas sociais históricas, ou seja, feminilidade e a masculinidade são padrões que variam e para cada sociedade e durante o tempo.
O corpo musculoso de Kely, que é justamente a marca do seu trabalho bem-sucedido enquanto fisiculturista e profissional de educação física, foi interpretado como uma “ameaça” justamente porque rompe com o marcador de fragilidade que se impõe às mulheres. Aqui, o racismo se cruza com a transfobia. A construção do que se entende por “ser mulher” em sociedades racistas é profundamente atrelada ao padrão esperado para mulheres brancas: delicada e frágil. É nesse sentido que o episódio vivido por Kely ecoa a pergunta histórica feita por Sojourner Truth, mulher negra abolicionista, na Convenção dos Direitos da Mulher em 1851: “E não sou eu uma mulher?”.
Quando a sociedade não reconhece mulheres negras, musculosas, fortes e fora do padrão branco como mulheres, ela não só nega sua identidade, mas também seus direitos e sua dignidade. E essa lógica, exacerbada pelo crescimento da extrema direita no mundo, que faz do pânico moral contra pessoas trans uma de suas principais bandeiras, ameaça não apenas as pessoas trans, mas também todas as que fogem aos padrões estabelecidos. Por isso, é preciso afirmar: as pessoas que promovem e executam esse tipo de violência devem ser responsabilizadas. E as lideranças políticas que alimentam esse tipo de discurso de ódio devem ser responsabilizadas social e criminalmente.
Como defender o direito de acesso ao banheiro?
Mas há um alerta fundamental. Não podemos cair na armadilha de só nos indignarmos porque Kely é uma mulher cis. Isso sugeriria que a violência seria justificável se ela fosse uma mulher trans. Não é. O que está em jogo aqui é o direito básico de todas as pessoas, trans ou cis, viverem suas identidades de forma plena, livre de violência, humilhação e constrangimento. Mas não deve ser visto como somente um problema dos oprimidos: esse tipo de violência e desumanização é uma ferida na humanidade de todos.
Alguns defendem a ideia de que criar banheiros para pessoas trans resolveria esse problema, mas não é uma solução viável. Ela apenas transfere o problema, criando novos espaços de segregação. Esse episódio mostra como a existência de um “banheiro inclusivo” não foi o suficiente para garantir o direito às mulheres de usar o banheiro.
Banheiros individuais, sim, poderiam ser uma alternativa viável. Não só para pessoas trans, mas para pessoas com restrições de mobilidade, pessoas acompanhadas de crianças, entre tantas outras. Mas enquanto a única alternativa for a divisão por gênero, todas as pessoas têm direito ao uso dos banheiros conforme sua identidade de gênero. Afinal, fazer suas necessidades fisiológicas é um direito humano básico.
Vale observar um aspecto fundamental deste episódio. Não se tratou de uma mulher trans invadindo o banheiro feminino para cometer abusos contra as mulheres, como alardeia a extrema direita. Quem invadiu o banheiro foi um homem cisgênero, motivado pelo racismo e pela transfobia, sem necessidade de colocar peruca, vestido ou mudar seus documentos. Bastou o ódio, legitimado por um ambiente social cada vez mais hostil às existências dissidentes.
Essas ideologias é que são a verdadeira ameaça que merecem a luta de todos os que querem defender as mulheres. Contudo, há que se ter muito cuidado com quem vamos tomar como aliados, e quem está só se aproveitando dessa bandeira para obter lucro financeiro e político. O governo de Lula, do PT, foi eleito com apoio de parte expressiva da comunidade LGBT, mas foi incapaz de implementar uma política pró saúde de pessoas trans gestada em seu próprio ministério. Enquanto isso, crescem os cargos de ministros do centrão e da direita no governo. Não podemos oferecer apoio político àqueles que usam nossas bandeiras como moeda de troca com nossos algozes.