Quem matou Odete Roitman?
Final 1: A morte simbólica da burguesia clássica

Quando o país inteiro quis saber quem matou Odete Roitman, em 1989, o Brasil se dividia entre a curiosidade e o alívio. Afinal, alguém tinha feito o que todo trabalhador humilhado pelo patrão, toda empregada chamada de “incompetente”, todo pobre desprezado sonhava em fazer: acabar com a burguesa mais odiada da televisão. Odete era o retrato da elite brasileira sem photoshop — cínica, racista, tirânica e absolutamente consciente de classe.
O problema é que ninguém matou Odete Roitman. Ela apenas passou por um rebranding corporativo.
A Odete original: a burguesia em seu estado natural
A Odete de Beatriz Segall não era vilã de novela, era documentário. Representava com perfeição a burguesia dos anos 80 e 90: aquele setor que acreditava piamente que o país existia para servi-la. Com sotaque francês e ar de superioridade, Odete não precisava fingir empatia. Ela sabia seu lugar — e o dos outros. Chamava o povo de vagabundo, a classe trabalhadora de ameaça e as greves de “desordem”.

Beatriz Segall no papel de Odete Roitman em Vale Tudo Foto Reprodução
Era uma burguesia sem filtro, que não precisava esconder o nojo que sentia de quem lavava seus pratos ou dirigia seus carros. E, paradoxalmente, o povo a odiava — e esse ódio tinha uma função social. Era um instinto de classe, um lampejo de consciência proletária.
A nova Odete: da sala de estar ao feed do Instagram
Corta para 2025. Odete Roitman ressuscitou — agora em versão CEO mindfulness. Trocou o uísque por suco verde, o tailleur por roupa de linho sustentável, o filho playboy por um coach de alta performance. É diretora de sustentabilidade de uma multinacional que destrói o meio ambiente, palestrante de “liderança feminina” num banco que financia despejos, e dona de uma ONG que “ensina empreendedorismo a mulheres periféricas” com dinheiro de mineradora.
A nova Odete é a musa do LinkedIn: acorda às 5h, faz yoga, lê Os Quatro Compromissos e Mulheres que Correm com os Lobos e posta “gratidão pela oportunidade de inspirar”. Fala de “impacto social” enquanto demite 300 pessoas via e-mail coletivo. Se a antiga Odete dizia “pobre é pobre porque quer”, a nova versão sorri e diz: “tudo é questão de mindset.”
Mas por trás do discurso empático e dos slides de powerpoint, continua a mesma frase, dita com o mesmo desprezo de 1989: “A classe operária organizada é a pior coisa que tem.” Mudou o figurino, não o roteiro.
Do ódio à admiração: o truque ideológico perfeito
Nos anos 90, o povo via Odete e sentia raiva. Hoje, olha para a nova Odete — e quer ser ela. O neoliberalismo fez um milagre: transformou o ódio de classe em aspiração de consumo.
A trabalhadora precarizada virou “empreendedora de si mesma”; o operário sem direitos virou “colaborador”; o produtor de conteúdo que recebe por peça virou “influencer digital”. Odete conseguiu algo que nem a Globo ousou sonhar: fazer o povo odiar odiar Odete Roitman.
A burguesia continua plenamente consciente de classe. Organizada, blindada, coesa. Já a classe trabalhadora foi anestesiada — ensinada a amar quem a explora, a admirar o carrasco e a sonhar com a promoção que nunca virá. A ideologia do “você também pode” é o novo chicote.
Todos trabalham para Odete
A nova Odete tem um exército a seu serviço: jornalistas que chamam lucro de “crescimento econômico”, artistas que confundem crítica social com publi de marca, políticos progressistas que juram “atrair o capital produtivo”. Até parte da esquerda passou a acreditar que “há empresários do bem”.
São os roteiristas da nova temporada de Vale Tudo: uma novela onde a burguesia sempre vence.
O verdadeiro fim da novela
Ninguém matou Odete Roitman. Ela apenas fez um lifting ideológico e uma harmonização facial neoliberal. Vive sorridente nos conselhos de administração, nos podcasts de liderança e nas lives sobre ESG.
A “morte simbólica” da burguesia clássica foi só o nascimento de sua forma mais hipócrita e eficaz: aquela que continua odiando o povo, mas aprendeu a posar ao lado dele para a foto.
A verdadeira morte de Odete só virá quando o povo deixar de se ver nela. Quando a consciência de classe — aquela que ela sempre teve e nós perdemos — voltar a respirar. Quando o ódio voltar a ter endereço e o “quem matou Odete Roitman?” deixar de ser mistério para virar palavra de ordem.
Até lá, Odete vive. No feed, no Congresso, na Faria Lima, no agro “sustentável”.
E continua rindo da nossa cara — com filtro e legenda motivacional.