Campanha fala de “ricos contra pobres”, mas governo prepara acordão com Congresso, STF e centrão

A campanha promovida pelo governo Lula, representando a enorme injustiça tributária nesse país, onde os trabalhadores e a classe média arcam com o peso dos impostos, enquanto os super-ricos não desembolsam um tostão, viralizou nas redes sociais. Os vídeos e as montagens mostrando os privilégios pornográficos dos políticos, por sua vez, insuflaram um mais que justo sentimento de indignação e ódio contra essa corja, que defende cortar ainda mais dos mais pobres, enquanto aumenta a conta de luz e aprova o aumento do número de deputados e uma série de regalias.
A campanha do governo, da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo mostra coisas reais, como o ódio da população contra o Congresso Nacional, o centrão e a direita, e diz corretamente que são inimigos do povo e defendem os ricos. Mas não diz toda a verdade e esconde o principal: que a política econômica do governo Lula e do Congresso, chamada de arcabouço fiscal, garante os privilégios dos ricos. Enquanto houver arcabouço fiscal (um teto de gastos públicos que limita recursos para áreas como a Saúde e Educação), não só nada vai mudar, como cada vez mais dinheiro público será desviado para o pagamento da dívida pública para enriquecer banqueiros. E isso não aparece nos vídeos de IA.
O problema é o arcabouço e a dívida, IOF não resolve isso
Para entender a disputa entre o governo e o Congresso Nacional, vamos recapitular rapidamente como ela começou. No mês passado, Haddad anunciou um corte de R$ 31,1 bilhões dos ministérios (Saúde, Educação, Habitação etc.) para ajustar o orçamento ao arcabouço fiscal e apontar ao mercado que o pagamento da dívida estaria garantido. Porém ele não precisa só cortar; é obrigado a aumentar a arrecadação e passar uma impressão, ainda que mínima, de que não só os pobres teriam que arcar com isso.
O decreto que elevava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) teve este objetivo: por um lado, conseguir alguns bilhões para fechar a conta, e, por outro, embasar um falso discurso de “justiça tributária”. O problema é que o IOF não ameaça um dedo mindinho dos super-ricos. Enquanto um corte do Benefício de Prestação Continuada (BPC) pode tirar a subsistência de milhões de idosos carentes, a elevação mínima desse imposto pegaria meia dúzia de transações dos realmente endinheirados, que passariam a pagar um pouco a mais, mas sobretudo uma ampla camada da classe média e até da classe trabalhadora que usa cartão de crédito, parcela compras e pega empréstimo.
Isso faria conseguir R$ 10 bilhões a mais. Ou seja, um terço dos cortes sociais e uma fração mínima do que o país paga com os juros da dívida, R$ 923 bilhões no ano passado, ou os R$ 587 bilhões em isenções aos super-ricos. Resumindo: IOF não ameaça os lucros e o patrimônio dos bilionários, não promove justiça social, muito menos garante mais dinheiro para os mais pobres.
O aumento do IOF, assim, serve para manter o arcabouço fiscal e o pagamento dos juros da dívida aos banqueiros. Logo, defender a proposta do governo Lula é defender um regime de ajuste fiscal que vai continuar tirando dos pobres para entregar aos ricos. E é a favor disso que o governo empreende não uma luta de morte contra o Congresso, e sim uma pressão por um acordão com o centrão e a direita.

Presidente da Câmara, Hugo Motta, entorna whisky na boca em festa junina após aumentar a conta de luz dos brasileiros
O Congresso Nacional é inimigo do povo, mas o governo e seu arcabouço fiscal também favorecem os ricos
Por que o presidente da Câmara, Hugo Motta, e o centrão em peso foram contra o IOF? Primeiro, eles não aceitam abrir mão de um centavo das fintechs e de investidores que eles representam, quando não são eles próprios. Segundo, com a proximidade das eleições, Motta, Alcolumbre e companhia farejam a oportunidade de aumentar a barganha com o governo, cobrando mais emendas para irrigar seus redutos eleitorais ou simplesmente botar no bolso.
Para pressionar por um acordo e buscando reverter a queda de popularidade, o governo e o PT impulsionaram uma campanha cuja narrativa dava conta de que eles tentam taxar os super-ricos para isentar o IR dos mais pobres, possibilitar o fim da famigerada escala 6×1 e taxar as grandes fortunas. Mas o Congresso Nacional, com o centrão à frente, seria contra. O problema é que isso não bate com a realidade. Ou não com toda ela.
Que o Congresso Nacional é conservador, a favor dos ricos e contra os pobres não há a menor dúvida. A questão é que a política econômica do governo Lula, em sua totalidade, funciona para manter as isenções bilionárias às grandes empresas e ao agro e enriquecer banqueiros com a dívida pública garantida pelo arcabouço fiscal.
Vejamos um exemplo. Os R$ 10 bilhões que o governo arrecadaria com o aumento do IOF não seriam para construir hospitais ou escolas, mas para fazer superávit primário, ou seja, para o pagamento de juros da dívida aos banqueiros. O patrimônio dos bilionários continua intocado, enquanto os pobres permanecem pagando a conta do ajuste fiscal. Portanto, é falsa essa disjuntiva: temos que aumentar o IOF para não cortar o salário mínimo ou o dinheiro da Educação. Dentro do arcabouço fiscal, o salário mínimo, assim como a Saúde, a Educação e todas as áreas sociais, está sendo solapado e continuará sendo atacado, com ou sem IOF.
A disputa entre o governo e o Congresso Nacional, então, passa longe de fazer os ricos pagarem a conta em benefício dos pobres. Por parte do governo, mantém-se o arcabouço fiscal; por parte do Congresso, arranca-se o máximo que se pode. A campanha iniciada pelo governo e pelo PT é para pressionar o Congresso Nacional para uma negociação nesses termos, mas sem romper com Motta, Alcolumbre e o centrão. Tanto é assim que a campanha tinha como centro “o Congresso é inimigo do povo” e foi sendo “ajustada” para “o centrão é inimigo do povo”. O governo não quer queimar pontes com as lideranças do Congresso Nacional, muito menos se apoiar no movimento de massas para impor uma política econômica realmente a favor dos trabalhadores contra o parlamento. Ao contrário, pretende seguir governando com o centrão para continuar aplicando a mesma política econômica.
Enquanto fechávamos esta edição Haddad e Gleisi Hoffmann (que já havia pedido para não atacarem Hugo Motta) se reuniam para fechar o acordão. A ideia é ajustar um plano até a reunião de conciliação marcada pelo STF para o próximo dia 15.

Plebiscito
Para garantir as reivindicações dos trabalhadores, é preciso enfrentar o arcabouço fiscal
No meio dessa disputa, setores encabeçados pela Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo tiveram a iniciativa de realizar um plebiscito. À primeira vista, as questões trazidas são progressivas, já que partem de necessidades concretas da classe trabalhadora: o fim da escala 6×1, a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e o aumento da taxação para quem recebe até R$ 50 mil.
A isenção do IR é extremamente insuficiente, já que passou anos congelada ou reajustada abaixo da inflação, fazendo cada vez mais pobres pagarem impostos (e, desde que o governo prometeu a medida, ainda na campanha eleitoral, até hoje, já defasou). O projeto do governo, em tramitação na Câmara (com relatoria de Arthur Lira), por exemplo, não atualiza a tabela. Ele apenas impõe uma faixa de isenção até R$ 5 mil. Ou seja, representa um alívio a um setor expressivo da classe trabalhadora num primeiro momento (não é por menos a pressa em aprová-la ainda este ano para que seu efeito se sinta nas eleições de 2026), mas tende a perder seu efeito com a inflação e a redução da política de crescimento do salário mínimo com o teto de gastos.
O maior problema, porém, é que, ao se recusarem a tocar no tema do arcabouço e da dívida pública, esses setores fazem um movimento não para questionar a política econômica capitalista e neoliberal do governo Lula, Congresso Nacional e imperialismo e defender, de fato, as reivindicações da classe trabalhadora. Ao contrário, põem em marcha uma campanha controlada em torno de bandeiras que os trabalhadores apoiam, visando defender o governo com seu arcabouço fiscal e tudo e recuperar sua popularidade e as eleições de 2026.
O governo sabe, aliás, que tende a aprovar no Congresso a isenção até R$ 5 mil, embora possa pagar por isso com outros direitos da própria classe trabalhadora, como manda o eterno ajuste fiscal praticado nos últimos trinta anos no Brasil.
Mobilização e independência de classe
Para realmente taxar os ricos capitalistas e garantir o fim da escala 6×1, a correção devida da tabela do IR, serviços públicos de qualidade, começando por verbas para educação e saúde públicas gratuitas e de qualidade, fim das privatizações, aumento geral dos salários, é preciso uma mobilização independente e para valer da classe trabalhadora, que derrote a política econômica do governo Lula, do Congresso e dos banqueiros. Isso começa por fazer o que fizeram os petroleiros do Rio de Janeiro em seu Congresso: votaram a inclusão de mais uma pergunta no plebiscito: o fim do arcabouço fiscal.
O plebiscito deve ser utilizado como instrumento de conscientização e mobilização independente da classe trabalhadora, e não para desviar as lutas que podem ocorrer para serem contidas nos limites da pressão institucional e do arcabouço fiscal neoliberal.
Caso contrário, será uma manobra e não cumprirá a função que teve, por exemplo, o plebiscito que ocorreu contra as privatizações do governo Tarcísio em São Paulo, que serviu para massificar a denúncia da entrega do setor público e ajudar na mobilização da classe.