Nacional

A dengue assola o Brasil

Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

14 de fevereiro de 2024
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Hospital de campanha em Ceilândia, no DF, para atender casos de dengue Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Nem bem saímos da pandemia de Covid e já temos de lidar com a epidemia de dengue. Em 2023, o Brasil teve 2,9 milhões de casos de dengue e liderou o ranking global. No mundo inteiro houve 5 milhões de casos, ou seja, o Brasil concentrou mais de 50% dos casos no mundo. Em 2024, já no início do ano, tivemos um aumento significativo de casos, o que acende o alerta vermelho, pois os meses tradicionais de pico da doença são março, abril e maio. 

Até 13 de fevereiro de 2024 houve 512.353 casos no Brasil, e o avanço da dengue precisará ser acompanhado minuciosamente pelas autoridades de saúde nos níveis federal, estadual e municipal, porque a incidência varia muito de acordo com a região do país. Em 2023 houve 1094 óbitos no Brasil por dengue, em 2024 temos 75 óbitos e 340 óbitos em investigação.

A dengue é uma doença causada por um arbovírus, que são doenças transmitidas por insetos. No caso, o inseto é o Aedes aegypti (Odioso do Egito), um mosquito caracterizado pelas listras brancas que possui no seu corpo. Tem hábitos domésticos, se domiciliou nas cidades onde encontra mais gente para ser picada e os locais com água parada, onde as fêmeas depositam seus ovos.

Outras arboviroses são a Zica, Chikungunya, e a febre amarela. No momento, as que mais nos preocupam são a Zica e Chikungunya, pois estas também são transmitidas pelo mesmo Aedes aegypti. No Brasil já enfrentamos as sequelas de uma epidemia de Zica no Nordeste há cerca de nove anos, quando nasceram vários bebês com microcefalia. As gestantes tiveram a Zica e infelizmente os fetos sofreram de mal formação.

É correto dizer que a domiciliação do Aedes nas grandes cidades do Brasil é um subproduto do processo de urbanização forçada e desordenada causada pela industrialização impulsionada nos anos 70 do século passado pela ditadura. Grandes massas de trabalhadores saíram do campo em busca de trabalho nas grandes cidades, de forma desordenada e sem as condições adequadas de moradia e saneamento básico, situação que perdura até hoje.

Somou-se a isso o fator do aquecimento global. A subida da temperatura e as grandes chuvas que temos visto nos últimos anos criam um ambiente muito propício para a multiplicação do Aedes. Até na região Sul do país, que não costumava ver tantos casos, nos últimos anos assistiu um importante aumento. O mesmo acontece na região Centro Oeste. O Distrito Federal está liderando a tabela de casos no Brasil em 2024, com um coeficiente de incidência nove vezes maior do que a média do Brasil. São 2286,2 casos por 100 mil habitantes, enquanto a média nacional é de 252,3.

Se usarmos o padrão de 300 casos por cem mil habitantes para declarar epidemia, este patamar já foi ultrapassado por Distrito federal, Minas Gerais, Acre, Paraná, Goiás e Espírito Santo.

A explosão de casos de dengue no Brasil é o subproduto do capitalismo brasileiro (expansão urbana desordenada e massiva) severamente impactada pelo aquecimento global, que também é um subproduto do capitalismo mundial. Da mesma forma que na Covid afirmávamos que a destruição ambiental pelo desflorestamento facilitou a migração do vírus para o ambiente urbano, agora afirmamos que o aquecimento (que é mundial) traz consigo a ampliação de fronteiras para a arbovirose, que começa a aparecer também nos países mais ricos.

Como enfrentar a epidemia?

É público e notório que o vetor, o Aedes, se multiplica onde encontra as condições propícias, ou seja, acúmulo de água limpa. Está dentro das casas e nas ruas, nos pneus jogados em locais impróprios, nos famosos pontos de descarte nas grandes cidades onde a população joga suas sobras. Assim, é necessária uma mobilização popular através de mutirões para acabar com todos os lugares onde este acúmulo de água acontece. Há muitas propriedades em que ninguém reside, mas o proprietário não deixa a vigilância entrar para procurar os focos de criadouros. Seria preciso que o Governo Federal criasse um verdadeiro mutirão nacional de fiscalização e jogasse seu peso político e financeiro para, inclusive, poder cobrar os municípios a que se mexam e vençam os obstáculos. No caso dos terrenos que o proprietário não deixa entrar há cidades usando a tecnologia dos drones. Nos casos em que se detectam focos nestes terrenos, é uma necessidade de saúde pública a entrada dos fiscais. A defesa da vida e saúde da população é mais importante do que a defesa do direito de propriedade.

Ainda não existem tratamentos específicos para a dengue, o que se trata é a desidratação causada pela febre, a queda de plaquetas (que pode causar graves problemas de coagulação). Infelizmente. já se vê nas redes sociais gente fazendo fakenews e divulgando tratamentos sem fundamentação científica (inclusive ressurgiu a ivermectina como tratamento, o que simplesmente é mentira).

Outra iniciativa em nível de saúde pública é o uso da bactéria Wolbachia para destruir os ovos, mas ainda está em fase de estudo. 

A vacina

Existem duas vacinas já aprovadas para uso, uma da Sanofi e outra da Takeda. O Brasil foi o primeiro país a colocar na lista de vacinação regular da rede pública a vacinação contra a dengue.

Há limites na eficácia das vacinas, por vários motivos. O primeiro é que a dengue tem 4 subtipos e. assim como o fato de se ter tido um tipo de dengue não é impeditivo para ter os outros, o mesmo se aplica às vacinas. As duas são feitas com vírus atenuados. No caso da Takeda, a vacina QDenga (que foi comprada pelo Ministério da Saúde), parece ser relativamente eficaz para os tipos 1 (69,8%) e 2 (95,1%). Já para o subtipo 3 a eficácia é menor (48,9%) e do subtipo 4 ainda não se sabe. No Brasil a circulação maior é dos subtipos 1 e 2.

A vacina QDenga tem que ser aplicada com reforço em três meses. Ainda não pode ser usada em crianças abaixo dos quatro anos e idosos, por falta de dados de segurança em relação a estas faixas etárias. O Brasil comprou 6 milhões de doses, que era a capacidade da fábrica para 2024, ou seja, só será possível imunizar 3 milhões de pessoas. 

O Instituto Butantan está desenvolvendo uma outra vacina que parece ser melhor, mas ainda está em fase de testes. O resumo de tudo isso é que, a curto prazo, a vacinação pode atenuar o problema da dengue, mas está longe de resolver. Principalmente pela baixa capacidade de produção da vacina e pela eficácia apenas moderada.

Como conclusão, é vital o acompanhamento epidemiológico da dengue, assim como da Zica e da Chikungunya em 2024. Desde já mobilizar a população para erradicar os locais de proliferação do Aedes. Tomar medidas rápidas para não deixar o sistema de saúde dos municípios epidêmicos colapsar pela quantidade de casos.

O povo também precisa se organizar para exigir melhores condições de saneamento básico. A ideia de privatizar as empresas de saneamento, pela experiência mundial, não é positiva, pois as empresas jogam o custo para cima da população pobre. O direito à água bem tratada sempre vem antes da pretensa melhora que a privatização diz trazer e que não se confirmou em vários países. 

É preciso também acelerar os testes da vacina do Butantan, para viabilizá-la o quanto antes. O Governo Federal vai ter de aumentar o envio de verbas para a saúde e não poderá transformar o Ministério da Saúde em moeda de troca com o centrão. Seria um cenário odioso o retorno do ministério para o controle de políticos com interesses escusos, como infelizmente assistimos durante a pandemia de Covid. O aumento de verbas para o controle de arboviroses é vital, pois há gastos necessários desde a compra da vacina, compra de Kits de diagnóstico, disponibilização de inseticidas, gastos com campanhas educativas e de mobilização da população. Por fim, mas não menos importante, todos devem tomar o máximo de cuidado para não disseminar fakenews, terreno propício para negacionistas e terraplanistas aumentarem seu público.

Ary Blinder é médico pelo SUS