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Movimento LGB sem T: uma nova face do conservadorismo e do sectarismo em tempos de ultradireita

Secretaria Nacional LGBT

21 de outubro de 2025
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O Brasil é líder em assassinatos de transsexuais no mundo | Foto: Divulgação

Ray Maria, da Secretaria Nacional LGBTI+

Nos últimos meses, assistimos ao surgimento de um movimento internacional que expressa uma nova forma de ataque reacionário, disfarçado de “debate interno” no seio do nosso movimento. Em 19 de setembro, uma organização autointitulada LGB Internacional, que se apresenta como uma “rede de lésbicas, gays e bissexuais independentes do ativismo trans”, publicou um vídeo nas redes sociais anunciando sua ruptura com o movimento LGBTQIA+.

A LGB Internacional, que já possui representação no Brasil, busca se dissociar das pautas das pessoas trans, travestis e não-binárias, afirmando que sua luta se legitimaria ao excluir esses setores oprimidos. À primeira vista, poderia parecer uma tentativa legítima de organização específica por identidade, algo comum na história do movimento, mas seu conteúdo revela outra coisa: trata-se de uma cisão política e ideológica, sustentada por um discurso transfóbico, que reivindica o “sexo biológico” como base da identidade e nega o caráter social e político do gênero.

Dessa forma, sob o pretexto de defender sua “autonomia” em relação às pautas de orientação sexual, esse grupo propaga a separação artificial entre as pautas “sexuais” e “de gênero”, partindo de uma concepção biologizante e determinista, que rejeita o conceito de identidade de gênero como algo social e político e, na prática, rompe com as comunidades trans, queer, assexuais, intersexo e outras.

Em outras palavras, o chamado “LGB sem T” tenta reescrever a própria história do movimento LGBTQIA+.

Foi a união entre lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans e travestis que deu origem à luta moderna por direitos e visibilidade, desde a Revolta de Stonewall, em 1969. A tentativa de apagar parte dessa história — justamente o setor mais marginalizado e perseguido — é mais do que um erro político: é uma estratégia funcional à extrema direita e à ideologia conservadora, que busca dividir os oprimidos e enfraquecer sua organização comum.

Uma nova face da transfobia

Não é a primeira vez que assistimos a esse tipo de ofensiva dentro da própria comunidade. O chamado “feminismo radical” transexcludente (TERF, na sigla em inglês) surgiu ainda nos anos 1970 defendendo categorias rígidas e biologizantes de sexo e gênero. Uma de suas representantes, Janice Raymond, chegou a afirmar que a existência de mulheres trans seria uma forma de “estupro dos corpos femininos”. Esse discurso reacionário foi retomado a partir dos anos 2010, como reação ao avanço da visibilidade trans, e consolidado na “Declaração dos Direitos das Mulheres Baseados no Sexo”, de 2019, que tenta substituir o conceito de gênero pelo de “sexo biológico”.

Na prática, esse tipo de ideologia serve diretamente aos interesses dos governos e políticas conservadoras — legitimando, por exemplo, a exclusão de pessoas trans de competições esportivas ou a criação de barreiras no acesso a direitos básicos e serviços públicos.

Mais do que um debate teórico, trata-se de uma disputa política e moral sobre quem é reconhecido como sujeito de direitos. A retórica que defende “as mulheres de verdade” ou “a biologia” é usada para mascarar a defesa da hierarquia de gênero e da família tradicional patriarcal. É o mesmo tipo de discurso que se vê nas campanhas contra o direito ao aborto, na censura à educação sexual nas escolas e no ódio às pessoas LGBTQIA+.

Em alguns casos, até setores da própria população trans reproduzem esse tipo de lógica, como ocorre entre os transmedicalistas, que só reconhecem como “verdadeiramente trans” quem passa por cirurgias ou hormonização. É o mesmo raciocínio dos grupos que dizem “defender as mulheres”, mas atacam o direito ao aborto, ou dos que dizem “proteger as crianças”, enquanto censuram a educação sexual e negam a existência de crianças trans.

 

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 A divisão e o abandono da luta de classes

É importante compreender que o “LGB sem T” não surge isolado. Ele se apoia num caldo ideológico mais amplo, em que tanto o pós-modernismo quanto o identitarismo, apesar de opostos às correntes transexcludentes, acabam por reforçar a fragmentação do movimento. O pós-modernismo reduz as opressões a vivências individuais, separando-as das condições materiais que as produzem; o identitarismo substitui a luta coletiva pela transformação social por uma afirmação de diferenças parciais, o que fragiliza a ação comum dos oprimidos.

Ambas as vertentes, ainda que opostos na aparência, convergem no conteúdo: abandonam a luta pela derrubada do capitalismo e depositam suas esperanças em reformas e saídas institucionais, pela via do parlamento e da gestão “mais justa” do sistema.

São expressões ideológicas da falta de uma resposta marxista e classista diante do capitalismo em crise e da opressão. Subestimam os fatores objetivos, os processos históricos, socioeconômicos e a dinâmica da luta de classe e transformam tudo em “relativo” e subjetivo.

Mas, quando os problemas estruturais, de ordem econômica e política são relegados/negligenciados, é impossível se chegar à raiz do problema: o modo de produção capitalista, que é a base material de toda opressão e exploração atual.

Por isso, um dos desafios centrais do nosso tempo é reconstruir a unidade entre a luta contra as opressões e a luta de classes. Não se trata de escolher entre classe e opressão, mas de compreender como o capitalismo utiliza o racismo, o machismo e a LGBTfobia para dividir e superexplorar parcelas inteiras da classe trabalhadora e nos dividir para dominar.

O marxismo e a luta contra as opressões

Lênin já ensinava que os revolucionários devem combinar a luta contra o capitalismo com um programa e uma tática revolucionárias em todas as reivindicações democráticas e contra as opressões, pois é ilusório imaginar que a libertação de lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis possa ocorrer isoladamente, sem enfrentar o sistema que produz a opressão.

Em O proletariado revolucionário e o direito das nações à autodeterminação, afirma que :”É necessário  combinar a luta revolucionária contra o capitalismo a um programa e a uma táctica revolucionários em relação a todas as reivindicações democráticas: república, milícia, eleição dos funcionários pelo povo, igualdade de direitos das mulheres, autodeterminação das nações, etc. Enquanto existir o capitalismo, todas essas reivindicações só serão realizáveis como excepção e mesmo assim de maneira incompleta e deformada.”

Por isso, as lutas contra as opressões devem ser travadas pelos oprimidos das classes exploradas em aliança com o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras, de forma revolucionária e classista, e não sob o signo das especificidades que carregam, já que a sua libertação completa só será possível, superando as bases materiais que sustentam a opressão.

Ao contrário do que pregam as correntes que buscam “autonomia” total das pautas identitárias, o marxismo revolucionário ensina que a libertação das pessoas LGBTQIA+ depende da construção de uma sociedade sem exploração, sem propriedade privada e sem Estado burguês. Isso não significa adiar as lutas concretas, mas inseri-las num projeto estratégico de transformação social.

O capitalismo em decadência amplia a exploração, aumenta as desigualdades e transforma cada crise em instrumento de destruição das condições de vida dos trabalhadores, especialmente os setores oprimidos. Nesses períodos de crise, setores da pequena-burguesia, desesperados diante da ruína, tendem a oscilar entre o campo da burguesia e o do proletariado. Quando o movimento operário está enfraquecido, essa oscilação se inclina para o lado reacionário, abrindo espaço para o bonapartismo e o fascismo.

É nesse contexto que florescem ideologias como o “LGB sem T” e o discurso anti-woke, que procuram responsabilizar os setores oprimidos pela crise social e econômica. Ao apresentar a luta por direitos como “excesso” ou “ameaça à liberdade”, esses grupos criam novos bodes expiatórios e desviam o ódio popular da burguesia e do Estado capitalista.

Uma divisão funcional à extrema direita

Desse modo, o LGB Internacional nasceu, como fruto da visão que separa a luta pela libertação sexual da luta pela mudança das bases materiais que sustentam a opressão e excluindo uma de suas maiores vanguardas: a comunidade trans.

Essa tentativa de dividir o movimento, num contexto de crise capitalista mundial, em que os governos e as classes dominantes recorrem ao conservadorismo como ferramenta para aumentar o bonapartismo e opressão, desviar o ódio de classe e destruir a solidariedade de classe entre os oprimidos, tem o sentido de aprofundar a exploração de toda a classe e enfraquecer a luta contra as próprias opressões, e por isso, deve ser combatido.

O ataque contra as pessoas trans e travestis não é um fenômeno isolado. mas parte de uma ofensiva mais ampla contra todas as formas de resistência popular. Ela caminha lado a lado com a ofensiva contra as mulheres, os imigrantes, a juventude pobre e a classe trabalhadora como um todo. Defender a unidade do movimento LGBTQIA+ é, portanto, uma tarefa política de toda a classe trabalhadora.

É preciso reafirmar: não há libertação parcial. Cada conquista das pessoas trans e travestis fortalece toda a classe trabalhadora. Cada derrota imposta a esse setor abre caminho para ataques mais amplos. Como disse Marsha P. Johnson, travesti e dirigente da Revolta de Stonewall: “Não há orgulho para alguns de nós sem libertação para todos nós”.

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