Nacional

Tudo vira mercadoria: a privatização da água no Rio de Janeiro

Glauco Aiex Corrêa, de Barra do Piraí (RJ)

9 de julho de 2025
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Fachada da Estação de Tratamento de Água Guandu, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense

Imagine isso: acaba de chegar agora, em sua casa, sua primeira conta de ar. Com base no volume médio de ar utilizado por um ser humano em repouso, cerca de 12.000 litros por dia, e um custo de R$0,00012 por cada litro de ar respirado (impostos incluídos), a empresa da concessão de ar pode estimar um total mensal de R$172,80 pra você pagar, relativos à sua família de quatro pessoas. Assim, de uma hora pra outra, o ar que respiramos virou uma mercadoria.

Mas fique tranquilo. Por enquanto não acontecerá, pois, em caso de não pagamento, não conseguirão cortar o fornecimento de ar da sua família. Ainda não há jeito de coagirem você a trabalhar duro para pagar especificamente essa conta.

A água como mercadoria

Mas não ache isso um absurdo. Há muito tempo já somos cobrados pela água potável que chega em nossos lares. Antes pelo Estado e, agora, no Rio de Janeiro, por empresas privadas (o que, praticamente, faz dobrar a tarifa e piorar o serviço!). A água é uma mercadoria há décadas, mas não deveria ser. Ela é tão essencial à nossa vida como o ar que respiramos.

Em uma análise da mercadoria água potável e sua produção, podemos verificar que se utilizam de trabalho humano para limpar e distribuir a água, valorizando, assim, esse produto. Mas, analisando mais de perto, temos que a distribuição foi implementada pelo Estado, em uma empreitada que levou vários anos de investimento e trabalho.

Então, depois que o Estado acabou de construir o sistema de distribuição de água nas cidades, estando tudo praticamente pronto, como de praxe, este foi repassado para empresas particulares, sob um contrato de concessão, para que pudessem explorar. Nenhuma empresa privada investiria uma grana tão alta em um sistema de distribuição urbano quando, no capitalismo, o objetivo é o lucro privado em um curto prazo. Justo como aconteceu com nossas ferrovias, rodovias e sistemas de distribuição de energia elétrica.

E o mais bizarro: qualquer água poluída pode ser transformada em água potável, desde que passe por um tratamento adequado. Então, quanto mais poluída, melhor deve ser seu tratamento para que se torne potável. Isso significa que essa mercadoria será mais cara, pois o dispêndio de trabalho para tratá-la terá que ser maior e ela terá mais valor. Essa lógica irracional do sistema capitalista faz, a grosso modo, com que as preocupações em não poluir a natureza não existam. Com efeito, a poluição da água também é uma mercadoria.

Em última instância, a água como mercadoria evidencia uma das condições para que o capitalismo exista: toda riqueza natural tem que ser transformada em um bem privado, de posse das grandes corporações, caso sua exploração (leia-se: taxa de lucro) seja mais rentável que a média de todos os outros “negócios”.

A água como ativo político fresco

Aqui, mais um exemplo do que acontece com frequência em âmbito nacional. Segundo a reportagem publicada em 28 de maio de 2025 pelo jornal O Globo, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), uma das empresas públicas mais lucrativas do Rio de Janeiro, tornou-se peça central em um jogo político envolvendo a disputa pelo governo do estado. O deputado estadual Rodrigo Bacellar, atual presidente da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), costurou um acordo para se lançar candidato ao governo estadual em 2026. Para isso, articulou com o então vice-governador, Thiago Pampolha, sua retirada da disputa em troca da indicação de aliados para cargos estratégicos na Cedae.

A negociação envolveu a presidência da companhia, que passou a ser ocupada por Joaquim Monteiro de Carvalho, ex-diretor da CCR Barcas e pessoa próxima a Bacellar. A influência do deputado se estendeu ainda ao setor jurídico da estatal e ao direcionamento de cargos administrativos. O objetivo político seria garantir uma base de apoio sólida a Bacellar nas eleições estaduais, especialmente na Baixada Fluminense e no Norte Fluminense.

A Cedae, mesmo após a concessão da distribuição de água e coleta de esgoto à iniciativa privada, continua responsável pela captação e tratamento da água bruta, o que lhe garante lucros altos. O cargo de presidente da estatal se tornou valioso não apenas pelo poder financeiro, mas também como moeda de troca política.

O acordo também inclui a nomeação do irmão de Bacellar, Bruno Bacellar, para uma secretaria no governo estadual, consolidando o poder do grupo político no Executivo. O episódio evidencia como o setor de saneamento, e a Cedae em particular, deixou de ser apenas um instrumento de política pública e passou a ser também um ativo político central em alianças e disputas pelo poder no estado do Rio.

Como a água no Rio de Janeiro foi privatizada

Após a concessão de 48 municípios do estado e áreas da capital fluminense em 2021, a Cedae deixou de operar a distribuição de água e coleta de esgoto, passando a focar exclusivamente na operação das grandes estações de captação e tratamento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro — como Guandu, Imunana-Laranjal, Ribeirão das Lajes e Acari.

Hoje, a empresa tem um novo papel: atua como fornecedora de água tratada para as concessionárias privadas que assumiram a distribuição aos usuários finais e registra ganhos expressivos de eficiência e lucro — cerca de R$ 1 bilhão em 2024 — fruto da redução da área operacional e do foco em ativos de grande porte. Portanto, a Cedae deixou de ser uma estatal operadora completa para se tornar um braço técnico e lucrativo do Estado, mantendo o controle sobre o insumo essencial — a água bruta — e alimentando o sistema operacional dos contratos privados que têm duração de 35 anos e envolveu outorgas bilionárias e compromissos de investimento. A distribuição e o saneamento onde se tornaram concessão passaram ao domínio das concessionárias privadas em praticamente todo o estado.

Consolidado a partir das páginas oficiais de cada concessionária, aqui estão todos os municípios do estado do Rio de Janeiro com o abastecimento de água concedido à iniciativa privada atualmente (2025):

Águas do Rio (Aegea) – Blocos 1 & 4 da Cedae

Atua em 26 municípios e 124 bairros do Rio de Janeiro. Municípios cobertos: Aperibé, Belford Roxo, Cachoeiras de Macacu, Cambuci, Cantagalo, Casimiro de Abreu, Cordeiro, Duas Barras, Duque de Caxias, Itaboraí, Itaocara, Japeri, Magé, Maricá, Mesquita, Miracema, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados, Rio Bonito, São Gonçalo, São Francisco de Itabapoana, São Sebastião do Alto, São João de Meriti, Saquarema, Tanguá.

Bairros do Rio incluídos: Centro, Zona Norte, Sul e parte da Oeste (124 bairros).

Iguá Saneamento – Bloco 2 da Cedae:

Abrange bairros da Zona Oeste da capital (Barra da Tijuca, Jacarepaguá, Camorim, Recreio etc.) e os municípios de Miguel Pereira e Paty do Alferes.

Rio+Saneamento (Águas do Brasil/Saab) – Bloco 3 da Cedae

Atua em 21 municípios e bairros da Zona Oeste do Rio. Municípios: Angra dos Reis, Itaguaí, Mangaratiba, Paracambi, Pinheiral, Piraí, Rio Claro, Rio das Ostras, Seropédica, Itatiaia, Bom Jardim, Bom Jesus do Itabapoana, Carapebus, Carmo, Macuco, Natividade, São Fidélis, São José de Ubá, Sapucaia, Sumidouro, Trajano de Moraes, Vassouras.

Águas das Agulhas Negras (Grupo Águas do Brasil):

Atua em Resende (concessão direta desde 2008).

Em Valença, diante da anulação do contrato original com a CEDAE (ofício nº 69/GP/2019) e da necessidade de manter o abastecimento, a Prefeitura celebrou, desde agosto de 2022, três contratos emergenciais com a EPAC Esba (Cia da Água). Encerrada em maio de 2024, não houve licitação subsequente, mas a EPAC permaneceu operando sob “gestão precária” enquanto se aguarda definição judicial ou legislativa. Em abril de 2025, o Ministério Público do Rio de Janeiro instaurou inquérito civil para apurar possíveis irregularidades nessas contratações sucessivas – iniciadas já em 2019 em caráter “emergencial” – sob suspeita de burlar a obrigatoriedade de licitação e de manter a EPAC na operação mesmo após o término formal dos contratos.

É preciso lutar pelo direito à água e ao saneamento

Em 2022, no Rio de Janeiro, foi criada a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde por iniciativa de movimentos sociais e organizações da sociedade civil (cerca de 50 entidades), que resistiam à privatização do serviço público de água – especialmente à concessão da Cedae –, defendendo o direito humano à água, ao saneamento e à saúde.

Seu objetivo central é tratar o saneamento como um bem comum e serviço público essencial, contrapondo-se à mercantilização dos recursos hídricos e ao discurso de que a iniciativa privada resolveria os problemas.

Essa é uma iniciativa importante, e achamos que devemos colocar a reestatização na ordem do dia. A população está cansada dos abusos impostos por essas megas empresas capitalistas, sugadoras do dinheiro público. Nesse sentido, entendemos também que nossa luta não pode se resumir a medidas paliativas, como cobrar fiscalização por parte das agências reguladoras, que são marionetes das empresas.

É preciso ir à raiz do problema. É necessário expropriar essas grandes empresas capitalistas, reestatizá-las, sob o controle dos trabalhadores e dos usuários, rompendo com a noção de que serviços essenciais são mercadorias a serviço do lucro. Essa revolta tem que ser direcionada aos governos e às grandes empresas.

É preciso construir a mais ampla unidade para barrar as privatizações e exigir a reestatização de todas as empresas públicas. Mas essa luta deve acontecer de forma independente dos governos e dos patrões; isto é, com independência de classe.

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