Decreto presidencial com as novas diretrizes sobre educação especial é um retrocesso vendido como progresso
Em 21 de outubro, a Presidência da República e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) publicaram o Decreto 12.686/2025 atualizando as diretrizes sobre educação inclusiva, ensino e classes especiais para pessoas com deficiência (PCD’s). A narrativa do governo com a publicação do decreto é que o objetivo é avançar na inclusão de PCD’s no ensino regular, acabando com a segregação no ambiente escolar. Mas, ao analisar os impactos concretos do decreto, principalmente para as escolas especiais, essa narrativa cai por terra.
A publicação do decreto da maneira como foi feita já é um problema. Não houve qualquer diálogo com as entidades representativas de PCD’s, pesquisadores dedicados ao tema, profissionais da educação, estudantes, etc., antes de construir o texto que foi publicado. Um processo extremamente antidemocrático, que causou muita indignação na comunidade de PCD’s e nos profissionais de educação dedicados à área.
Toda essa indignação com o decreto é referente a mudança na redação do artigo sobre o acesso à educação de PCD’s. A diretriz anterior estabelecia que os estudantes PCD’s deveriam ser matriculados preferencialmente na rede regular de ensino, mas não exclusivamente. O critério para definir se a matrícula deveria ocorrer na rede regular ou em escolas ou classes especiais deveria ser feito pela equipe pedagógica, em acordo com a família do estudante.
O decreto muda a redação desse trecho e determina que todos os estudantes PCD’s devem ser matriculados nas classes comuns, atribuindo às escolas e classes especiais um papel complementar ao ensino regular. Isso é muito problemático porque desconsidera completamente que há PCD’s com condições complexas, alta necessidade de suporte, comprometimento extremos de habilidades básicas, que tornam sua permanência numa classe comum completamente improdutiva para seu desenvolvimento sociopedagógico e pode, inclusive, aumentar os conflitos no ambiente escolar.
As escolas e classes especiais são, hoje, fundamentais para garantir o acesso de muitos PCD’s à educação e não podem ser relegadas a um papel complementar apenas. O decreto do governo Lula, neste sentido, é um grande retrocesso, porque cria uma situação jurídica que tende a reduzir a atuação das escolas e classes especiais, facilitando o processo de fechamento delas. Matricular um estudante PCD com condições complexas numa escola comum não implica automaticamente em inclusão. O mais provável é que esse estudante, sem uma estrutura escolar e profissional adequada para suas demandas, seja tratado como “um problema” e seja “empurrado” para fora da escola. Tirar a possibilidade das escolas e classes especiais atuarem, nos casos de PCD’s com condições complexas, como substituto da classe comum, vai levar a um aumento expressivo da evasão escolar desses estudantes e não em sua inclusão no processo educacional.
Apesar desses problemas, a narrativa do governo emplaca, em certa medida, porque de fato existe um processo de segregação no ambiente escolar, em que muitas vezes crianças que têm condições e perfis para estarem nas salas comuns, com suporte, adaptações e acompanhamento profissional são empurradas para as classes e escolas especiais. Isso acontece por falta de preparo dos profissionais da educação para lidar com estudantes PCD’s, mas principalmente porque as escolas, na maioria das vezes, não têm estrutura adequada, quantidade de profissionais para garantir o atendimento especializado e sofrem com um processo de superlotação das salas de aula que inviabiliza a construção das adaptações necessárias e individualizadas para atenderem as necessidades sociopedagógicas de estudantes PCD’s.
Eu já senti isso na pele. Tenho um filho de 13 anos no TEA (Transtorno do Espectro Autista), que do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental, num contexto pós-pandemia, não teve um monitor. E seus professores, sobrecarregados e mal orientados, praticamente não realizavam nenhum tipo de adaptação para uma criança que ainda não estava alfabetizada. Na época, meu filho tinha dificuldades com autocuidado, dificuldade de socialização, com comportamentos inadequados frequentes com os colegas e profissionais e vários déficits pedagógicos. A solução da escola foi tentar enviar meu filho para uma classe especial, que eu e minha esposa recusamos, porque ele estava apto a estar em uma sala comum e poderia se desenvolver se tivesse acesso a um monitor e adaptações, como está provado nos últimos dois anos, quando, em outra escola, ele começou a ter acesso a esses recursos e evoluiu muito em todos os aspectos.
O governo também emplaca sua narrativa porque ela aparece como um contraponto ao decreto de Bolsonaro, que foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e posteriormente revogado pelo próprio Lula. Decreto que praticamente vedava os processos de adaptação e suporte para PCD’s no ensino regular e impunha a esses estudantes, como único caminho, as classes e escolas especiais, independentemente do nível de suporte e da condição específica do estudante.
O grande problema para que o processo de segregação de PCD’s no ensino regular se perpetue não é a redação do decreto anterior, mas a falta de investimentos e verbas para garantir a estrutura nas escolas, quantidade e a formação dos profissionais de educação para propiciar a educação inclusiva. Não há nenhuma política nacional de formação continuada de profissionais da educação voltada para a educação inclusiva, apesar de praticamente todos os professores e professoras, gestores, orientadores educacionais e auxiliares de educação atuarem diretamente com PCD’s todos os dias nas escolas. Em resumo, o problema principal é a falta de verbas.
Uma educação inclusiva realizada de maneira correta, com estrutura e suporte adequado, é mais cara, porque exige mais profissionais, mais salas de aula, melhor estrutura e acessibilidade nas escolas, menor número de alunos por sala, etc. Mas o problema da falta de verbas o governo Lula, os governos estaduais e municipais não querem resolver. Ao contrário, Lula, através da MPV 1303/2025, que por sorte não foi aprovada e caducou, queria fazer uma manobra contábil com o programa Pé-de-Meia que retiraria cerca de R$ 13 bilhões do orçamento do MEC em 2026. Também não é nenhum segredo que o governo Lula quer acabar com os mínimos constitucionais para a Saúde e Educação, porque a prioridade de Lula é cumprir as metas do Arcabouço Fiscal. Os ministros Haddad e Tebet já levantaram esse tema algumas vezes publicamente.
Quando analisamos, dentro desse contexto, fica evidente que a mudança na diretriz educacional efetuada pelo Decreto 12.686/2025, não tem como objetivo aumentar a inclusão de PCD’s, mas criar uma condição jurídica que permita aos governos reduzir os recursos para as escolas e classes especiais.
O decreto também tem outros problemas graves
Além do problema relativo à sua política para a educação especial, o decreto também traz outros retrocessos. Reduz a exigência de especialização para os profissionais do Atendimento Escolar Especializado (AEE), ao invés de ter uma política para garantir a formação e especialização dos profissionais para prestarem melhor atendimento aos PCD’s. O governo também agrupa funções criando um “profissional de apoio escolar”, que vai implicar na extinção de papeis especializados. Por exemplo, um intérprete de libras também vai poder acumular a função de acompanhante educacional, reduzindo a quantidade de profissionais por estudante. O decreto também se omite sobre a necessidade de articulação da escola com uma equipe multiprofissional (fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogo, etc.).
Há outros problemas relativos às diretrizes para construção do Plano de Ensino Individualizado (PEI), a ênfase excessiva no papel do AEE e uma omissão sobre o papel do professor na construção das adaptações aos PCD’s.
O sentido de todas essas medidas é apenas um: reduzir os custos para o atendimento educacional aos PCD’s, seja criando diretrizes que permitam a redução do número de profissionais ou a qualificação desses profissionais para prestarem o atendimento.
A política do MEC é seguir aprofundando a privatização da educação especial
Quando Bolsonaro publicou o decreto para limitar a inclusão de PCD’s no ensino regular, “empurrando-os” para as escolas especiais, havia um interesse econômico e político que não estava muito evidente à primeira vista. Hoje, a maior parte das escolas especiais estão sob gestão de fundações e entidades filantrópicas, como a APAE e o Instituto Pestalozzi, sob gestão privada, mas se mantém financeiramente através dos convênios com o poder público. Grande parte dessas fundações estão hoje sob influência direta de grupos conservadores de direita ou ligadas às igrejas evangélicas, ou às duas coisas ao mesmo tempo. E, viraram uma ponte importante para a construção de bases eleitorais de grupos políticos e empresariais, principalmente de ultradireita.
Outro elemento importante desse processo é que os profissionais, contratados por essas fundações, são muito mais baratos do que os servidores públicos da educação e possuem vínculos muitos mais precários. Diante de uma crise econômica ou de política de austeridade fiscal, esses profissionais podem ser demitidos sem maiores dificuldades, muito diferente de um servidor que goza, até o momento, de estabilidade. No Distrito Federal, por exemplo, segundo estimativas do site INDEED, um professor dessas fundações e entidades filantrópicas ganha menos da metade de um professor da rede pública atuando na educação especial.
Sem dúvida a APAE, o Instituto Pestalozzi e outras fundações são importantes neste momento para garantir o atendimento educacional de PCD’s. Contudo, esse modelo de expansão da educação especial através de fundações privadas ligadas a interesses empresariais e grupos políticos é danoso à necessidade de construção de uma política participativa, pública, ampla e estrutural de educação especial e inclusiva. Não está em questão a qualidade do atendimento prestado por essas fundações, mas o fato de que esse modelo é extremamente frágil, sujeito a ser capturado por interesses políticos eleitorais e empresariais, com condições de trabalho mais precárias e muito mais fácil de ser desmontado enquanto política pública.
No entanto, a lógica do Ministério da Educação, chefiado pelo petista Camilo Santana, é seguir aprofundando esse modelo, enquanto em vários municípios sequer existem escolas especiais nas redes públicas de educação. Em 2025, o orçamento para as APAE’s e Institutos Pestolazzi, oriundos do FUNDEB é de R$7,9 bilhões, mais que o dobro do que Bolsonaro destinou em seu último ano de governo em 2022, R$3,7 bilhões. O valor de recursos repassados pelo FUNDEB para matrículas nas escolas privadas exclusivas de educação especial cresceu em 117%.
Uma educação inclusiva de verdade é incompatível com o Arcabouço Fiscal e a lógica do capital
O projeto educacional em curso no Brasil está a serviço da lógica capitalista em várias dimensões que interagem entre si. Por um lado, a educação é transformada em uma mercadoria que serve à acumulação capitalista de grandes grupos empresariais, seja vendendo diretamente à população o acesso a uma escola, curso, etc. seja recebendo do Estado através de inúmeros programas para prestar serviços educacionais.
Por outro lado, a educação é estruturada com um projeto para garantir a reprodução do próprio capitalismo, seja formando mão-de-obra para ser empregada no mercado de trabalho, seja formando os filhos da burguesia nas escolas privadas de elite para seguir administrando o capital da família. Além de ser também parte de uma dimensão ideológica importante ao servir, independente da vontade e prática individual de um educador, como ferramenta de dominação ideológica, ainda que ocorram muitas contradições neste processo.
Essa mesma lógica recai sobre a educação especial e inclusiva e limita severamente as possibilidades de que ela seja um instrumento real de inclusão, de formação e de superação do capacitismo. Há todo um mercado em torno das necessidades educacionais e terapêuticas de PCD’s, que cada vez mais está sendo ocupado e monopolizado por grandes clínicas e grupos empresariais da área de saúde e educação. Nesse aspecto, o capital avança rapidamente e, de forma cruel, impõe uma exclusão a todo um setor de PCD’s que não tem recursos para arcar com os custos das terapias e de profissionais da educação especializados
Também não interessa ao capital consumir um grande volume de recursos para garantir atendimento educacional a todo um grupo de PCD’s que, pela sua condição, não poderão ser utilizados como mão-de-obra para o mercado de trabalho. Ou que terão limitações nas funções que podem assumir dentro do mercado. Os PCD’s são tratados pelo capital e seus governos de maneira desumana, como mercadoria defeituosa que deve ser comprada mais barata ou descartada. São usados para aumentar o exército industrial de reserva ou servir de mão-de-obra mais barata, pressionando para baixo o conjunto dos salários e das condições de trabalho do conjunto da classe trabalhadora.
Investe-se em políticas públicas à população PCD somente o necessário para que se crie um mercado rentável e lucrativo a grupos empresariais que ofertam serviços e bens. E é impossível que, com um volume de recursos tão escassos e, por consequência, com políticas públicas tão deficitárias, garantir todos os direitos da comunidade PCD e suas famílias. Essa realidade atinge violentamente a população mais pobre, mas atinge em certos aspectos até mesmo famílias com alto poder aquisitivo. Vejamos o exemplo do goleiro Cássio do Cruzeiro que teve a matrícula de sua filha no TEA negada em várias escolas privadas de Belo Horizonte.
A luta pelos direitos de PCD’s e por uma educação inclusiva só pode ser consequente com seus objetivos se colocar no seu horizonte a luta contra o arcabouço fiscal neoliberal de Lula e do Congresso Nacional. É essa política fiscal que leva o governo Lula e o Congresso Nacional a lançar mão de uma série de medidas para retirar o BPC das PCD’s e suas famílias e de lançar um decreto que ataca as classes e escolas especiais.
Em última instância, os direitos de PCD’s só é possível com o fim do capitalismo e da construção de uma outra sociedade, socialista, em que nenhum ser humano vai ser tratado como mercadoria.