Dois pesos, duas medidas: quando o desvio tem endereço e classe social
Enquanto o secretário municipal de Educação no Rio de Janeiro, Renan Ferreirinha (PSD), se apressa em condenar publicamente trabalhadoras pobres flagradas com alimentos da merenda, mantém silêncio diante das denúncias de um esquema milionário de desvio de verbas nas creches conveniadas da Zona Oeste.
O silêncio do secretário Renan Ferreirinha fala alto
Por que o secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, fez questão de gravar vídeos indignados diante do roubo de merenda em uma escola pública, mas silenciou completamente diante das denúncias de desvio de milhões de reais das verbas destinadas às creches conveniadas na Zona Oeste? Por que a mesma energia moral não aparece quando o crime envolve aliados políticos, empresas terceirizadas e vereadores de sua base? Essa diferença de tratamento não é apenas uma questão de comunicação, ela revela, com nitidez, a quem se decide proteger e a quem escolhe punir.
O escândalo das creches conveniadas
A operação da Polícia Civil que investiga o desvio de verbas públicas destinadas a creches conveniadas com o município trouxe à tona um esquema milionário. Em apenas seis meses, uma das instituições investigadas recebeu cerca de R$ 9 milhões, e nesse período foram feitos 816 saques em dinheiro, somando R$ 1,5 milhão. As investigações apontam para empresas de fachada que emitiam notas fiscais falsas, justificando serviços e fornecimentos inexistentes. Entre os alvos está a vereadora Gigi Castilho (Republicanos), que teria ligações diretas com parte das creches conveniadas.
Trata-se de um tipo de crime sofisticado, realizado por pessoas com acesso a cargos, contratos e influência política. É um roubo disfarçado de gestão, que não se dá em sacolas de lixo, mas em transferências bancárias e papéis timbrados. Enquanto isso, as crianças atendidas pelas creches sofrem com falta de estrutura, alimentação precária e profissionais mal pagos. A cada milhão desviado, milhares de refeições deixam de ser servidas, professores ficam sem materiais e famílias trabalhadoras veem o direito à educação infantil sendo corroído.
O roubo da merenda e a exposição pública das trabalhadoras
Em contraste brutal, o episódio envolvendo funcionárias terceirizadas e um vigilante teve outro desfecho. As mulheres foram presas em flagrante por esconder alimentos da merenda e produtos de limpeza em sacos de lixo. A denúncia partiu da própria Secretaria de Educação, que rapidamente divulgou nota, vídeo e pronunciamentos oficiais sobre o caso. Ferreirinha apareceu publicamente para condenar o “ato de corrupção”, como se estivesse revelando uma grande quadrilha.
Ninguém defende o furto de merenda escolar. É, de fato, um erro grave, a merenda pertence às crianças e é parte essencial da política de alimentação pública. Mas é preciso compreender a realidade social dessas trabalhadoras. As merendeiras, contratadas por empresas terceirizadas, recebem salários que mal passam de um salário mínimo, trabalham sob alta carga e vivem em uma cidade onde o custo de vida é um dos mais altos do país. O aluguel, a alimentação, o transporte e o gás consomem quase tudo que ganham. Ainda assim, o furto da merenda não enriquece ninguém: é um ato pequeno, errado, mas nascido da miséria e da precarização.
Do crime da sobrevivência ao crime do privilégio
Já o desvio de verbas para as creches conveniadas tem outra natureza. Não é fruto da necessidade, mas da ganância. É roubo planejado, com planilhas, empresas de fachada e contratos superfaturados. É um esquema que desvia recursos do cuidado infantil e da educação básica para os bolsos de empresários e políticos, que lucram com a miséria de quem depende do serviço público.
Enquanto as merendeiras são expostas nas redes sociais, o caso das creches segue envolto em silêncio institucional e cautela política.
A diferença está no poder. O roubo cometido por quem nada tem é punido com cadeia, humilhação e espetáculo. O roubo cometido por quem tem cargo e influência é tratado com “prudência”, “investigação sigilosa” e notas vagas. O primeiro é crime de pobre; o segundo, desvio de recurso público, palavras que suavizam a gravidade quando o réu veste terno e tem mandato.
Terceirização: o terreno fértil da corrupção
Esse contraste revela um problema estrutural na administração pública: a privatização disfarçada por meio das terceirizações e parcerias público-privadas. Quando o Estado entrega a execução dos serviços essenciais a empresas “conveniadas”, o que se cria é uma zona cinzenta entre o público e o privado. As creches terceirizadas operam com recursos públicos, mas sem transparência; com metas sociais, mas guiadas pela lógica do lucro. E é nessa interseção que florescem os esquemas de desvio e favorecimento político.
A terceirização, apresentada como solução de “eficiência”, tem servido, na prática, para enfraquecer o controle social, desmontar o serviço público e ampliar o espaço da corrupção institucionalizada. O mesmo modelo que permite o subemprego das merendeiras é o que alimenta o enriquecimento de empresários e políticos através de contratos superfaturados.
O resultado é um Estado que pune o trabalhador pobre e protege o gestor que desvia milhões.
Conveniência política e classe social
Renan Ferreirinha não gravou vídeo sobre o caso das creches porque seria preciso explicar o modelo de terceirização que sua própria secretaria defende. Seria preciso enfrentar vereadores aliados, questionar contratos, abrir auditorias e, talvez, reconhecer que a privatização do ensino infantil criou terreno fértil para a corrupção. Mais fácil foi expor publicamente trabalhadoras pobres, convertendo a miséria em espetáculo moralista.
O silêncio do secretário não é omissão: é escolha. É a escolha de quem governa para manter aparências, proteger interesses e não contrariar quem tem poder de barganha política.
Quando o desvio está na ponta, na escola pública, na funcionária terceirizada, há punição e discurso de ordem. Quando o desvio está no topo, entre creches conveniadas e vereadores, há silêncio, cautela e conveniência.
A moral muda conforme o endereço
Essa diferença de tratamento não nasce da moral, mas da classe social. Os pobres são punidos para servir de exemplo; os ricos são preservados para garantir alianças. A justiça muda de tom conforme o endereço do crime. É assim que o poder se perpetua: criminalizando a sobrevivência e acobertando o saque institucionalizado.
Enquanto o secretário posa de gestor moderno e ético, a educação municipal continua refém de uma estrutura desigual, em que o roubo de um quilo de arroz é escândalo e o desvio de milhões é detalhe técnico. A verdadeira imoralidade não está nas cozinhas das escolas, mas nos gabinetes que decidem quem pode ser punido e quem deve ser protegido.