Trotsky ainda vive na luta contra as opressões e pela construção de um ser humano pleno

Há exatos 85 anos, quando Stalin garantiu o assassinato de Leon Trotsky, em 20 de agosto de 1940, ele não desferiu um profundo golpe “apenas” contra o sujeito que simbolizava a luta da Oposição de Esquerda contra a burocratização e a contrarrevolução em curso no Estado Soviético, na esteira da eliminação (física, inclusive) da militância e do partido que haviam realizado a Revolução de Outubro de 1917.
Ao assassinar Trotsky, Stalin também tentou eliminar, de uma vez por todas, o sujeito que sintetizava em sua vida e obras as posições do bolchevismo (ou seja, do marxismo revolucionário) sobre temas que vão das Artes à questão racial e ao machismo, da moral aos modos de vida, de temas do cotidiano ao Cinema à Literatura.
Temas que foram, todos eles, abordados (em debates e/ou textos) pelo dirigente do Exército Vermelho, exatamente porque ele tinha uma consciência elevadíssima em relação a algo às vezes menosprezado pela militância socialista: a “razão de ser” de qualquer revolução sempre foi e será criar condições para que os seres humanos se desenvolvam em plenitude.
Coisa impossível sob o capitalismo, um sistema cuja essência se encontra na tentativa permanente de coisificação e “monetização” das relações humanas. Plenitude também completamente alheia a regimes como os que foram implantados mundo afora como satélites do stalinismo, cujas raízes se confundem com tudo aquilo que diminui e degrada a humanidade: a opressão, a censura, o não-reconhecimento das diferenças, o bodar da liberdade e o silenciar da criatividade.
Por isso, hoje, celebrar a imortalidade de Trotsky também deve significar resgatar sua luta contra tudo isso. Algo particularmente importante nos dias atuais, quando o mundo e a humanidade estão sendo arrastados para um lamaçal cada vez mais espesso e profundo.
Um poço sem fundo onde, é verdade, a ultradireita chafurda com especial gosto e indisfarçado prazer. Mas onde, também, a velha “burguesia liberal” navega (e lucra) com o descaramento e a hipocrisia de sempre. Tudo isso acompanhado, sem reação que vá para além dos discursos, por uma “esquerda” cada vez mais limitada a propostas de reformas e acomodações, por dentro do sistema, e em parceria com a classe dominante.
Posturas opostas pelo vértice àquelas que Trotsky adotou no decorrer da vida e que, para nós, do PSTU, ainda devem servir como parâmetros para nossa militância cotidiana.
Humano, extremamente humano
Até mesmo porque acredito que estamos vivendo em um dos momentos mais “desumanizadores” da História, tenho resgatado com certa frequência uma citação de Gyorgy Lukács sobre o que significa, para os revolucionários, ser “humanista”. Uma definição que sempre me remete a Trotsky.
O texto aparece na introdução que o teórico húngaro escreveu para uma coletânea de escritos de Marx e Engels sobre cultura e arte (“Cultura, arte e literatura: textos escolhidos”, Editora Expressão Popular) e aquilo que ele aponta como sendo válido para o fazer artístico, para mim, se aplica a todo o resto.
“Não basta, para que sejam chamadas de humanistas, que estudem apaixonadamente (…) a verdadeira essência da sua substância humana; é preciso também (…) que elas defendam a integridade do homem contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram. Como todas essas tendências (e, naturalmente, em primeiro lugar, a opressão e a exploração do homem pelo homem) não assumem em nenhuma sociedade uma forma tão inumama como na sociedade capitalista – exatamente por causa de seu caráter reificado [coisificante] (…) –, todo verdadeiro artista ou escritor é um adversário instintivo destas deformações do princípio humanista”.
Trotsky foi um humanista “radical”, exatamente neste sentido, impondo a si próprio a colossal e difícil tarefa de pensar (e, acima de tudo, agir) sobre todos os aspectos da sociedade capitalista que atacam, corrompem e degeneram nossa humanidade. E, tão importante quanto, buscando uma saída revolucionária para cada uma destas questões, inclusive diante das traições contrarrevolucionárias do stalinismo e das deformações criadas pela esquerda reformista.
Algo que ele fez, literalmente, até o dia de sua morte. E não só se colocando à frente dos principais debates relativos ao cotidiano da luta de classes em sua época. Afinal, estamos falando de um cara cuja preocupação com a construção de um ser humano pleno também resultou em um livro como “Literatura e Revolução” (1924), além de vários artigos, alguns deles publicados em “Questões do modo de vida”, no qual Trotsky discutiu desde “a vodca, a igreja e o cinema” até os arranjos familiares e o machismo.
Aliás, foi em um anexo para “Literatura e Revolução”, agregado (em 1926) em homenagem ao poeta Sergei Essenin, que se suicidou em 27 de dezembro de 1925 (e, posteriormente, foi fortemente censurado e banido das estantes por Stalin), que Trotsky nos brindou com uma de suas frases mais significativas em relação aos temas em questão: “Ela virá, a revolução, e trará ao povo não só o direito ao pão, mas também à poesia”.
Por isso mesmo – e pensando a “poesia” não somente como o texto escrito, mas como tudo que promova uma bela rima entre a vida e as coisas do mundo –, também não causa surpresa que Trotsky tenha dedicado parte de seu tempo no México para escrever, em 1938, juntamente com o surrealista francês André Breton, o manifesto da Federação Internacional pela Arte Revolucionária e Independente (FIARI).
A proposta era uma resposta à outra contrarrevolução detonada por Stalin: os estragos criminosos no campo das artes e da cultura, através da imposição do horrendo “realismo socialista”, a estética oficial do Estado burocratizado stalinista (leia, também, o artigo “Trotsky e a paixão revolucionária pela Arte e a Cultura”).
Contrarrevolução que também ecoou fundo em relação ao combate às opressões, particularmente o machismo, o racismo e a LGBTIfobia.
Revolução e o direito à liberdade
Apesar de não ter escrito nada especificamente voltado para temas LGBTI+, há pelo menos dois “indícios” que nos permitem refletir sobre o que Trotsky pensava em relação ao tema.
Primeiro, sabemos que pessoas trans podiam usar os uniformes que escolhessem no Exército Vermelho, que Trotsky formou e comandou, onde também podiam usar seus nomes sociais. Além disso, em “Literatura e Revolução”, Trotsky deu destaque ao poeta simbolista, de origem camponesa e abertamente gay Nicolai Klyuev (1884 – 1937) que, nos anos 1930, escreveu belíssimos poemas homoeróticos dedicados a seu companheiro, o artista Anatolii Kravchenko.
De forma lamentavelmente significativa, Klyuev também foi vítima do stalinismo: foi preso em 1933, por “contrariar a ideologia soviética”, e executado em 1937. Algo determinado tanto por sua recusa em se curvar diante dos censores e medonhos padrões do “realismo socialista” quanto por sua homossexualidade.
Uma história toda ela exemplar daquilo que Stalin realmente tentava extinguir através do assassinato de Trotsky que, nas páginas de “Literatura” dedicadas a Klyuev, destacava como sua “grande força” fluía exatamente de tudo aquilo que Stalin temia e detestava
“Kliuev é complexo, exigente, engenhoso (…). Colorido, com frequência brilhante e expressivo, algumas vezes divertido, acessível e fantasioso, tudo sob sólida base camponesa”, escreveu Trotsky, lembrando que, mesmo se essa “base” fortalecesse a tendência ao individualismo e a resistência ao “movimento” (em oposição ao dinamismo das cidades e das fábricas), o poeta merecia constar dentre “os companheiros de viagem da Revolução” (expressão adotada por Trotsky para designar gente que dava um “apoio vacilante” aos bolcheviques).
Uma postura que a trotskista norte-americana Sherry Wolf sintetizou no livro “Sexualidade e socialismo”, lembrando o quanto ela estava sintonizada com os propósitos da revolução.
“Trotsky avalia os escritos de poetas abertamente gays, como Nicolái Klíuev, sem nunca comentar de uma forma ou de outra sobre a sexualidade dele. O direito de ser julgado pelo conteúdo de seu trabalho e não pela sua sexualidade não representa uma ruptura definitiva e positiva com a velha tradição burguesa?”, questiona Wolf, lembrando que, sim, isto não só implicava numa ruptura com a opressão burguesa, como também ecoava rupturas que estavam ocorrendo nas instituições do Estado Soviético, o primeiro país no mundo a descriminalizar, ainda em 1922, a homossexualidade, como também único, na época, a afirmar que não cabia ao Estado interferir em temas relacionados à sexualidade contanto que não houve violência envolvida.
O exílio e o assassinato de Nicolai Kliuev, assim como de dezenas de milhares de outras LGBTI+, lamentavelmente, atestam o quanto o stalinismo retrocedeu neste aspecto. Algo que teve início ainda nos anos 1930, quando a burocracia stalinista decretou que a homossexualidade era um “desvio burguês”, uma “degeneração da moral operária” (para saber mais, leia o artigo “Na contramão do marxismo revolucionário, o stalinismo sempre tratou as LGBTIs como ‘doentes’”.
Concepções pra lá de reacionárias que, vale lembrar, faziam parte de políticas sinistras, destinadas à “valorização da família” e da “maternidade”, o que, evidentemente, também se traduziu em profundos ataques contra as mulheres.
Um antirracista militante
Se é verdade que Trotsky era avesso a todas e quaisquer formas de opressão, é ainda mais inquestionável sua aversão visceral ao racismo, tema ao qual dedicou um tempo considerável.
Seus escritos e debates avançaram em elaborações feitas anteriormente por Marx e Engels (tanto sobre a escravidão e seus efeitos quanto, por exemplo, como a burguesia, no caso da Irlanda e da Inglaterra, se utilizada do preconceito étnico-racial para dividir e enfraquecer a classe trabalhadora) e dialogaram com Lênin (principalmente quando este discutiu que, sob o capitalismo, as liberdades democráticas só poderiam ser realizadas de forma desvirtuada, temporária e incompleta). Mas, não só isto.
Trotsky também se dedicou a elaborar para situações completamente “novas” na luta de classes, como o regime apartheid, na África do Sul, a segregação institucionalizada pelas Leis Jim Crow, nos Estados Unidos, e a situação dos povos não-brancos, num mundo cada vez mais subordinado a um imperialismo que também espelhava o “ideal de branquitude” europeia e, depois, norte-americano.
Para tal, manteve intensa correspondência com sul-africanos que aderiram à Oposição de Esquerda e se reuniu pessoalmente, durante o exílio na Turquia (1933) e no México (1939), com dirigentes do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP, na sigla em inglês) como Arne Swabeck, Albert Weisbord, James Cannon e C.L.R. James (autor de “Os jacobinos negros”, sobre a Revolução Haitiana), dentre outros, para debater o combate ao racismo sob os mais variados pontos de vista: da teoria ao programa; das especificidades étnico-raciais às formas de organização, dentro do partido e no movimento.
Além de resultarem em diversos artigos e documentos, muitas destas conversas foram publicadas no decorrer das décadas, demonstrando a seriedade e profundidade com as quais Trotsky tomava a questão, até mesmo porque acreditava que os revolucionários não poderiam medir esforços na disputa pela consciência de “todos os oprimidos desse oceano humano constituído pelas raças ‘não brancas’, que são as que terão a última palavra no desenvolvimento da humanidade”, como ele escreveu em 1932.
Algo determinado pelo simples fato de que são exatamente os não-brancos que se encontram dentre os mais oprimidos e explorados em todos os cantos do mundo e em todos setores da sociedade e, consequentemente, uma revolução só poderá se dizer “vitoriosa” quando esta parcela da humanidade, historicamente marginalizada, poder viver em plenitude. Tarefa extremamente difícil, Trotsky era o primeiro a admitir. E que, por isso mesmo, precisava ser atacada cotidianamente.
Postura que, também, não pode ser apontada como “exclusiva” de Trotsky. Pelo contrário. Ainda em 1922, no IV Congresso da Internacional, os bolcheviques haviam aprovado as “Teses sobre a questão negra”, que lembravam que “o inimigo da raça negra é também o inimigo dos trabalhadores brancos (…) é o capitalismo, o imperialismo” e, por isso mesmo, a Internacional deveria se apresentar como instrumento para este combate, reconhecendo “a necessidade de apoiar toda forma do movimento negro tendo por objetivo minar e debilitar o capitalismo ou o imperialismo, ou deter sua penetração”.
Uma necessidade que, sabemos, é ainda mais urgente, diante da crise para o capitalismo nos arrastou. Uma crise que em todos os seus aspectos e consequências (catástrofe climática, desemprego e precarização do trabalho, cortes a serviços sociais, degradação das condições socioeconômicas etc. etc.) atinge de forma particularmente dura e cruel os povos não-brancos.
E vale lembrar que também neste aspecto Trotsky teve que se enfrentar com a contrarrevolução stalinista. Apenas a título de exemplo, vale citar textos que alguns de seus interlocutores escreveram sobre o tema, como destaquei no capítulo do livro “O mito da democracia racial: um debate marxista sobre raça, classe e identidade” (p. 55/56), dedicado a resgatar a história do marxismo no que se refere à questão racial.
Cannon, por exemplo, afirmava que “a ‘traição à causa dos negros’, imposta pelo stalinismo, ‘preparou o caminho para os gradualistas que têm sido os dirigentes incontestados do movimento desde esse período’, ou seja, lançou as bases para a atuação daqueles que prometem a ‘liberdade ao negro dentro do marco do sistema social que o subordina e degrada’, através de ‘reformas’” (p. 55).
Já C.L.R. James destacou que, a partir da adoção da política de Frentes Populares (alianças e conciliação de classe com a burguesia), “o stalinismo estava irrecuperavelmente perdido para a luta antirracista, na medida em que impunha a todo o movimento operário e a negros e negras, em particular, ‘a defesa e o apoio a governos ativamente engajados na manutenção do colonialismo’ e, consequentemente, defensores ferrenhos da ideologia racista que o justificava” (p. 56).
A vida é bela
Meses antes de ser morto, em fevereiro de 1940, sabendo que estava na mira de Stalin, Trotsky escreveu um testamento, cujos parágrafos finais são de uma beleza cativante e inspiradora, até mesmo pela simplicidade.
“Nos quarenta e três anos de minha vida consciente, permaneci um revolucionário; durante quarenta e dois destes, combati sob a bandeira do marxismo. Se tivesse que recomeçar, procuraria evidentemente evitar este ou aquele erro, mas o curso principal de minha vida permaneceria imutável. Morro revolucionário proletário, marxista, partidário do materialismo dialético e, por consequência, ateu irredutível. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é menos ardente; em verdade, ela é, hoje, mais firme do que o foi nos dias de minha juventude.
(…) A vida é bela, que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente”.
Resgatar isto, pra encerrar este artigo, não tem a ver, apenas, com homenagear o revolucionário russo, suas apaixonadas convicções e tudo o que ele fez pela revolução. É também, e acima de tudo, um lembrete do nosso compromisso em seguir na luta exatamente pelos mesmos motivos que fizeram de Trotsky um revolucionário exemplar: a disposição de construir um mundo onde os seres humanos possam viver em plenitude, para além de qualquer opressão ou violência.