Do blues ao funk consciente

O funk consciente é uma vertente do funk brasileiro que se consolidou como uma poderosa ferramenta de conscientização nas periferias. Com letras que falam sobre racismo, violência policial, desigualdade, abandono do Estado e a luta diária da classe, essa vertente transforma música em crônica urbana. Mais do que entreter, o funk consciente provoca, denuncia e propõe. Fortalece o sentimento de pertencimento e resistência, atuando como um instrumento político, educativo e mobilizador.
É importante compreender o funk também como uma forma de literatura periférica. Feito pela periferia e para a periferia, carrega em suas letras tanto a esperança por dias melhores quanto as dores e conquistas da vida cotidiana nas quebradas. É linguagem direta, acessível e potente.
“Diferença grita, enfurece / A mente do moleque que desde pivete se pergunta / Olha lá / Por que que só os meus é tirado de suspeito / Se vem lá do governo exemplo de roubar?” — MC Hariel, “Hit do Ano – Peso do Voto”
Uma vertente que transforma
O funk consciente surgiu no início dos anos 2000. Em contraste com os estilos mais voltados à ostentação ou à sensualidade, o funk consciente prioriza letras que abordam temas como violência policial, desigualdade, racismo e a luta por dignidade.
Hariel Denaro Ribeiro, o MC Hariel, um dos principais artistas do gênero, amplia e discute profundamente todas as questões envolvendo o funk. Nascido na Vila Aurora, na Zona Norte de São Paulo, Hariel começou na música aos onze anos, influenciado pelo pai, integrante do grupo Raíces de América.
Com mais de 16 milhões de seguidores nas redes sociais, lançou recentemente um álbum com participações de artistas como Gilberto Gil, Iza, Péricles e outros grandes nomes da música brasileira, ampliando os horizontes do funk e dialogando com diferentes gêneros.
Suas letras denunciam a constante desvalorização da cultura e da estética periférica, marginalizadas ou apropriadas pela burguesia. Hariel também questiona concepções de nacionalismo que excluem e silenciam a periferia. Esses temas não aparecem de forma pontual, mas como parte de um enredo, uma crítica social ampla, construída com vivência e observação do cotidiano periférico.
Potência cultural
O funk consciente representa narrativas que recortam décadas por meio de experiências compartilhadas, sensibilidades e revoltas comuns. Ao trazer a violência, o racismo e o abandono social a partir de uma perspectiva periférica, esse subgênero reafirma a diversidade e a complexidade da vida nas favelas, sem reduzi-la à dor ou à carência.
É linguagem de resistência, identidade e transformação. Para muitos, ouvir funk é ouvir sua própria história sendo cantada. Ao reconhecer-se nessas letras, a classe se fortalece, se organiza e ocupa espaços – no som e na sociedade.
Como afirmou Trotsky: “Toda liberdade à arte”. O funk é um extrato puro da realidade no terceiro mundo, têm suas incoerências e reflete as múltiplas vozes de uma classe historicamente silenciada. Reduzir o movimento a uma única vertente é ignorar sua potência. Um movimento cultural massivo e peça central da cultura brasileira contemporânea.
De James Brown a Racionais
A origem do funk no Brasil
Sendo bem breve, a trajetória do funk brasileiro remonta ao blues, no final do século XIX, nascido entre os negros do sul dos Estados Unidos, fortemente impulsionado como expressão da revolta contra a escravidão e a marginalização. Ele é carregado no funk estadunidense, com James Brown (“padrinho do funk”) e muitos outros artistas que desenvolveram e amplificaram o movimento. Mais tarde, o processo chega aos guetos de Nova York, onde surgia a cultura hip hop e, em paralelo, na Jamaica, os sound systems incendiavam as ruas.
Tudo isso se refletiu por aqui. No Rio de Janeiro, aconteceu um processo de experimentação musical por DJs e produtores que levou ao surgimento dos bailes nas comunidades. Com muito peso em São Paulo, o rap também se desenvolveu, e a conexão foi inevitável. Se o rap trouxe o discurso politizado, o funk ampliou o alcance como ritmo popular e linguagem direta.
Também durante a fase de transição e expansão do funk brasileiro, um ponto central foi a consolidação do gênero fora do eixo Rio-São Paulo. O que antes se resumia a sucessos pontuais em outras regiões passou a se desdobrar em cenas locais fortes e organizadas, com identidades próprias e projeção nacional. Entre os novos polos de criação, Belo Horizonte e Recife se destacaram por desenvolver vertentes importantes do gênero: o Funk de BH e o Brega Funk recifense.
Em São Paulo, entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 2000, o rap era a principal força musical nas periferias da cidade. Racionais MC’s, Sabotage, Thaíde e DJ Hum, RZO, entre outros, ocupavam o centro da cena. Embora o funk já estivesse presente na cidade em algumas produções pontuais, o gênero ainda não havia alcançado a mesma força que tinha no Rio de Janeiro. Além das dificuldades estruturais, o funk enfrentava resistência dentro da própria comunidade cultural periférica paulista – particularmente durante os anos 1990, quando muitos artistas do rap rejeitavam o gênero, alegando que suas temáticas eram superficiais em comparação com o discurso de denúncia, base do hip hop.
Porém o funk seguiu, cresceu e se consolidou como uma das principais forças culturais paulistas. Aos poucos os trabalhadores da cultura hip-hop também começaram a valorizar os caminhos que o movimento funk estava propondo. E, sem dúvida, um dos principais subgêneros que consolidou essa relação foi o funk consciente.