Sara Ajlyakin: “Wilson era um colosso no pensamento de gênero e raça no Brasil”

Sara Ajlyakin, da Síria
Abandonei o Facebook depois da mensagem de Concha. O algoritmo desfilava a morte de Wilson diante de mim em uma procissão interminável — homenagens, elogios fúnebres, postagens sem fim. Ele era querido, respeitado, e o mundo se apressava em inscrevê-lo na memória. Mas eu não estava pronta. De tão longe, o espetáculo me parecia um roubo: a aceitação pública de sua ausência quando meu coração ainda se agarrava à negação.
Quis gritar: parem de narrar a sua ausência — eu ainda vivo com a sua presença!
Para nós, sírios, exilados e dispersos, a morte nunca é sussurrada ao pé da cama; chega, ao contrário, como uma notificação. Nós “ouvimos” a perda, mas nos é negado o ritual do adeus, o peso do silêncio compartilhado. Essa ruptura gravou-se em nossas vidas como uma cicatriz. E, ainda assim — não confundam repetição com resistência. Nunca se acostuma com tamanha crueldade.
São Paulo, 2012: a CSP Conlutas, uma das maiores associações independentes de sindicatos e movimentos populares do Brasil, me levou dos portões das fábricas às salas de aula das universidades, das ocupações camponesas às assembleias estudantis — em todo lugar, uma das maiores campanhas organizadas pela esquerda em solidariedade à Revolução Síria.
Mas a minha salvação estava em outro lugar: num apartamento onde torres de livros se inclinavam contra as paredes, a música escapava de velhos alto-falantes, e o ar era espesso de açúcar e fumaça. Na esquina da Rua Marquês de Pombal com a Rua Frei Caneca ficava o apartamento de Wilson.
Por toda parte, a esquerda internacional nos denunciava como marionetes imperialistas. Mas o trotskismo brasileiro, teimoso e incandescente, escolheu outro caminho. Pelo seu partido, o PSTU, a solidariedade à Síria tornou-se uma campanha trovejante. Em seus cômodos, legendávamos filmes clandestinos, preparávamos estudantes sírios para estarem lado a lado com os militantes da ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre).
E à noite, na sala iluminada pelo brilho das capas de vinil e das lombadas de VHS, fui iniciada: Ney Matogrosso, Secos & Molhados, Cazuza, Milton, as noites da Augusta, o mito da democracia racial, Madame Satã, o Riviera, o delírio dos traços de Angeli, o gênio melancólico de Laerte.
Aqueles que conheci através de Wilson tornaram-se os que mais amei. Meus eternos amigos, meus irmãos de alma.
Todas as manhãs eu caminhava até a Rotisserie Bologna, na esquina da Rua Augusta com a Marquês de Pombal, para comprar a torta de morango favorita de Wilson e um café — sempre com seis sachês de açúcar. Seis, exatamente.
Ele os colocava diante de mim como se fosse uma comunhão: seis sachês de açúcar, abertos em leque na mão como um abanico de papel num dia tropical escaldante, antes de rasgá-los e deixar que sua brancura caísse sobre o café preto. Depois o cigarro, sempre o cigarro, a fumaça se desenrolando como uma segunda voz.
Wilson era o intelectual orgânico encarnado, um colosso no pensamento de gênero e raça no Brasil. E, no entanto, o diabinho dentro de mim — a pequena burguesa, ridícula e irônica — sempre murmurava: que desperdício! Esse brilho condenado a arder no canto escuro de uma fração de uma fração trotskista.
Wilson era um professor sem cátedra, um mestre nato, um contador de histórias. Suas aulas sobre a democracia racial me atingiram no âmago. Eu sempre havia me pensado como a exilada síria — a “vítima perfeita” no teatro da política internacional. Mas em São Paulo, fui confrontada com outra narrativa: a branquitude dos imigrantes sírios e libaneses havia sido instrumentalizada para demarcar a fronteira do que era “não negro” — garantindo-lhes o lugar de imigrante desejado em uma democracia racial que relegava os próprios negros brasileiros às margens.
A revelação me atravessou, rachando o pedestal da causa síria que eu carregava com tanto orgulho, exigindo que eu repensasse tudo em que acreditava.
Aprendi português por puro desejo — pelo Brasil que Wilson me revelava. O seu Brasil: pulsante de música, transbordando de cores, vivo em contradições e lutas. Eu queria discutir e dançar, debater e brincar, captar cada nuance. Pelos seus olhos, o Brasil me maravilhou, e eu me tornei faminta por ele.
Que perda, meu amado e colossal amigo. Que perda — a tua ausência ecoará na tua família, nos teus camaradas, nos teus amigos, no Brasil, no próprio mundo.
A minha dor se junta à de todos aqueles que foram tocados pelo teu brilho. Ao Brasil, a todos nós — tu foste uma luz, e continuas a sê-lo.
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