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A legalização das drogas e as eleições em São Paulo

Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

18 de setembro de 2024
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Há poucos dias houve uma sabatina da UOL com os candidatos à prefeitura de São Paulo em que o candidato Altino Prazeres, do PSTU, não hesitou em colocar a posição do partido em defesa da legalização do uso de drogas. 

A polêmica da legalização ou proibição das drogas, sempre reaparece nas eleições. O correto posicionamento de Altino causou controvérsia no público que assistia à sabatina. Apesar de ser considerada uma “casca de banana” para deixar os candidatos em uma situação desconfortável, a pergunta em si é correta e importante, e todos os candidatos deveriam responder de forma cristalina como fez o Altino.

É importante porque o consumo de drogas legais e ilegais é alto no Brasil. É importante porque, junto com a questão da legalização do aborto e do casamento LGBTI, é usada como carro chefe da direita e extrema direita, que reduz estes temas a respostas simplistas e plebiscitárias, que se resolvem apertando a tecla “certa” na urna eleitoral. É importante porque o consumo de drogas legalizadas ou ilícitas é sim um grave problema de saúde pública. A guerra às drogas também é usada pelo imperialismo norte-americano em sua política de venda de armas para os países da sua área de influência, ou disputa de influência entre os imperialismos.

Em São Paulo, a questão das drogas se materializa na famosa e incômoda existência da Cracolândia no centro da cidade. De tempos em tempos ocorre alguma iniciativa governamental de repressão aos usuários, às vezes acompanhada de proposta de “tratamento” para esta população. Até hoje, todas as iniciativas governamentais fracassaram. A Cracolândia não só permanece existindo como piorou, inclusive hoje já se fala em várias “minis-Cracolândias” nas diversas regiões da cidade.

Esta ampliação de Cracolândias pela cidade só comprova que a solução do problema está bem longe do uso de cassetetes. Por mais que a violência agrade aos setores mais conservadores, ela tem se mostrado ineficaz.

Parte da população anseia por soluções rápidas e enérgicas por parte dos governantes, no terreno da segurança e saúde pública. Políticos oportunistas, em geral da direita, usam o combate às drogas de maneira sensacionalista, porque sabem que, para além das ideologias, existem famílias dilaceradas em busca de uma solução. A proposta de internação compulsória em massa para usuários de crack tem essa aparência, mas nenhum estudo de saúde pública sério comprova isso.

Mas qual é a abordagem correta em relação a este problema?

A culpa é das drogas?

O consumo abusivo de drogas é apresentado pela mídia, pelas igrejas, pela polícia e, inclusive, por determinados serviços de saúde como de responsabilidade da droga em si. “Fulano se destruiu depois que entrou no vício” é uma ideia comum, que todos já escutamos milhares de vezes. Esta é uma visão parcial e, assim, equivocada do problema.

O problema não é apenas da droga X ou Y. Para facilitar o raciocínio, comparemos com o uso de álcool, que é a droga legalizada cujo consumo excessivo traz inúmeras sequelas orgânicas e sociais. O uso excessivo de álcool é responsável por uma grande porcentagem de acidentes de trânsito com mortes ou mutilações físicas, violência doméstica grave, desnutrição, problemas hepáticos e uma longa lista de agravos. Muita gente consome bebidas alcoólicas, mas apenas uma parcela minoritária se transforma em dependente químico. O mesmo pode ser dito sobre drogas ilegais como a maconha, a cocaína etc. Então, “o problema da droga” deixa de ser apenas ela, mas entra aí um segundo fator, que é a vulnerabilidade de quem a consome. Muitas pessoas consomem, mas só uma parte se transforma em dependente.

Existem fatores genéticos que fazem com que haja essa variação sobre o efeito de drogas nas pessoas. Mas há outros fatores também importantes como a forma como a droga é consumida, o papel que ela cumpre na vida da pessoa, as condições concretas em que se dá a venda delas (legal ou ilegal). Ela pode transitar desde ter um papel religioso (drogas usadas em rituais, como a ayahuasca) até como facilitadoras de sociabilização. Podem cumprir um papel anestesiante da raiva social pelas condições sociais, por exemplo em populações atingidas em cheio pela pobreza e pelo desemprego.

Tendo tudo isso em vista, dá para compreender melhor o fenômeno da Cracolândia em São Paulo. Ela nada mais é do que a concretização material das péssimas condições de vida que boa parte da população enfrenta no seu cotidiano. São vidas marcadas por desestruturação e violência familiar, desemprego e frustrações de uma parcela da sociedade que só pode se limitar a assistir o acesso ao consumo que uma minoria detém no capitalismo.

Uma crueldade inerente ao capitalismo em sua modalidade neoliberal é o crescimento da distância das possibilidades de consumo da minoria rica do resto da população. Este quadro é agravado pelo acesso ao conhecimento trazido pela TV e pela internet. O pobre sabe “das delícias” materiais a que os ricos têm acesso, o que o deixa ainda mais frustrado e infeliz. Some-se a isso ambientes de trabalho hiper concorrenciais, em que um trabalhador é sempre estimulado a passar por cima do outro, seja para ter uma promoção, seja para apenas manter seu emprego.

Acrescentemos a essa caldeira de tensão social o fenômeno crescente de mobilidade de populações inteiras em busca de melhores condições de vida, seja escapando do campo à procura de emprego e educação nas cidades, seja fugindo de guerras ou catástrofes naturais. São populações naturalmente mais vulneráveis aos problemas psíquicos e ao uso abusivo de substâncias.

A guerra às drogas

A chamada guerra às drogas é uma política do imperialismo para justificar o armamento de países aliados, muitas vezes com regimes ditatoriais e corruptos. O apelo da questão do combate ao tráfico e suas quadrilhas serve para dar uma imagem positiva de que as armas estão indo para estes países por uma causa “justa”. Serve também para justificar o armamento interno das agências de segurança dentro dos países imperialistas, particularmente dos EUA. “Explica” chacinas cometidas por forças policiais ao arrepio da lei.  

As ações governamentais policialescas não resolvem para nada o problema dos usuários abusivos de substâncias, pois não atuam nas causas do vício. O usuário pode ser internado à força, mas quando sair da internação encontrará o mesmo cenário social que o levou à dependência química. Mais cedo ou mais tarde, geralmente mais cedo, voltará ao consumo compulsivo, pois o desemprego, a desestruturação familiar, a violência policial contra os pobres, a falta de moradia digna, todos esses fatores permaneceram inalterados. Nunca é demais assinalar que há um corte racial e de classe na população mais vulnerável, pois é justamente nessa população que os índices de desemprego e de carências sociais é mais elevado.

Internação compulsória de centenas, como foi proposto para a “solução” da Cracolândia, é proposta de quem não tem a menor noção nem a vontade de ajudar a população mais vulnerável ao consumo abusivo de substâncias. É importante que a população conheça as modalidades de internação psiquiátrica. Pela lei da reforma psiquiátrica, existem três tipos de internação. A voluntária, que é feita com a concordância do paciente. A involuntária é feita contra a vontade do paciente, mas a pedido da família e após avaliação médica (que tem de ser confirmada no dia seguinte por avaliação de outro médico). A compulsória se dá por ordem judicial, quando o juiz avalia que há risco para o paciente ou para as pessoas no seu entorno.

Então, tanto a internação involuntária como a compulsória são necessariamente casos individuais, situações em que o profissional de saúde ou o juiz avaliam os riscos de uma pessoa em concreto. A ideia de “autorização judicial para internação compulsória de centenas” é uma aberração completamente alheia à lei e principalmente aos objetivos de tratar o dependente químico.

Precisamos de soluções verdadeiras

Apesar das pesquisas indicarem aprovação popular a ações violentas contra os usuários, é preciso fazer uma discussão correta com a população sobre as saídas para lidar com esta questão. 

A proposta de “porrada e bomba” se mostrou fracassada no Brasil e nos EUA. Na realidade, só serviu para criar um círculo vicioso de mais violência policial, abarrotamento das prisões, surgimento de quadrilhas de traficantes cada vez mais sofisticadas, exigindo que se injete mais e mais dinheiro para sofisticar também a repressão. Policiais que se infiltram nas quadrilhas, muitos são corrompidos por suborno, a ponto de chegar em situações em que não se sabe quem é o mocinho e quem é o bandido.

A ilusão de proibir o uso de drogas fracassou nos anos 30 do século passado em relação ao álcool nos EUA. Segue fracassando na guerra às drogas por lá, pois se reprime o uso de uma droga e, logo em seguida, surge outra para substituir. No momento, nos EUA é alarmante o uso de opiáceos, drogas “legais” com prescrição médica.

No Brasil, após a explosão do uso de cannabis, cocaína, crack, agora apareceu o K2/K9, droga sintética muito potente que está se espalhando pela cidade.

Não existem soluções miraculosas para a dependência química, pois como descrevemos ela é fruto de vários fatores (social, biológico, cultural e outros). O tratamento deve ser oferecido desvinculado do marco da segurança pública e inserido num sistema de saúde público, que atue próximo à comunidade e com diversas alternativas e hierarquias de complexidade. Existem experiências com tratamento em unidades básicas de saúde, grupos de ajuda, tratamentos intensivos nos CAPS-AD com ou sem internação, consultórios de rua. A internação pode ou não ser necessária em determinadas fases do tratamento, de preferência deve ser voluntária. 

Esta proposta só é viável no marco de um sistema de saúde público, estatal, universal, de qualidade e com muito mais verbas do que o SUS de hoje. Os trabalhadores que têm planos de saúde privados também não devem ter grandes esperanças de encontrar bons tratamentos para a dependência química, pois são tratamentos longos e custosos, detalhes pouco apreciados pela iniciativa privada.

Do ponto de vista da segurança pública, é necessária uma mudança de 180 graus na política frente ao tema drogas. Deixá-las na ilegalidade só serve para manter a polícia com o foco equivocado de caça aos pequenos traficantes, prisões abarrotadas, tráfico de drogas de má qualidade. Defendemos que a produção e venda das drogas seja controlada pelo Estado, com arrecadação de impostos e controle de qualidade dos produtos. Os impostos arrecadados devem servir para financiamento do sistema público de saúde, atendimento aos dependentes químicos e programas de reabilitação, programas de educação para a saúde nas escolas, comunidades e empresas com ampla divulgação das consequências do uso abusivo de drogas.

Reafirmamos que, embora cada droga seja diferente do ponto de vista bioquímico e cause sensações e sintomas diferentes nos usuários, a abordagem em relação à legalização tem de sair do marco de cada droga e entrar na questão do contexto social, laboral, cultural de cada sociedade. O PSTU não defende o uso de drogas, sejam legais ou ilegais. O PSTU defende tirar este tema do marco da segurança e colocar no marco da saúde pública e dos direitos democráticos dos indivíduos e comunidades.

A regulamentação do uso de drogas no Brasil vive hoje uma situação paradoxal. O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a descriminalização do porte de até 40 gramas de maconha, enquanto o Senado aprovou em segundo turno a PEC 45/2023, que insere no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Esta contradição entre os poderes é reflexo da polarização política tão falada no Brasil. A posição do Senado, além de ultra reacionária, é de uma hipocrisia impressionante, pois mantém legalizado o uso de bebidas alcoólicas. A posição do STF é de um avanço tímido, pois além de se limitar apenas à maconha, não legaliza o seu uso, apenas descriminaliza. Serve para dar uma brecha jurídica de separar consumidor de traficante, mas todos sabem que é fácil para a polícia forjar um aumento do peso encontrado de maconha e prender o usuário.

Por fim, a extinção das causas sociais que estimulam a dependência só poderá se dar em outro tipo de sociedade. Necessitamos de um sistema social onde as relações sejam mais igualitárias, que permita o fim da exploração do trabalho por uma minoria, que propicie que todos tenham acesso ao consumo, à cultura, ao lazer. Só uma sociedade socialista permite que todos desfrutem disso.

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