Daniel Alves “pregador”: quando o machismo veste terno, segura a Bíblia e fala em nome de Deus
“É preciso levar as coisas de Deus a sério. Eu sou prova disso.” — Daniel Alves, em culto na Igreja Elim Pentecostal, Girona, outubro de 2025.
Daniel Alves voltou aos holofotes. Não em um campo de futebol, mas num púlpito, com a Bíblia em mãos, pregando sobre “transformação” e “pacto com Deus”. O mesmo homem que foi condenado por estupro na Espanha — e que nunca cumpriu pena efetiva, após a anulação escandalosa de sua sentença — agora se apresenta como exemplo de fé e superação.
Há quem veja nisso um milagre. Nós vemos apenas o velho truque da classe dominante: quando a justiça burguesa limpa a ficha, a religião burguesa limpa a consciência.
O caso é emblemático. Desde o início, Daniel Alves contou com o que poucos têm: advogados caros, influência política, acesso privilegiado à mídia e uma justiça sempre disposta a duvidar da palavra de uma mulher. A sentença foi anulada, o crime apagado e, agora, a “redenção” vem com luzes e aplausos.
Enquanto isso, mulheres pobres seguem sendo violentadas. E desacreditadas quando denunciam.
A Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU denunciou, à época, a impunidade que protegeu Daniel Alves. É preciso reafirmar: não foi um milagre, mas a aliança mais que conhecida entre machismo, dinheiro e poder.
Mas há um segundo ato nessa peça: o da conversão pública. Como tantos outros homens públicos acusados de violência, Daniel Alves descobriu a fé logo depois de perder prestígio. Tornar-se “pregador” é o novo figurino do arrependimento midiático. Sai o terno caro dos tribunais, entra o terno de crente. Troca-se o discurso jurídico pelo testemunho religioso.
E, óbvio, tudo isso rende boas manchetes: “Daniel Alves se reencontra com Deus”, “um novo homem”, “exemplo de superação”.
Não é novidade. Quantos políticos, policiais e celebridades já usaram o nome de Deus como biombo moral para seus crimes? A fé popular — sincera, sofrida, cheia de esperança — é usada como escudo para a hipocrisia de gente poderosa.
Não estamos falando das trabalhadoras que lotam os cultos e buscam consolo num mundo injusto. Falamos dos que usam a religião como ferramenta de autopromoção e controle social. O mesmo sistema que oprime e empobrece o povo também oferece a “cura espiritual” — desde que ninguém fale de desigualdade, de machismo ou de revolta.
Daniel Alves é a prova viva desse mecanismo: absolvido pela justiça de classe e reconvertido pela religião que a sustenta.
Não nos enganemos: o problema não é Deus, é o uso que se faz dele.
Quando a religião serve para silenciar as mulheres, para encobrir violências e para reabilitar agressores, ela deixa de ser fé e vira ideologia de dominação.
A “transformação” que o ex-jogador exibe em púlpitos não é espiritual, é estratégica. É o passo final de um roteiro conhecido: o homem poderoso erra, chora, fala de Deus e é perdoado — enquanto a mulher continua marcada, desacreditada e sozinha.
Por isso, repetimos: não há arrependimento sem justiça e sem reparação.
A fé do povo é um fenômeno social, e como tal, pode ser compreendida — mas também disputada. Enquanto a religião for usada para legitimar a impunidade e a opressão, nós estaremos do outro lado: com as mulheres que creem, mas também questionam; que oram, mas também lutam.
Por uma fé que sirva à libertação
O caso Daniel Alves mostra o quanto o sistema é hábil em transformar o crime em espetáculo e até o arrependimento em negócio.
Mas também mostra algo mais profundo: que a moral dominante continua sendo a moral dos dominantes — e que a fé não está imune dessa realidade.
Por isso, nossa luta é dupla: contra a impunidade e contra o uso da religião para justificar o injustificável. Porque, como ensinou Marx, “a religião é o suspiro da criatura oprimida” — mas é também o instrumento que o opressor usa para mantê-la de joelhos.