Cultura

Veríssimo e Jaguar: entre a pena e o traço, entre o humor e a rebeldia

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

4 de setembro de 2025
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No final de agosto, perdemos dois grandes nomes da nossa cultura. No dia 24, Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar, nos deixou, aos 93 anos. Uma semana depois, no dia 30, foi a vez de nos despedirmos de Luís Fernando Veríssimo, aos 88 anos.

Apesar das muitas diferenças entre eles, ambos tinham em comum o uso de um humor inteligente e ácido como “comentário” e crítica do mundo em que vivemos. E, por isso mesmo, não foi coincidências que seus caminhos tenham se cruzado no jornal “O Pasquim”.

Jaguar: o escracho como crítica política e social

Carioca “da gema” e cartunista genial, de “espírito” descaradamente anárquico, Jaguar foi amigo e parceiro de nomes como Millôr Fernandes, Henfil e Ziraldo e se tornou referência para nossos melhores chargistas e quadrinistas, como Angeli, Laerte, Chico Caruso, Aroeira e Miguel Paiva. Algo que tem a ver com seu traço inconfundível e, também, uma impagável galeria de personagens, como “Átila, o bárbaro”, o escatológico “Gastão, o vomitador” e o cínico “Bóris, o homem-tronco”.

Em 1969, Jaguar foi um dos fundadores de “O Pasquim”, o atrevido jornal que não cansou de desafiar o regime militar, e, não por acaso, um de seus personagens, o ratinho “Sig”, virou “mascote” da publicação. Afinal, o personagem (cujo nome foi inspirado em Sigmund Freud) era a própria personificação do escracho e dos comentários desconcertantes, baseados na aguçada observação da realidade.

Espinafrando a repressão, celebrando a vida

Em 1970, quando a ditadura “fechou o tempo”, Jaguar acabou amargando três meses de prisão, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, ao lado de praticamente toda a equipe do “Pasquim”. O estopim do episódio foi uma charge que, consta envolveu Jaguar e Ziraldo, construída como uma colagem sobre o medonho e reacionário “Grito da Independência” (1988), de Pedro Américo (1843-1905), no qual o imperador aparece gritando “Eu quero mocotó!”.

Uma montagem que, pra começar, espinafrava o quadro que constrói uma versão absurdamente falsa da Independência e, ainda, vende a ideologia de “ordem, amor e progresso”, sob o militarizado controle das elites e, óbvio, deixando o povo “para fora” da História.

Se não bastasse, a colagem ainda fazia referência a uma música que já havia sido alvo de perseguição, depois de apresentada no Festival Internacional da Canção, em 1970, por Érlon Chaves (1933-1974) e a Banda Veneno – importantes expressões da “soul” e da “black music”, na época –, celebrando, a priori, as pernas femininas, então mais “expostas” pela popularização da minissaia, mas cujo estilo meio “tropicalista” e totalmente anárquico permite leituras das mais diversas.

Essa multiplicidade de referências era típica de Jaguar, indo do Cinema à Literatura, dos rebeldes “beatniks”, dos anos 1950, aos chamados clássicos, numa obra que, acima de tudo, celebrava a vida. Isso pra não falar das, literalmente, embriagadas e antológicas entrevistas com gente que era o suprassumo do “viver”, como Madame Satã, ícone LGBTI+ e negro, ou a ousada atriz Leila Diniz.

Veríssimo: crônicas da vida privada e do mundo

Luís Fernando Veríssimo, nascido em Porto Alegre, em 1936, foi (e sempre será) um daqueles escritores cuja obra, por mais fincada que esteja em sua própria cultura, se torna universal.

Algo que, no caso dele, tem a ver com a enorme capacidade em criar a partir de personagens, coisas, fatos e episódios dos mais simplórios, mas transformados em histórias que, sempre, falam muito sobre a humanidade. E Veríssimo fazia isto através de um enorme senso de humor, inteligente e refinado, que jamais sequer resvala em qualquer coisa que degrade ou oprima o ser humano.

Característica que pode ser encontrada nos mais de 60 livros, na infinidade de textos jornalísticos – publicados no “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” (RJ) e no “Zero Hora” (RS), dentre outros – e em uma porção de coisas produzidas para a TV, o teatro e o cinema. Além, obviamente, de ser a essência de uma deliciosa galeria de personagens, como o Analista de Bagé, a Velhinha de Taubaté, Ed Mort e as impagáveis Cobras, presenças frequentes nas páginas de “O Pasquim”.

Crônicas de nossa vida privada e pública

Filho de Érico Veríssimo (1905-1975), Luís Fernando era um apaixonado por jazz (tocando saxofone numa sucessão de bandas até a “Jazz 6”, com a qual se apresentou até quando pôde) e entrou para o jornalismo ainda no final dos anos 1960.

Como todos seres pensantes de sua época, Veríssimo também teve que duelar com a ditadura militar, até mesmo porque seu humor sempre esteve a serviço da sátira e da ironia usadas como armas contra discursos totalitários e opressivos. Fossem eles dos milicos ou de seus agentes na sociedade civil.

Exemplar disto foi a impagável Velhinha de Taubaté que, no início dos anos 1980, era última pessoa que ainda depositava alguma confiança no regime militar, na época personificado pelo famigerado João Baptista Figueiredo.

Contudo, como exemplo do olhar sempre atento e crítico de Veríssimo, a Velhinha foi “ressuscitada” nos anos 1990, quando Collor e FHC arrastavam o país para o abismo do neoliberalismo. E, de forma ultra significativa, foi dada como morta em 25 de agosto de 2005, quando, incrédula com os rumos do governo petista, particularmente do então Ministro da Fazenda Antonio Palocci, a Velhinha, provavelmente, cometeu suicídio.

Luís Fernando Veríssimo transformou o cotidiano em literatura e o humor em crítica sagaz | Foto: Bruno Veiga/Divulgação

“O mundo não é ruim, só está mal frequentado”

Nesse mesmo período, sua capacidade em criar historietas e crônicas a partir de “migalhas da realidade” contribuiu para alguns dos programas mais memoráveis da TV brasileira, até mesmo pelo conteúdo crítico e a ousadia, tanto na forma como no conteúdo, como “Comédia da vida privada” e “TV Pirata”.

A frase acima é uma das tiradas geniais de Veríssimo. E, com certeza, sua morte deixou o mundo pior. Contudo, felizmente, ele nos deixou um enorme legado em textos que sempre carregam um pouco de algo que me parece típico de um músico de jazz: criar observando tudo ao redor (os demais músicos, o público, o ambiente etc.), mesclando pesquisa, estudo e preparo com o prazer apaixonado pelo improviso.

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