A Origem do Mundo – Parte III

“Bela Adormecida!!! Sangrando e ainda quente, a borda vermelho-escura circunda sua época ginasial de silêncio sepulcral, onde brotam rostos tímidos feito flores rubras.
Bela Adormecida!!! Não tenha medo!!!” – Liv Strömquist, p. 137
Os índices de feminicídio são tão alarmantes em nosso país que quando pensamos em mulheres e sangue logo nos vêm à mente a questão da epidemia de assassinatos.
Mas, aqui nesta última parte de comentários sobre o livro de Strömquist (que aliás estará no Brasil na Flip 2025), vou tratar de dois temas tabu analisados em sua obra – menstruação e orgasmo feminino – que infelizmente acabam se conectando nessa espiral de violências contra as mulheres, na medida em que tudo o que é relacionado ao nosso corpo tende a ser fonte de opressão.
Essa gente que sangra todo mês
“ Moço, tome cuidado com ela/Há que se ter cautela com essa gente que menstrua…
Imagine uma cachoeira às avessas/Cuidado com essa gente que se metamorfose ia/Metade legível, metade sereia” – Aviso da Lua que Menstrua – Elisa Lucinda
Das versões para a origem da palavra “tabu”, Strömquist faz referência ao termo utilizado por povos antigos da Polinésia – “tupua” – que remete à “menstruação” e “sagrado”. Não é mera coincidência! Segundo Liv é possível constatar que a menstruação era considerada mais uma manifestação dos poderes sagrados das mulheres durante milhares de anos. Não à toa os antigos calendários lunares tinham uma relação com os períodos de ovulação das mulheres, numa conexão entre marés, fases da lua e de gestação de plantas, no período de sedentarização agrícola.
Em Göbekli Tepe (Turquía), num dos mais antigos locais de culto religiosos descobertos (cerca de 12 mil anos atrás), há desenhos de mulheres sangrando. Em Hohle-Fels (Alemanha) pedras com desenhos de cerca de 15 mil anos serviriam, segundo arqueólogos, como uma espécie de calendário menstrual primitivo, entre outros exemplos trazidos pela autora. Já o psicanalista Bruno Bettelheim associa muitos ritos de iniciação masculina – circuncisão e diferentes formas de sangria – como tendo origem em tentativas de imitar a menstruação e o poder mágico das mulheres.
Menofobia
Liv provoca: por que 99% das propagandas de absorventes falam em “sensação de frescor” e “segurança” ao usá-los? Por que devemos esconder estar “naqueles dias”? Por que é visto como algo sujo e nojento?
Como parte do processo histórico já analisado nos artigos anteriores – Partes I e II – todas as características biológicas diferenciadas das mulheres que eram valorizadas passaram a serem vistas como deficiências. Assim Plínio (23-79 d.C.) filósofo naturalista romano em seu “Naturalis Historia” afirma que o contato com uma mulher menstruada faz as plantas morrerem, o vinho azedar e até o bronze oxidar. No 3º Livro da Torá (livro sagrado do judaísmo, que constitui parte do Antigo Testamento cristão), a menstruação entra na lista do que é considerado impuro. Isso sem falar nos séculos de “caça às bruxas” na Europa Ocidental, com bulas papais e manuais de tortura sob benção sagrada, vinculando menstruação com presença demoníaca no corpo feminino.
A profusão de barbaridades envolvendo a menstruação chega a ser ridícula, como o exemplo, no século XIX, da indústria do ópio de Saigon/Vietnam que tinha uma norma de não empregar mulheres férteis pois a menstruação afetaria a qualidade do produto.
Já a TPM (tensão pré-menstrual) não foge à regra. Strömquist cita estudo da antropóloga Emily Martin que avaliou o quanto as discussões sobre o assunto diminuiam em épocas quando havia necessidade de mão-de-obra feminina, como nos períodos de guerras.
Liv indaga: por que ninguém escreveu relatórios de pesquisas argumentando que mulheres com TPM brigam demais com filhos e também não estão aptas a tarefas domésticas? Fica a pergunta…
Cadė o êxtase?
“Acho que a vulva de Sua Santíssima Majestade deve ser titilada antes do coito” – p. 61
Assim está escrito numa carta enviada à princesa Maria Tereza, da Áustria, pelo seu médico, como resposta ao conselho pedido para engravidar. Em outro texto, escrito pelo médico francês Nicolas Vendette, do século XVII, ele afirma: “Sem o orgasmo, o belo sexo não desejaria abraços nupciais nem conceberia a partir deles” (p. 60). Com seleção apurada de textos, aliado ao trabalho artístico com HQ e a sempre presente ironia, Liv reproduz parte do que consta na obra “Inventando o sexo”, do historiador e sexólogo Thomas Laqueur (1945 -). Segundo ela, uma das teses defendidas é a de que no final do Iluminismo, a ciência médica parou de considerar o orgasmo feminino como parte do processo reprodutivo. Nesse sentido, mesmo numa lógica vinculada à procriação, o orgasmo era aceito e até estimulado. Isso se dava porque os órgãos genitais femininos eram vistos como uma “má-formação”, um subproduto, mas não deixava de ser genericamente similar ao masculino, em sua essência. Um exemplo disso é que quando o clitóris é “oficialmente” anunciado pelo anatomista italiano Realdo Colombo na Europa Ocidental em 1559, passa a ser considerado o pênis da mulher. (Obs.: leia artigo anterior).
Haveria então uma mudança no discurso em relação aos órgãos genitais e à sexualidade da mulher na chamada cultura ocidental-cristã. A obsessão pela diferença aprofundou a catalogação do que era normal ou anormal e o orgasmo feminino foi drasticamente deletado até dos manuais de procriação. Aqui uma breve observação em relação a essa mudança (que Liv faz questão de ponderar em relação à figura sempre presente da femme fatale).
O novo discurso em relação à mulher coincide com a chamada moral vitoriana (em alusão ao período de domínio do Império inglês sob a Rainha Vitória – 1837- 1901) no século em que a revolução industrial estava em marcha e acarretou profundas modificações no modo de vida. Ao mesmo tempo que surge uma propaganda de “revalorização” da mulher, de tipo puritana e ética e vinculada à noção de mãe-pátria européia, se dava um processo violento de hiperexploração das trabalhadoras nas fábricas têxteis.
Essa moral puritana, que atravessa conjunturas e situações diferenciadas se manifesta na primeira metade do século XX com a continuidade do apagamento da genitália feminina. Segundo levantamento de Laqueur, análise de textos de 1900 1950 mostram que a menção da palavra “clitóris” é muito rara. A proclamação da suposta superioridade do orgasmo vaginal (sabemos hoje que não existe essa diferença, pois o clitóris é parte de um conjunto que inclui a vagina) destruiu a confiança de gerações de mulheres. Somente no final da década de 60 os estudos de Masters & Johnson trouxeram o retorno do clitóris ao seu lugar de destaque na sexualidade da mulher.
Obviamente a questão do prazer sexual tem muito mais nuances a serem debatidas. Apesar de sua proposta ter sido a de trazer elementos de uma história cultural específica da genitália feminina, Strömquist não hesitou em criticar também a noção binarista homem & mulher e como essa simplificação do que é ser humano precisa ser superada.