A condenação de Leo Lins é o resultado previsível da liberdade irrestrita ao Capital

Há uma semana a condenação de Leo Lins é assunto nas redes. Esse frenesi está ofuscando outras pautas relevantes, como o ataque de Israel à Flotilha da Liberdade que leva solidariedade humanitária à Gaza, ou a revolta em Los Angeles contra a polícia. Ainda assim, é necessário discutir alguns aspectos pouco mencionados sobre essa questão. Não se trata somente de um caso isolado de responsabilização através da punição individual. Isso é apenas a aparência de um processo mais complexo que precisa ser compreendido. A prisão de comunicadores é apenas um momento de uma indústria de comunicação digital que lucra com a violência contra aqueles que Fanon chamou de “os condenados da Terra”.
As forças do retrocesso
Nas ditaduras, a luta por liberdade de expressão sempre tomou como paradigma ideias brilhantes, descobertas científicas, literatura refinada, denúncias jornalísticas e outras produções humanas que agregam como parte do patrimônio cultural da humanidade. Nas democracias, a luta pela liberdade de expressão parece se dar na defesa dos que abusam dela para praticar, incitar ou normalizar a violência.
Se uma parte do empenho dos que defendem o abuso fosse usado para evitá-lo, certamente estaríamos em um mundo menos violento. No mínimo, teríamos uma grande campanha em torno de pressionar Lula para que ele rompa relações comerciais e diplomáticas com Israel, por exemplo, como faz a comunidade Palestina no Brasil.
Os racistas que lutem para não serem condenados. Nunca fizeram nada por nós. Mas além deles, existem os comunicadores corporativistas, que defendem a liberdade de expressão porque não querem ser responsabilizados por eventuais discursos de ódio. Existem também os que defendem a liberdade de expressão irrestrita como um princípio moral. Para compreender e identificar as lacunas desse pensamento é preciso tirar do caminho algumas mentiras que estão sendo contadas sobre o caso.
Mas vai ser preso mesmo?
A primeira coisa a se dizer é que dificilmente Lins será preso de fato. Ele ainda pode recorrer e a prisão de gente branca, rica, famosa e herdeira no Brasil é muito rara. Para eles, é respeitado o processo legal, que é só efetuar a prisão quando não houver mais possibilidade de recorrer. Enquanto para eles vale a presunção de inocência até o fim, para pessoas pobres e negras, valem as brechas para a prisão preventiva, que corresponde a aproximadamente metade dos presos do país.
Existe repressão contra os racistas no Brasil?
O segundo ponto é que o número de pessoas efetivamente presas por crimes raciais no Brasil continua ínfimo apesar dos avanços na lei. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre 2022 e 2024 foram julgados 6.466 processos relacionados a crimes de racismo e injúria racial, um número obviamente subnotificado. Desses, apenas 13% resultaram em condenações (836 casos). Desses, somente 297 pessoas estão presas, segundo o portal Geledés.
Esses dados mostram que, ao contrário do que afirmam os “politicamente incorretos”, não há uma repressão rigorosa contra os racistas nem censura. As prisões por racismo no país são raras diante da quantidade de casos reportados e julgados, quem dirá em relação aos casos que sequer são julgados.
Por que Leo Lins foi condenado?
Se não existe um “ativismo judicial”, nem uma caça aos racistas no país, resta analisar a condenação para saber se ela está dentro ou fora do que prevê a legislação atual.
A lei 7.716/1989 define os crimes de preconceito de raça ou de cor. De acordo com esta lei, a pena pode variar de 2 a 5 anos, além de multa, nos casos de “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”. Existe ainda um agravante para quando o caso envolve meios de comunicação e internet, com pena também de 2 a 5 anos. E, por fim, há um agravante de um terço da pena caso para quando “ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”.
A outra lei na qual ele foi enquadrado foi o Estatuto da Pessoa com Deficiência, 13.146/2015 que tipifica como crime “praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”, com pena de reclusão 1 a 3 anos, além da multa. Aqui também existe o agravante em caso de intermédio de meios de comunicação.
Existia mesmo a possibilidade de algum resultado diferente disso?
A lei é muito precisa e o caso em si é previsto rigorosamente. Não existe crime de piada no Brasil, tampouco o “humor” é um atenuante. O judiciário acatou um pedido do Ministério Público, não foi procurar o caso por conta própria. A juíza cumpria a condenação ou violaria seu dever funcional.
Leo Lins escolheu tensionar a fronteira que separa a liberdade de expressão e as leis de combate à discriminação. Sua condenação nada mais é do que as consequências de suas próprias decisões.
O que se está reclamando não está na sentença da juíza, mas na própria legislação. E os que defendem o racismo irrestrito sabem disso. Políticos como Caroline de Toni, do PL de Bolsonaro, se prontificaram a fazer alterações na lei para eliminar a parte que inclui o racismo recreativo.
Caroline, que é presidente da CCJ na Câmara dos Deputados, tem como pauta a Escola Sem Partido, defende a censura de professores em sala de aula e quer retirar Paulo Freire como patrono da educação brasileira. Curiosamente, os mesmos que defendem a liberdade total encontram como aliados os que defendem a censura.
Lei antirracismo numa sociedade racista
Se a lei limita a liberdade de expressão, então devemos compreendê-la. Somente após o fim da ditadura militar foi possível conquistar uma lei que pune o racismo. Mas ela veio com distorções, pois foi feita por políticos brancos e a elite econômica que lucra com o racismo.
Cida Bento, em O pacto da branquitude, explica que existe a branquitude crítica (o branco antirracista que denuncia o racismo) e a branquitude acrítica (o branco que sustenta ideias racistas). O problema, diz Bento, é que a branquitude crítica se limita a reprovar publicamente o racismo, sem confrontar seus próprios privilégios.
Assim, a lei pune o racismo público, inclusive o recreativo, como em estádios ou teatros, mas trata isso como desvios individuais, não como problema social. É uma proteção limitada.
Não por acaso, críticos de Leo Lins destacam que sua apresentação foi transmitida online insinuando que, a portas fechadas, não haveria problema. Já os supremacistas brancos tentam desmontar a lei, começando pelo agravante do racismo recreativo, unindo-se aos que defendem uma liberdade de expressão irrestrita.
O dilema das redes
Leo Lins só foi condenado agora porque antes da internet os veículos eram co-responsáveis pelo que veiculavam, o que servia de contenção para casos extremos. Hoje, contraditoriamente, as redes estão livres dessa responsabilidade e ainda lucram com isso.
O modelo de negócios das redes sociais cria para elas duas pressões antagônicas: o aumento de receita cria uma tendência a reduzir o controle sobre o conteúdo, mas as consequências institucionais dessa própria falta de controle cria uma contratendência de necessidade de controlar, porque geram problemas.
De um lado, para lucrar com anúncios, elas precisam oferecer materiais personalizados e potencialmente viciantes para atrair e reter usuários nas plataformas. Acontece que os materiais mais viciantes são aqueles que apelam aos sentimentos mais profundos como o medo, o ódio, a excitação sexual, etc. Nesse sentido, quanto menor o cerceamento, maiores as chances de que surjam materiais viciantes e, portanto, maior o lucro.
Mas de outro lado, o resultado da disseminação desse tipo de conteúdo é a crise jurídica e de imagem. Nesse sentido, quanto maior o cerceamento, menores as chances de ter problemas de imagem ou jurídicos. Ou seja, as plataformas estão a todo momento tentando equilibrar entre oferecer maior ou menor controle de conteúdo.
Por isso, para elas, quanto mais complacente for um sistema jurídico e o senso sobre ética na comunicação de um povo, mais espaço tem para seus lucros crescer. Não por acaso gastam muito dinheiro com lobby nos governos e disputas ideológicas na sociedade.
Uma fábrica de condenados
O Marco Civil da Internet brasileiro e a cultura racista trazem muitas vantagens para essas empresas: as plataformas não são responsáveis pelo conteúdo, jogando a responsabilidade de moderação para o judiciário. Este, também não consegue moderar suficientemente, porque não tem estrutura para fiscalizar, e cada decisão representa um desgaste de imagem, se focando apenas nos casos mais flagrantes de abuso. Enquanto isso, os algoritmos seguem radicalizando produtores e usuários.
Por meio de um mecanismo de recompensas (monetização e likes), os produtores são incentivados ao radicalismo na medida em que esse conteúdo engaja mais. Cria-se uma espécie de fetiche da mercadoria sobre os materiais produzidos: o que importa não é o conteúdo da mensagem, mas os parâmetros das estatísticas das redes. Vale tudo por um click.
A audiência, por sua vez, é dessensibilizada por doses graduais de conteúdo abusivo. Existem diversas denúncias sobre como as plataformas oferecem conteúdo misógino, especialmente para meninos adolescentes, de modo que em menos de 1 hora depois de criada a conta já aparece algum.
Portanto, mesmo que uma parcela ínfima desses produtores fosse eventualmente condenada, isso não preocupa as plataformas. Assim como uma indústria que não tem regulação de segurança do trabalho é uma fábrica de mutilados, as plataformas podem operar tratando os produtores de conteúdo como descartáveis.
Liberdade aos povos, não aos abusadores
As mentiras em torno do processo de Leo Lins, os ataques machistas à juíza e as ameaças de retrocesso na legislação são fruto da liberdade irrestrita do Capital que domina as redes. Um vampiro que corrompe tudo que toca: judiciário, política, cultura, algoritmos, comunicadores e audiência.
No passado, a mídia analógica tinha mais controle e, portanto, mais barreiras éticas. As redes destruíram esse represamento e hoje somos empurrados para um lamaçal. Mudanças na legislação poderiam responsabilizar as plataformas e enfraquecer os algoritmos da radicalização. Mas isso exige enfrentamento contra os interesses das multinacionais. Mas se já era difícil regular a mídia nacional, será ainda mais com as Big Techs.
Ainda assim, isso é só um contrapeso ao Capital, que seguirá pressionando para alargar os abusos na comunicação. Só haverá plataformas de mídias sociais realmente livres quando estiverem submetidas a um controle social. Mas, para isso, é preciso uma luta anti-imperialista e pela soberania digital, em aliança com povos do mundo inteiro que enfrentam o mesmo problema.