Cultura

A rebeldia necessária de Jards Macalé (1943-2025)

Julio Anselmo

27 de novembro de 2025
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Jards Macalé em show no Canecão em apoio à greve dos estudantes da URFJ, em 2012 | Foto: Erick Dau

Maldito. Louco. Incompreensível.” Conheci os adjetivos antes de conhecer Jards Macalé. Quando ouvi, entendi. A voz esquisita, quando não gritos, o violão torto, a estética desajustada… O conjunto soava chocante. Não no sentido de provocação vazia, mas de arte genuína, que desorganiza o que você espera ou está acostumado. Se já surpreende um jovem dos anos 2010, imagine nos anos 1970.

Em 2012, vivíamos uma das maiores greves estudantis nas universidades federais. Assembleias de milhares na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um comando nacional organizado pela base e grandes atos em Brasília. O governo Dilma (PT) atacava novamente a educação e precarizava a assistência estudantil. Depois de meses de luta, parecia que todas as táticas tinham se esgotado. Surgiu então a ideia que incendiou nossa imaginação: ocupar o Canecão.

Para quem não é do Rio de Janeiro, o Canecão era uma tradicional casa de shows da Zona Sul, fechada e abandonada, mas construída em terreno da UFRJ. O movimento estudantil defendia que se tornasse um espaço público de cultura, fora da lógica mercantil que sempre o governou.

Dentro do prédio, começamos a organizar apresentações. Algumas pequenas, outras improvisadas. Mas nada se compara ao show de Jards Macalé. Quando seu nome apareceu, a reitoria, o governo e parte da imprensa reagiram com pânico.

Memorandos pediam que ele não fosse. Reportagens anunciavam riscos. Tudo para deslegitimar o movimento.

Eu temia que ele cancelasse. Mas no dia marcado ele estava lá, sereno, só voz e violão. Abriu com “Contrastes” e, ao fim do verso “Quanto mais longe do circo, mais eu encontro

palhaço”, completou: “Essa vai para o reitor de vocês”. Depois, em entrevista ao jornal O Globo, foi direto: “Sempre estive ao lado dos estudantes e continuarei. O que a universidade quer, com atitudes como essa, é impedir os estudantes de se manifestarem livremente. Se dizem de esquerda, mas são sempre de direita”.

Show em apoio à greve dos estudantes da UFRJ, em 2012, no Canecão | Foto: Erick Dau

Redescoberta

Aquela noite simbolizava mais que um reencontro de Jards com o movimento estudantil. Talvez já mostrasse um ajuste de contas tardio entre o país e um artista que por décadas esteve à frente de seu tempo. Afinal, após a década de 2010, vários jovens desta geração redescobriram Jards Macalé e o colocaram na prateleira que merece.

O disco de 1972, ignorado na época, hoje é tratado como obra-prima. Canções foram regravadas por novos artistas com novas interpretações, culminando na composição e no lançamento de dois discos com músicas inéditas.

Talvez estivesse pronto para enfrentar o monstro que reaparecia e assim, depois de mais de 20 anos sem inéditas, em pleno governo Bolsonaro, lançou “Besta Fera” em 2019, recheado de críticas políticas. E lançou um último disco em 2023, “Coração Bifurcado”.

A história de Jards como de todos os gênios é a história do confronto. Recebeu aplausos e muitas vaias. O capitalismo transformou a arte em produto, formatando tudo para ser fácil, previsível e lucrativo. Quanto mais tudo é pasteurizado, mais o público se acostuma à repetição e menos tolera aquilo que desafia. O choque que antes podia abrir espaço para reflexão agora tende a virar rejeição quase imediata, porque o sistema habituou as pessoas a consumir, não a confrontar ou se deixar transformar pela arte.

Atemporal

Vaiado no IV Festival da Canção em 1969 com a impressionante “Gotham City”, crítica à ditadura, viu o rótulo de maldito se difundir. Em 1970, seu EP foi recusado nas lojas. Em 1972, seu disco com outro gênio, Lenny Gordin, foi retirado de circulação. Em 1973, organizou o histórico “Banquete dos Mendigos”, cercado pela repressão.

Jards ainda produziu, tocou violão em todas as faixas e foi diretor musical do disco mais importante dos anos 1970 e obra-prima de Caetano Veloso (na minha opinião): “Transa”. Como desgraça pouca é bobagem, não teve sua participação creditada no disco.

Gal Costa teve um papel importante na popularização de várias canções compostas por Jards, como a icônica interpretação de “Vapor Barato”, “Mal Secreto”, “Hotel de Estrelas”, dentre outras.

Transitava entre universos musicais distintos. Certa vez um entrevistador perguntou a ele: “Num dia Bethânia, no outro um pouco do tropicalismo, de repente o Ciro Monteiro ao teu lado, no outro Moreira da Silva. Qual é a tua?”. Ele respondeu: “A minha é música. Brasileira. Eu sou um brasileiro, portanto é música brasileira”.

É uma música de vanguarda, sem o elitismo e a pretensão dos autoproclamados gênios, reis do próprio nicho beirando a esterilidade. Jards não cria muros ou cercas à sua música. Na verdade, ele explode tudo que ameaça a liberdade criativa. Gostava de dizer que só fazia o que queria. Algo tão simples quanto profundo para um artista vivendo no capitalismo.

Jards Macalé partiu no dia 17 de novembro, aos 82 anos. Sua obra, porém, já é atemporal. As novas gerações continuarão se alimentando de sua música e lutando para libertar a arte e a vida destes que controlam os meios de produção.

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