Sudeste

Se matar resolvesse, o Brasil seria o melhor lugar do mundo

A cada chacina, o Estado reafirma seu papel: administrar a barbárie e proteger os donos do capital.

Jorge H. Mendoza

4 de novembro de 2025
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Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

A cena é digna de filme. Poucos dias após liderar a maior chacina da história recente do país, o governador Cláudio Castro (PL) do Rio de Janeiro é aplaudido de pé em uma missa na Paróquia de Santa Rosa de Lima, na Barra da Tijuca. No dia seguinte, uma pesquisa da Genial/Quaest aponta que metade da população do estado do Rio de Janeiro concorda com a máxima “bandido bom é bandido morto“. A mesma pesquisa ainda mostra um apoio geral ao endurecimento das penas (85%) e a classificação das facções como organizações terroristas (72%).

Os números, antes de mostrarem o acerto da ação desastrosa, ao contrário, revelam sua clara intenção espetacular, midiática e eleitoreira. Dos 117 mortos pela Polícia, ao menos 54 não possuíam mandado de prisão ou mesmo antecedentes criminais. Ou seja, não eram alvos diretos da Operação Contenção que matou também 12 líderes do Comando Vermelho (CV) e aprendeu 93 fuzis (menos fuzis do que foi aprendido no Condomínio Vivendas da Barra com o vizinho de Bolsonaro). Organizações de direita como o MBL – entusiastas do ditador Bukele -, por exemplo, tem feito propaganda dizendo que, uma vez na presidência, promoverão mais chacinas. E sem eufemismos, dizem com essas palavras mesmo.

É compreensível que setores da classe trabalhadora, submetidos diariamente à violência, sejam levados a acreditar que mais repressão traga mais segurança. Mas essa é uma ilusão criada pelo próprio Estado burguês, que dirige a raiva legítima do povo contra outros setores explorados — os jovens negros e pobres das favelas —, enquanto protege os verdadeiros senhores do crime: os empresários, os políticos e os generais que lucram com a guerra social. Daí, mais uma vez, o caráter espetacular da ação que se preocupa mais em performar uma solução do que resolver o problema de fato.

Evidente que criminosos precisam ser punidos. Igualmente, é certo que a retomada de territórios que já são controlados por grupos armados exige, em alguma medida, enfrentamento direto e que é inevitável que pessoas morram em uma disputa armada entre polícias e facções. Esse não é o ponto até porque, quem sofre violência, sofre hoje. Não é algo para o qual se possa esperar o mundo mudar. Somos induzidos a pensar que “falhamos” ao não combater o crime organizado, mas a “falha” já aconteceu quando surge o crime. Melhor do que combater com violência enérgica seria não ter que combater. E digo “falha” entre aspas porque é da natureza do capitalismo produzir a barbárie a violência. É exatamente assim que ele funciona.

O problema então é que se não se mudam as bases sociais sobre as quais nasce o fenômeno da violência, nada mudará. Tampouco o fenômeno de resume às comunidades. O mercado das drogas e das armas é um ramo capitalista bilionário e altamente lucrativo que envolve inúmeros setores dos quais as facções nas favelas é só a ponta mais visível. E é aqui que o populismo de direita é insuficiente ao propor mais repressão como solução. A violência está na base do Estado capitalista e seu caráter de classe.

Prende mais, tá pouco

Se o crime avança é preciso prender mais”. Parece óbvio e esse é o raciocínio lógico do senso comum. Mas o que a experiência brasileira recente mostra é justamente o contrário. Em 1990 o país possuía 146 milhões de habitantes. Na época, a população carcerária era de cerca de 90 mil pessoas (dados do Infopen/SENAPPEN). Isso representava 0,06% da população. Em 2024, esse número saltou para 0,42%. Hoje, dos 212,6 milhões de habitantes, 909 mil são prisioneiros. Temos a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, atrás apenas de EUA (0,64%) e China (0,11%), superando a Rússia (0,45%) que agora possui a quarta. Em 30 anos, nossa população carcerária cresceu 1000%.

Isso sem falar em outros dados alarmantes como o fato dessa população ser em sua maioria preta e parda (negros), de que 27% sequer possui julgamento ou o genocídio do povo negro. O Brasil já prende muito e em um terço das vezes sequer sem julgar.

Bandido bom é bandido morto

Se já somos um dos líderes em encarceramento e isso não resolve, a saída é matar mais. Certo? Errado. Se contarmos todas as mortes violentas (independentemente dos motivos ou dos autores) o Brasil matou, nos últimos 10 anos (2015-2024) mais de 470 mil pessoas segundo os dados do Ministério da Justiça. Em 2017 houve um pico de 60 mil mortes no ano mas esse número tem ficado estável entorno de 40 mil/ano. Ou seja, cerca de 110 pessoas são assassinadas por dia no país. Para se ter uma ideia, a Guerra Civil na Síria matou em 14 anos cerca de 530 mil pessoas. Nós, em 11, matamos 470 mil. Ou seja, matamos tanto quanto um país em guerra civil, mesmo que aqui a guerra não seja declarada.

Se olharmos paras as mortes realizadas pelas polícias no país, são pouco mais de 52 mil mortes entre 2015 e 2024. Uma média de 6 mil mortes por ano ou 17 pessoas por dia assassinadas pelas polícias. E detalhe: em 2015 foram 2.322 mortes e em 2024 foram 6.121. Ou seja, o número vem crescendo sistematicamente na última década.

Direitos Humanos para humanos direitos

Outro argumento recorrente é a crítica ao suposto excesso de proteção e de direitos “concedidos” aos bandidos. Os números do encarceramento em massa ou mesmo os corpos decapitados, amarrados, torturados na chacina da semana passada parecem mostrar o contrário, que esses direitos não são muitos. Mas, para fins de raciocínio, vamos supor que esses direitos existam e sejam respeitados.

É preciso pontuar aqui que, mais do que “proteger” bandidos, esses direitos mínimos ajudam a mantar o processo controlado, porque pior que uma facção controlar um território, é o Estado perder o controle sobre a própria polícia. E é nesse ponto que o estado do Rio de Janeiro parece ter chego.

A irmã siamesa da violência é a corrupção, diz Bruno Paes Manso em seu A república das milícias (2020). Como ele bem demonstra em seu livro, onde não há punição, o passo seguinte onde a violência é liberada é começarem as extorsões. Não por acaso os mesmos militares que estavam envolvidos com esquadrões da morte e a repressão da ditadura são os militares que, depois, vão se associar ao jogo do bicho (informantes da ditadura) e que darão base para o fenômeno moderno das milícias. A impunidade fomenta mais o crime do que o seu combate.

Um levantamento realizado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos(GENI/UFF), aliás, já mostrava que em 2020 a maior parte dos territórios controlados por algum grupo armado (60%) está sob o comando de milicianos, não de traficantes.

Seja marginal, seja herói - obra de Hélio Oiticica

Figura imortalizada na obra de Hélio Oiticica era o bandido “Cara-de-cavalo”, morto com mais de 100 tiros pela polícia mesmo querendo se entregar. Obra já tocava no tema dos grupos de extermínio e flertava com a romantização da criminalidade.

Um problema antigo, sem respostas simplistas

O problema da violência não é um problema leviano e é preciso desconfiar sempre que alguém aparece com uma resposta simples e direta. Também é besteira querer culpar um ou outro governo por uma situação que já se arrasta há mais de meio século. Nesse sentido, são todos culpados. Cada governante burguês, ao não romper com o modelo capitalista de desenvolvimento (e decadência social), tem sua digital de sangue nesse projeto.

Em janeiro de 1960, Clarice Lispector escreveu um conto sobre Mineirinho, bandido morto pela polícia com treze tiros. “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro.

Clarice estava longe de ser uma autora panfletária. Mas em 1960 ela já captava a dinâmica da coisa: para matar basta um ou dois tiros. O resto, é pura vontade de matar. E se a vontade não segue as instruções da justiça, o que me impede de ser o próximo, mesmo sendo inocente? Era um prenúncio do que viria a ser o Rio.

Aqui a política populista de mais repressão falha e falhará, e o povo trabalhador é quem paga as contas em qualquer situação. Mais uma vez, “falha” é modo de dizer. Está cumprindo exatamente o seu papel de fortalecer o braço repressivo do Estado e do Capital que, em última instância, só se garante pelo monopólio da violência. Quem propõe saídas rápidas está pensando, no máximo, até a próxima eleição. Políticas generalizadas de repressão não só custam muito dinheiro (para felicidade da indústria das armas e tristeza do liberal que defende Estado mínimo) como são terreno fértil para corrupção e extorsão.

A violência é resultado direto da deterioração social. Não há combate efetivo à violência se não se ataca as raízes dela: se não se discute emprego de qualidade, moradia digna, redução da desigualdade, acesso à Saúde e à Educação. O Brasil já prende muito. O Brasil já mata muito. O Brasil já não respeita os direitos. Essa é uma experiência que o país já fez  e longe de ser solução, é parte do problema. Hoje, mais uma chacina. Amanhã, depois da eleição, a linha de frente está renovada com mais uma geração de jovens.

A falência é do capitalismo, a violência é efeito colateral. Ou superamos esse modelo, ou continuamos reféns do crime ou do populismo.

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