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Mortes por metanol: o fim do Sicobe e a fragilidade do controle de alimentos e bebidas no Brasil

Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres

30 de setembro de 2025
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Foto Governo/SP

O Brasil volta a assistir a uma tragédia anunciada. Nas últimas semanas, foram confirmadas mortes em São Paulo por intoxicação com metanol presente em bebidas adulteradas. A substância, altamente tóxica, não pode ser consumida por seres humanos e, mesmo em pequenas doses, pode causar cegueira, falência respiratória e óbito.

O problema, embora apresentado como caso isolado de falsificação, está ligado a um processo mais profundo de desmonte da capacidade de fiscalização do Estado sobre o setor de bebidas. A raiz de parte desse descontrole remonta a 2016, quando, sob o governo Michel Temer, a Receita Federal desativou o Sicobe (Sistema de Controle de Produção de Bebidas), até então o principal mecanismo de monitoramento da produção em tempo real de cervejas, refrigerantes, destilados e demais bebidas industrializadas no país.

O Sicobe: ferramenta de controle desmontada

O Sicobe foi criado em 2008, após anos de denúncias de sonegação bilionária no setor de bebidas, um dos que mais arrecadam impostos no Brasil. Por meio de equipamentos instalados diretamente nas linhas de produção, o sistema permitia acompanhar em tempo real o volume fabricado e cruzar esses dados com notas fiscais, declarações de estoque e selos de controle.

Durante os anos em que esteve ativo, o Sicobe ajudou a reduzir drasticamente a sonegação, elevando a arrecadação federal e criando um mecanismo de rastreabilidade útil não apenas para fins tributários, mas também para garantir maior segurança sanitária.

Com a edição do Ato Declaratório Executivo nº 75/2016, a Receita suspendeu sua obrigatoriedade. A justificativa oficial foi o alto custo de manutenção do sistema e a busca de soluções “mais baratas”. Na prática, o que se viu foi uma pressão intensa do lobby da indústria de bebidas, que há anos reivindicava a flexibilização da fiscalização e a redução da carga tributária — especialmente grandes grupos de cerveja e refrigerantes, que sempre estiveram entre os principais doadores de campanhas políticas e articuladores junto ao Congresso.

O lobby da indústria e a lógica da desregulamentação

A suspensão do Sicobe não pode ser entendida fora do contexto político de 2016. O governo Temer assumiu sob forte influência de setores empresariais que exigiam “simplificação” tributária e “redução da burocracia”. No caso das bebidas, o resultado foi um verdadeiro presente à indústria, que além de pagar menos impostos, passou a enfrentar muito menos controle sobre sua produção.

As consequências foram desde a perda de arrecadação bilionária — estimativas apontam que, desde a extinção do Sicobe, a União deixa de arrecadar entre R$ 8 e 15 bilhões por ano em impostos devidos pelo setor — à fragilização da segurança alimentar, já que a capacidade de rastrear lotes foi reduzida, aumentando os riscos para o consumidor.

Ao mesmo tempo, o mercado informal ganhou impulso. Uma vez que o risco de serem detectadas na fiscalização caiu drasticamente, bebidas falsificadas e adulteradas ganharam espaço nas prateleiras. Esse cenário abriu caminho para tragédias como as mortes por metanol em 2025.

Embora o Sicobe não fosse capaz de eliminar a produção clandestina, ele funcionava como barreira de proteção: fortalecia o controle estatal, inibia irregularidades e facilitava a atuação da vigilância sanitária.

Não é um caso isolado

A ligação entre lobby empresarial, desmonte da fiscalização e tragédias sanitárias não é novidade no Brasil. O setor de alimentos e bebidas tem sido palco de diversos escândalos nos últimos anos:

Em 2017 a Operação Carne Fraca revelou esquemas de adulteração de carnes, corrupção de fiscais e venda de produtos estragados por grandes frigoríficos. Empresas como JBS e BRF estavam envolvidas, mostrando a força do lobby agroindustrial para blindar interesses e afrouxar regras de inspeção.

Outro caso emblemático foi a crise da cerveja Backer (2020), onde dezenas de consumidores foram intoxicados, com mortes e casos de cegueira, por presença de dietilenoglicol em cervejas produzidas pela Backer em Minas Gerais. A tragédia expôs a fragilidade da Anvisa e dos órgãos estaduais de vigilância diante da pressão do setor cervejeiro.

Vale destacar ainda que o Brasil figura entre os maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, muitos deles proibidos em outros países. O lobby do agronegócio no Congresso — a chamada bancada ruralista — garante flexibilização constante das regras de liberação e fiscalização, resultando em riscos de contaminação alimentar e ambiental.

Todos esses casos seguem o mesmo roteiro: pressão empresarial para reduzir — custos e impostos — flexibilização da fiscalização aumento de riscos para a saúde da população — escândalo ou tragédia.

O que está em jogo

Em abril de 2025, já sob o governo Lula, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu um parecer determinando a retomada imediata do Sicobe, reconhecendo que sua desativação em 2016 abriu um rombo bilionário na arrecadação e fragilizou a fiscalização sobre o setor de bebidas.

No entanto, em vez de cumprir a decisão, a própria Receita Federal ingressou na Justiça para suspender a medida, mantendo o descontrole em nome dos interesses das grandes empresas do ramo. Isso mostra que não se trata de um problema herdado apenas de Temer: o governo atual também se torna cúmplice ao se recusar a enfrentar o lobby da indústria de bebidas.

As mortes por metanol em São Paulo expõem a face mais cruel da política de desregulamentação e submissão ao lobby empresarial combinada com a reconfiguração do PCC no mercado clandestino: quando a fiscalização é desmontada, quem paga a conta é o povo trabalhador, com sua saúde e sua vida.

O fim do Sicobe em 2016 abriu espaço para um mercado de bebidas sem controle efetivo, onde sonegação, falsificação e adulteração se tornaram muito mais viáveis. E a responsabilidade não cabe apenas ao passado. Sob o governo Lula essa política se manteve. Agora, a consequência não é apenas perda de arrecadação, mas vidas humanas perdidas.

A tragédia revela a necessidade urgente de retomar mecanismos robustos de controle, como o Sicobe ou um sistema ainda mais moderno e eficaz; fortalecer a vigilância sanitária e a Receita Federal, dotando-as de recursos, pessoal e autonomia para agir contra a sonegação e a adulteração de produtos; mas sobretudo, enfrentar o lobby da indústria de bebidas e alimentos, que historicamente atua para reduzir impostos e flexibilizar regras, em detrimento da saúde pública.

O Brasil já viveu escândalos suficientes no setor de alimentos para entender a lição: quando o lucro se sobrepõe à vida, o resultado é sempre tragédia.

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