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Poliana Rocha e o menino de Ilhéus: “adoção” ou tráfico humano?

Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres

3 de outubro de 2025
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Poliana Rocha no programa de Daniele Albuquerque, na Rede TV

Em entrevista concedida à RedeTV!, Poliana Rocha, esposa do cantor Leonardo, contou com risadinhas e ares de “história curiosa” como teria levado um adolescente de Ilhéus (BA) para Goiânia, a fim de “brincar” com seu filho Zé Felipe. O episódio, narrado como uma aventura de viagem, contém todos os elementos do que a burguesia brasileira costuma encarar como normalidade: o tráfico de uma criança pobre, a ridicularização do seu modo de falar e até a imposição de uma escova progressiva para “ajeitar” o cabelo — tradução cotidiana do racismo e do desprezo de classe.

Enquanto a entrevistadora Daniela Albuquerque se divertia com a história, o que estava em jogo não era uma passagem engraçada, mas a naturalização de um crime. Se essa história for verdadeira — e cabe investigação — ela pode ser enquadrada como uma forma de tráfico humano: o uso de uma pessoa como objeto de entretenimento ou “ornamento social”, desrespeitando direitos básicos de dignidade, liberdade e vínculo familiar.

Da “história curiosa” ao crime

O que choca, além da ação em si, é a naturalidade com que a influenciadora narra tudo: como se fosse algo trivial, uma lembrança de viagem, e não uma violação de direitos. Isso evidencia um traço típico da burguesia brasileira: o que para a maioria é escândalo, para a elite vira “história de vida”.

O jeito de falar do adolescente virou alvo de deboche. A progressiva, parte do “melhoramento” estético e da domesticação cultural. Essa narrativa, relatada sem pudor, mostra como o poder econômico e social permite que violações sejam apresentadas como façanhas e normalizadas por quem compartilha da mesma posição de classe. Não à toa, a mídia corporativa, mesmo ao criticar, tenta suavizar o caso, chamando de “adoção” — um eufemismo grotesco e revelador.

 

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Adoção ou retenção forçada?

Chamar de “adotar” o que parece ter sido uma retirada do convívio familiar sem consentimento é distorcer a terminologia legal e moral. No Brasil, adoção exige autorização judicial, avaliação social e consentimento dos responsáveis. Nada disso aparece no relato de Poliana.

Se a família não consentiu, se não houve procedimento formal, o ato foi uma retenção sem transparência, com caráter de uso pessoal. Isso se aproxima do que se entende por tráfico humano — ainda que a motivação não fosse financeira, mas simbólica, performática e de status social.

O detalhe de dizer que “devolveram” o garoto é brutal: transforma o menino em objeto emprestado enquanto convinha, descartado quando não servia mais. Mentalidade mercadológica aplicada a vidas humanas.

Bondade de sinhá

Quando se trata de famílias pobres, negras e periféricas, o Estado não hesita em acusar abandono de incapaz. Já para os “novos ricos” das redes sociais, a narrativa vira “boa intenção” e caridade espontânea — quase uma versão digital da “bondade da sinhá”.

Isso lembra o caso de 2019, quando Donata Meirelles, então diretora da Vogue Brasil, comemorou o aniversário sentada em um trono rodeada de mulheres negras vestidas de mucamas. Naquele momento, a elite paulistana mostrou que a mentalidade escravocrata nunca saiu de cena: apenas trocou o engenho por festas temáticas e posts no Instagram.

Hoje, a lógica se repete. Não em salões aristocráticos, mas na boca de influenciadores que ostentam mansões e milhões de seguidores. O pobre — sobretudo o negro — continua sendo visto como espetáculo, adereço ou experiência exótica a ser consumida e descartada.

O pobre como espetáculo

Tanto na comemoração de estilo colonial quanto na “adoção” relatada por Poliana, o que se repete é a encenação da hierarquia social e a reprodução simbólica da escravidão: o pobre como ornamento, o negro temporariamente incorporado à casa senhorial, mas nunca reconhecido como sujeito com direitos.

Não estamos diante de uma “gafe”. O que Poliana expôs é a permanência de um imaginário racista e de classe que organiza a sociedade brasileira: ricos — ou recém-enriquecidos pela internet — se sentem donos do destino dos pobres. E quando a mídia tenta chamar de “adoção temporária” o que se aproxima de tráfico humano, nos diz qual o valor atribuído à vida de um menino de Ilhéus: o de piada, enfeite ou lembrança de viagem.

Apuração, responsabilização e dignidade

Esse caso não pode ser tratado como fofoca de celebridade. É um alerta de como o privilégio opera em forma de apropriação de vidas humanas, inclusive de adolescentes vulnerabilizados. É preciso exigir investigação judicial e responsabilização.

Também é necessário questionar a narrativa pública que naturaliza essas violências, denunciar celebridades e mídia, e mostrar que episódios “isolados” são expressões da dominação de classe e do racismo no Brasil.

Que esse episódio sirva de alerta: a vida de ninguém pode ser usada como adereço temporário para o espetáculo das elites. Se queremos uma sociedade socialista e anticapitalista, precisamos combater também essa forma cotidiana e simbólica de exploração travestida de “generosidade”.

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