Nacional

O que está por trás do discurso do “narcoterrorismo”?

Diego Cruz and Luisa Rosati, do Rio de Janeiro (RJ)

7 de novembro de 2025
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Momentos após a maior chacina da história do país, o governador Cláudio Castro e expoentes da extrema direita reforçaram o discurso equiparando o narcotráfico a “terrorismo”. Ao mesmo tempo, avançava na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que vai nesse sentido.

O PL na Câmara, não por acaso, tinha como relator o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG), que abriu mão do cargo em favor de Guilherme Derrite, o sanguinário secretário de Segurança do governo Tarcísio, temporariamente licenciado para ocupar seu mandato como deputado para ajudar no projeto. Mas o que está por trás dessa ofensiva da ultradireita e sua insistência em classificar o tráfico como terrorismo?

Mudar a classificação do crime pode parecer, a uma população cansada, emparedada entre a opressão do crime organizado e a violência policial, medidas mais contundentes contra a criminalidade urbana, que atinge principalmente os mais pobres. Afinal, terrorismo soa muito mais grave que tráfico de drogas. Porém o que está por trás dessa medida é um projeto que institucionaliza, aprofunda e muda de qualidade a guerra contra os pobres. E submete, mais ainda, o Brasil ao imperialismo estadunidense.

“Bukelizar o Brasil”

Esse discurso ganhou força com o governo do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, eleito em 2022. Sob o pretexto de combater as quadrilhas que assolam o país, Bukele instituiu um regime de exceção que revoga várias garantias constitucionais, prevê prisões preventivas indefinidas sem a necessidade de se informar o crime e mandou 2% da população para a cadeia. Ou melhor para o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT).

A política de colocar as Forças Armadas e a polícia para perseguir, assassinar e encarcerar suspeitos de “terrorismo” fez com que El Salvador tenha hoje, proporcionalmente, a maior população encarcerada do mundo (para se ter uma ideia o Brasil, o terceiro país do mundo que mais prende, tem 0,42% da população atrás das grades, um terço sem julgamento aliás). Evidentemente, essa repressão não se restringiu a suspeitos de participarem de gangues, mas se voltou contra a oposição, ativistas de Direitos Humanos e até ambientalistas. Qualquer um que levante a voz contra Bukele hoje é preso, na melhor das hipóteses.

Até mesmo ex-integrantes de seu governo que denunciaram esquemas de corrupção e a ligação de autoridades com o narcotráfico não escaparam, como é o caso do então conselheiro de segurança nacional, Alejandro Muyshondt. Preso em 2024, foi mantido incomunicável até morrer na cadeia semanas depois. O defensor dos direitos humanos, Fidel Zavala, também foi preso e jogado na mesma prisão cujos guardas havia denunciado. Casos como esse se multiplicam e atingem qualquer pessoa ou organização minimamente crítica à ditadura de Bukele.

Presidente de El Salvador, Bukele

A criminalidade de fato caiu, como acontece quando se elimina a concorrência e se institui um único monopólio no crime (como ocorreu com o PCC em São Paulo), nem que seja o próprio Estado a ocupar esse lugar. Não é difícil entender, assim, a popularidade de Bukele, uma vez que os trabalhadores e o povo pobre são as maiores vítimas das gangues. Mas, sob uma ditadura cada vez mais declarada, tende a ser uma situação instável, como é qualquer governo autoritário que prende, sufoca e persegue qualquer oposição.

Ou seja, ao contrário do que propaga a extrema direita, a política repressiva de Bukele é o maior exemplo de que não se acaba com a violência sem se atacar os problemas estruturais que a causam. O que se faz lá é impor uma “paz dos cemitérios”, através de uma ditadura corrupta que, uma vez restaurando as liberdades democráticas, retornam os velhos crimes de antes. Não acabou a violência, ela apenas é contida e substituída por uma violência estatal ao custo dos direitos e das liberdades democráticas da população.

Fato é que institucionalizar uma ditadura na prática, prender em massa e perseguir a oposição é justamente o sonho dourado da extrema direita. Não é por menos que figuras como Eduardo Bolsonaro e Nikolas Ferreira repitem o mantra “temos que bukelizar o Brasil”. Política encampada também pelo ex-capitão do Bope, Rodrigo Pimentel, que, em entrevistas recentes, defendeu as medidas de Bukele, mas ressaltou que “com a atual legislação, não tem o que ser feito”, flertando, assim, com mudanças autoritárias nas leis brasileiras.

Ataque à soberania

Se, do ponto de vista objetivo, uma mudança na classificação do crime de narcotráfico produziria tão somente penas mais duras, politicamente suas consequências seriam muito mais profundas. No início do ano, o chefe do imperialismo ianque, Donald Trump, assinou uma ordem executiva classificando uma série de grupos criminosos da América Latina, como México, El Salvador e Venezuela como grupos “terroristas”. Qual é a consequência disso? O secretário de Defesa de Trump, Pete Hegseth responde: “Se você é um narcoterrorista contrabandeando drogas em nosso hemisfério, nós o trataremos como tratamos a al-Qaeda. Dia ou noite, mapearemos suas redes, rastrearemos seus homens, caçaremos você e o mataremos”.

Trata-se, assim, de uma mera justificativa para uma intervenção militar, a exemplo dos anos de guerra ao terror que embasaram a invasão e a ocupação do Iraque e do Afeganistão. Os EUA já bombardearam dez barcos no mar do Caribe nas últimas semanas, acusando de serem narcotraficantes ou “terroristas”, embora testemunhos dessem conta de se tratarem simplesmente de pescadores. Essa ofensiva militar ocorre ao mesmo tempo que os EUA pressionam e atacam a soberania dos países, como a Venezuela e o próprio Brasil.

Não é coincidência, portanto, que o governo Trump pressione autoridades para que organizações criminosas como Comando Vermelho e PCC sejam classificadas como “terroristas”. O representante do Departamento de Estado, David Gamble, responsável pelas sanções contra o Brasil, foi a Brasília pessoalmente pedir a reclassificação das organizações. Qual a consequência prática dessa medida? Ela autorizaria ataques militares diretos dos EUA contra o Brasil, sob o pretexto de uma guerra contra o terrorismo.

A extrema direita brasileira, nesse contexto, dá novos exemplos de sua vergonhosa submissão ao imperialismo estadunidense, colocando-se como artífices desse projeto contra a soberania nacional. Derrite se reuniu com representantes do governo Trump para articular o PL do terrorismo. O próprio Cláudio Castro entregou um relatório ao Consulado dos EUA no Rio mostrando um suposto avanço do Comando Vermelho em território estadunidense, embasando uma eventual retaliação contra o Brasil, a exemplo do que Eduardo Bolsonaro fez, e vem fazendo, em relação às sanções políticas e econômicas contra o país.

Terrorismo ou simplesmente capitalismo?

Classificar as organizações criminosas como “terroristas”, assim, não tem nada a ver com o enfrentamento mais duro contra a criminalidade ou a defesa da população pobre. Ao contrário, legitima uma guerra ainda mais aberta contra o povo negro e pobre das comunidades e periferias. Se parto do pressuposto que se estão combatendo grupos terroristas que buscam tão somente o controle de territórios, então toda a população submetida às áreas controladas por facções são, de antemão, suspeitos a serem enfrentados e “neutralizados”. É a isso que servem termos como “guerra assimétrica” ou “conflito nacional não declarado”, difundidos por autoridades e analistas nos últimos dias.

Argumentos tão cínicos quanto hipócritas. Se a violência é o que define o terrorismo, as forças de segurança do Estado brasileiro são os maiores agentes terroristas. Mais do que isso, cria uma falsa dualidade entre Estado e facções, como se não estivessem umbilicalmente imbricadas. As milícias e as grandes organizações criminosas como CV e PCC não existiriam sem o Estado, sem a simbiose com suas instituições, do Legislativo ao Executivo, passando pela própria estrutura das polícias e das Forças Armadas.

Esse discurso, finalmente, tenta afastar o real caráter das organizações criminosas. Não são corpos estranhos que vivem da exploração de ramos ilegais da economia, como o tráfico de drogas, ou que praticam extorsão contra as comunidades. Como ficou evidente na operação contra o PCC na Faria Lima (que só foi deflagrada por conta da concorrência de setores da própria burguesia), são verdadeiras empresas capitalistas, que utilizam, e do qual dependem, o sistema financeiro. A criminalização das drogas serve para a valorização da mercadoria, cujo lucro é lavado nas fintechs, plataformas de apostas e vários setores do mercado legal, além de abastecerem campanhas de políticos que, em geral, são os mais irascíveis no discurso do combate à violência.

A incursão de grupos como o PCC no mercado imobiliário ou no controle da produção e distribuição de combustível, por sua vez, revela como, cada vez mais, se desfaz a separação entre mercado legal e ilegal. E é justamente por isso que o crime organizado, tanto as milícias quanto os grupos como o CV ou o PCC, não desaparecerão. O Estado pode matar 100 mil, 10 mil funcionários rasos, que serão prontamente substituídos. Enquanto houver um mercado lucrativo a ser explorado, um Estado capitalista e uma burguesia, financeira ou não, se beneficiando disso, continuará existindo. Pois não se trata de terrorismo, mas de capitalismo.

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