A farsa da “síndrome pós-aborto”

Nos últimos anos, vimos crescer no Brasil a ofensiva reacionária contra os direitos reprodutivos. Um dos mais recentes instrumentos dessa campanha é a invenção da chamada “síndrome pós-aborto”. Vereadores de extrema direita de diversas cidades brasileiras estão apresentando projetos de lei para instituir a “semana de combate à síndrome pós-aborto”. O objetivo é implementar ações contra o suposto adoecimento psicológico “causado” pela interrupção da gravidez. Ocorre que tal síndrome não existe. O termo não aparece na literatura científica e não surgiu da medicina ou da psicologia científica, mas de movimentos antiaborto ligados ao fundamentalismo religioso e à extrema direita nos EUA, a partir dos anos 1980. Serve para reforçar estigmas e justificar políticas que buscam criminalizar ainda mais as mulheres e pessoas que decidem interromper a gestação.
O mito da “síndrome pós-aborto”
Nenhum manual de saúde ou classificação de doenças reconhece a “síndrome pós-aborto” como diagnóstico. O que existe, em alguns casos, são sofrimentos emocionais relacionados às condições em que o aborto é realizado: insegurança, clandestinidade, perseguição, violência institucional, falta de apoio familiar ou social. Ou seja, não é o procedimento em si que causa trauma, mas sim a criminalização, o estigma e o abandono estatal.
Transformar isso em “síndrome” é um recurso político: serve para culpabilizar as mulheres e pessoas que gestam e justificar a negação de direitos. Essa narrativa vem sendo usada em projetos de lei e campanhas oficiais. Em Maceió, por exemplo, a Câmara Municipal aprovou a criação de uma “semana de conscientização sobre a síndrome pós-aborto”, em outras cidades, como Recife São Paulo, Recife, Lages (SC) e Manacapuru (AM), textos similares estão sendo debatidos. No Congresso Nacional, deputados da extrema direita usam esse mesmo discurso para tentar legitimar ataques como o PL 1904/24, que equipara aborto após 22 semanas a homicídio — inclusive em casos de estupro.
A ofensiva conservadora contra o aborto legal
A extrema direita não se contenta em impedir a legalização do aborto. Ela quer acabar até com o acesso restrito já previsto em lei (em casos de estupro, risco de morte para a pessoas gestante e anencefalia). O caso do Hospital Municipal Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, é emblemático: referência nacional para aborto legal, teve seus atendimentos suspensos desde 2023 e, mesmo com decisão judicial pela reabertura, segue sem realizar os procedimentos. Esse é o resultado direto da pressão conservadora e do medo institucional de enfrentar o debate.
Essa ofensiva não se limita ao parlamento. Conselhos de medicina têm perseguido profissionais que cumprem a lei, mulheres e meninas têm sido humilhadas nos hospitais, e setores religiosos pressionam por medidas que violam direitos básicos.
A cumplicidade do governo Lula
Diante dessa ofensiva, o governo Lula e o PT têm recuado e se calado. Em alguns momentos, o governo acenou timidamente para os movimentos feministas, com uma retórica afirmando que aborto é questão de saúde pública. Mas não houve nenhum esforço real de ampliar serviços, garantir acesso no SUS ou pautar a legalização como direito democrático elementar. Ao contrário, nas poucas vezes que agiu, foi no sentido de tentar barrar a resolução do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (CONANDA) que orientava o acesso ao aborto desse público em casos de estupro.
O resultado é que, ao buscar manter alianças com setores conservadores, o governo deixa a extrema direita impor sua agenda e mantém o tabu em torno do aborto. Enquanto isso, milhares de mulheres e pessoas com capacidade de gestar, sobretudo pobres e negras, seguem expostas ao risco de abortos inseguros. O governo poderia e deveria ter aberto o debate, realizado campanhas públicas de informação, fortalecido hospitais de referência e protegido profissionais da saúde. Ao não fazê-lo, contribui para manter o estigma e o retrocesso.
28 de setembro: a resposta das ruas
Mas as mulheres não se calaram. No último 28 de setembro, Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, ocorreram importantes manifestações em São Paulo, Belo Horizonte e diversas cidades do país. Foram atos combativos que reafirmaram: aborto legal, seguro e gratuito já!
Em São Paulo, a campanha “Criança não é mãe” reúne dezenas de coletivos, organizações, sindicatos e entidades feministas em defesa do aborto legal e pela reabertura do Hospital Vila Nova Cachoeirinha. Essa frente é exemplo de como é possível unir forças para enfrentar os ataques da extrema direita e exigir que o Estado cumpra sua obrigação.
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Uma luta de toda a classe trabalhadora
A criminalização do aborto é uma política de classe. Quem tem dinheiro pode recorrer a clínicas privadas; quem não tem arrisca a vida em procedimentos inseguros. As principais vítimas são as mulheres trabalhadoras, negras e periféricas mas também homens trans, pessoas não binárias e intersexo que podem engravidar, da nossa classe. Garantir o direito de decidir é lutar pela vida da classe trabalhadora.
Por isso, é tarefa urgente romper o silêncio. Precisamos construir uma grande campanha nacional que unifique sindicatos, movimentos populares e organizações feministas para:
• Barrar projetos como os da “Síndrome pós-aborto” e o PL1904;
• Reabrir imediatamente os serviços de aborto legal fechados;
• Ampliar e garantir atendimento humanizado no SUS;
• Defender os profissionais de saúde perseguidos;
• Lutar pela legalização ampla, segura e gratuita do aborto.
Uma luta de toda a classe trabalhadora
A “síndrome pós-aborto” é uma farsa usada para manter a culpa e a criminalização. A extrema direita avança porque encontra terreno fértil no silêncio e nos recuos do governo Lula/PT. Mas as mulheres têm mostrado que não vão se calar. O 28 de setembro e a campanha “Criança não é mãe” apontam o caminho: mobilização, solidariedade e luta de classe.
Chamamos todos e todas, homens e mulheres, jovens e trabalhadores, a se somarem a essa batalha. Porque a luta pelo direito ao aborto legal e seguro não é apenas das mulheres: é uma luta de toda a classe trabalhadora por vida, dignidade e liberdade.