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A greve, o incêndio e o mito

Lena Leal

3 de abril de 2024
star5 (7 avaliações)
Clara Lemlich, trabalhadora da empresa Leiserson’s

Sou uma operária, uma dessas que estão em greve contra condições intoleráveis. Estou cansada de escutar os oradores(…). Estamos aqui é para decidir se iremos ou não entrar em greve. Apresento uma resolução a favor de declarar a greve geral já

In: Álvarez Gonzáles, Ana Isabel- As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres.
(Editora Expressão Popular, 1ª edição, SP, 2010)

A jovem operária Clara Lemlich, trabalhadora da empresa Leiserson’s abriu caminho no meio da multidão naquela manhã de início de inverno de 1909 em Nova Iorque. Já fora presa 7 vezes pela polícia e a imagino viva, com sua coragem jovem e indignada. Saída das páginas de pesquisa de Ana Gonzáles sobre a história do 8 de Março, é impossível não pensar nesses momentos em que o tempo histórico acelera para permitir a explosão da consciência de classe em dias que sintetizam décadas de represamento revolucionário.

Descobri Clara nas páginas dessa obra que investiga a história do 8 de março, partindo da desmistificação de suas origens para chegar nos acontecimentos desencadeados pelo movimento socialista. Como foi o processo de construção dessa data como Dia Internacional da Mulher? De que forma o dia 8 de Março – data do levante de operárias que deu início à Revolução Russa – foi invisibilizada e substituída por décadas pelo mito fundador de origem estadounidense? Nessa viagem histórica, o livro nos convida a refletir sobre o quanto as datas e os enredos míticos de eventos são marcadores carregados de histórias que explicam, em última instância, como os processos e a longa duração se relacionam de forma dialética com acontecimentos e particularidades.

Ao terminar a leitura do capítulo sobre a fábrica – Triangle Shirtwaist Company – percebe-se fato e lenda se entrelaçando na produção do incêndio como desencadeador “original” do Dia Internacional da Mulher. Houve incêndio com mortes em fábrica têxtil em Nova Iorque? Sim. Houve greve de trabalhadoras têxteis? Sim. Mas em datas e contextos que, mesmo que importantes na história operária dos EUA (onde inclusive outro evento -o Woman’s Day – foi citado por Clara Zetkin ao propor o Dia Internacional da Mulher) não explicam o 8 de Março.

Segundo texto de Gonzáles, as historiadoras Liliane Kandel e François Picq ((Le Mythe des Origines, A propos de la journée internacionale des femmes – La Revue 12, 1982)) afirmam que foi em pleno delírio anti-comunista nos anos 50 que se gestou o encobrimento histórico da construção do 8 de Março sob a bandeira do socialismo internacionalista. Cabe aqui ressaltar que os retrocessos impostos pelo stalinismo aos direitos das mulheres na URSS e Leste Europeu e a recusa da questão das opressões nas pautas dos partidos comunistas colaboraram para cimentar esse apagamento historiográfico. Curioso que nesse processo de construção do mito do incêndio na fábrica como detonador do 8 de Março novas simbologias foram criadas e assimiladas pelas ondas feministas do pós-II Guerra, como a questão da cor lilás – que estaria presente nos tecidos à hora do incêndio da fábrica mas que trata-se de lenda urbana. No contexto de Guerra Fria, faz sentido o apagamento da história “vermelha” do 8 de Março, reforçado pela invisibilização das pautas feministas vinculadas ao socialismo pelas burocracias que usurparam o poder no chamado “bloco socialista”.

Ancorada em estudos anteriores sobre o 8 de Março, a pesquisa descortina, por detrás do imaginário, a história real das lutas das trabalhadoras imigrantes na Nova Iorque do início do século XX.

A greve geral das trabalhadors e o incêndio na Triangle Shirtwaist

Por mais que tenha causado comoção o incêndio do dia 25.03.1911 que matou 146 trabalhador@s (13 homens) – sua importância na historiografia estadunidense se explica por outro motivo: foi nessa fábrica de Nova Iorque que, um ano e meio antes – 27.09.1909 – se iniciou um vigoroso processo de luta que desembocou na greve geral das trabalhadoras têxteis, se alastrando por outras regiões dos EUA. Na pauta, salários, diminuição de jornada e condições salubres de trabalho.

Naquele início do século XX, a região sudeste de Nova Iorque – Lower East Side – era a área mais densamente povoada dos EUA, majoritariamente por imigrantes italianos e judeus da Europa Oriental.

Relatório do Serviço de Controle Sanitário de Nova Iorque (1910) apontava que, das 1.243 oficinas têxteis da cidade, 99% estavam inadequadas em termos de segurança.

Especificamente em relação à Triangle, se entende porque iniciaram a luta – conhecida como “o levante dos 30 mil”. Sendo mais de 500 trabalhadores, em sua maioria mulheres imigrantes, amontoadas nos últimos 3 dos 10 andares de um prédio cujas instalaçōes eram precaríssimas, a repercussão do incêndio remete à tragédia anunciada ao fim da greve geral que durou 3 meses.

Quando a greve termina, no início de 1910, segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, 339 firmas tinham feito acordos com as trabalhadoras. Apenas em 13 – entre elas a do incêndio de 1911, a Triangle Shirtwaist Company – a patronal não negociou a pauta das grevistas.

Naqueles dias de 1911 a memória coletiva da classe e da vanguarda lutadora sabia que a tragédia poderia ter sido evitada.

Do outro lado do Atlântico, Clara Zetkin

Poucos meses antes do incêndio na Triangle Shirtwaist, em agosto de 1910, em Copenhague, Clara Eissner Zetkin propôs um Dia Internacional das Mulheres na Segunda Conferência de Mulheres Socialistas. Oradora brilhante cujos discursos – segundo a pesquisadora Dorothea Reetz – eram “informativos, instrutivos, convincentes e comoventes” (Álvarez González, Ana Isabel, página 60) Clara Zetkin estava escrevendo a história das lutas das mulheres trabalhadoras.

Guardadas todas as proporções das dimensões históricas e por caminhos tortuosos e laços que unem os fios da história da classe operária e suas particularidades, as duas – Clara Lemlich e Clara Zetkin – confirmam que, por trás de todo mito, há fragmentos de verdade. Compreender como se constroem nos ajuda a entender as contradições do presente.

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