Cultura

A lei “anti-Oruam” e a criminalização institucional da cultura periférica

Amenor, de São Paulo (SP)

14 de fevereiro de 2025
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O músico Oruam Foto Divulgação

Nesta última quarta-feira (12), o Deputado Kim Kataguiri do União Brasil–SP protocolou, na Câmara dos Deputados, um projeto de lei que proíbe a contratação de shows de artistas para eventos estaduais que, segundo ele, fazem apologia ao crime. Uma lei com o mesmo conteúdo foi proposta na Câmara de São Paulo pela vereadora Amanda Vettorazzo (também do União Brasil–SP) que, em seus vídeos nas redes socais, apelida o projeto de “lei anti-Oruam”, fazendo uma menção direta ao cantor de trap, rap e funk carioca Oruam, de 25 anos de idade.

Kataguiri justifica tal medida alegando que usar o dinheiro do Estado para a contratação de artistas que, em sua ótica direitista, são imorais configura-se “desvio de finalidade”. Pois bem, mas o que existe de fundo nesta lei? Por que a Amanda batizou o projeto com o nome de um artista específico?

Deputado Kim Kataguiri quer criminalizar o funk e a cultura negra periférica Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Oruam é filho de um traficante que teve envolvimento com o CV, e em um de seus shows o cantor pediu pela liberdade de seu pai, o que causou certa controvérsia até mesmo dentro da própria cena. O cantor tem mais de 13 milhões de ouvintes nas plataformas digitais, participa de grandes festivais, e houve quem dissesse que ele, por ter tanta visibilidade, estava romantizando e incentivando o tráfico de drogas. Parece que isso também incomodou os políticos do União Brasil, mas seria hipocrisia dizer que somente este ocorrido tenha sido o chamariz para que se pensasse em uma lei restritiva como esta, que curiosamente nunca se aplicou a nenhum outro gênero musical. Afinal, apologia por apologia, temos o Sertanejo e sua apologia às relações tóxicas e problemáticas de homens para com as mulheres, ou até mesmo imposições religiosas por artistas do mundo gospel em uma sociedade teoricamente laica. Então, qual seria a grande questão com o trap?

Oruam é um jovem negro, favelado, cria da Cidade de Deus (RJ), que embora se posicione por vezes de maneira equivocada sobre diversos assuntos, por hora representa tudo que a direita odeia: artista periférico que não se corrompeu pelo mercado paralelo e ascendeu socialmente através da arte. Mas verdade seja dita, esse ódio e perseguição não começou com Oruam, tampouco com qualquer outro artista de sua geração. O “caça às bruxas” de tudo que simboliza a cultura negra marginal já existia em 1941 com a “Lei da vadiagem” que proibia o samba e a capoeira. Quem também nunca ouviu os relatos dos Racionais MC’s que, em dado momento, tiveram que andar armados devido às constantes ameaças? Sem falar nas chacinas nos bailes funks promovidas pelas polícias, as constantes associações do preto ao crime, ao perigo. Ou seja, trata-se apenas de mais perseguição à juventude negra, apenas mais uma etapa de um processo de genocídio e apagamento histórico da nossa existência.

Oruam postou em suas redes sociais uma reação ao projeto, dizendo que a lei não diz respeito somente a ele, que isso afeta toda a cena. Infelizmente, o cantor nunca esteve tão certo em toda sua vida. Porque, embora a cultura de quebrada já seja na prática tratada como crime pelo Estado, agora estamos diante de uma criminalização formalizada nas leis burguesas, o que me leva a ir além ao pensamento do cantor, porque, se ele diz que isso não afeta só a ele se referindo a outros artistas, completo dizendo que esse debate não se limita ao cantor A ou B. É um ataque sobretudo aos negros e negras no geral e, por consequência, toda sua forma de fazer e consumir arte. Um exemplo trágico disso é o caso dos 9 de Paraisópolis, 9 jovens (entre eles uma menina) que foram assassinados num beco por policiais pelo simples fato de estarem no baile funk da DZ7. O crime? Querer curtir uma festa com os seus. O caso segue até hoje sem uma resposta minimamente coerente da “justiça”, que seria a condenação e prisão de todos os envolvidos no massacre. Mas, infelizmente, 5 anos depois, as famílias ainda passam pela humilhação da impunidade e do descaso, fora as inúmeras provocações dos assassinos de seus filhos.

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Recentemente, tivemos também um outro exemplo de silenciamento que foi a invasão da casa de capoeira do Mestre Meinha pela prefeitura de São Paulo, quando quebraram instrumentos, itens de decoração, entre outras coisas, segundo relatos do aluno Dj Capoeira nas redes sociais. E não é como se não houvesse outros casos, são infinitos, cotidianos, não só em espaços artísticos do povo preto, mas também religiosos e espirituais como os terreiros que são invadidos, incendiados e que têm suas lideranças perseguidas e mortas.

Com este panorama, foi nos apresentado grandes contradições nas eleições municipais de 2024, onde os maiores candidatos representantes da direita, Nunes e Marçal, cooptaram para suas campanhas as duas maiores produtoras de funk do país: GR6 e Love Funk. Isso com o objetivo de parecerem amigos da quebrada quando, na verdade, suas posturas foram e são exatamente essas que destacamos: travar uma guerra contra os pobres e negros nas periferias. Ou seja, aqui a arte é só mais um aspecto do nosso povo que está sendo atacado, mas isso é um detalhe, o projeto maior é o extermínio de uma classe social inteira.

Voltando sobre a polêmica do projeto de lei, em um podcast o MC Hariel, que é um dos maiores nomes do funk, ao ser perguntado sobre o tema, disse algo muito real: que a burguesia não quer que nós contemos as nossas próprias histórias, que, se na favela há crimes, drogas etc., qual o problema de quem vive essa realidade relatar isso em suas produções culturais? E essa é uma ótima pergunta que também pode ser respondida pelo fato de o capitalismo lucrar se apropriando da nossa força produtiva, física, intelectual, cultural, se colocando como donos e protagonistas das nossas vivências e narrativas, e quando não, nos censura e nos pune por qualquer tentativa de emancipação, mesmo que parcial.

Trotsky em alguns escritos sobre cultura diz, sob a luz do marxismo, que se tudo que há no mundo reflete a burguesia de seu tempo, com a cultura não é diferente, e neste caso, cultura para Trotsky é aquilo que o ser humano modifica, altera e intervém. E como vivemos em uma sociedade capitalista, estamos sempre à mercê da modificação, alteração e intervenção da classe dominante sobre nossas próprias vidas.

O fato é que o capitalismo produz desigualdade e violência, e coloca o povo preto e a classe trabalhadora nesse lugar de marginalidade e clandestinidade, nos jogam nos becos e vielas, nos forçam a atitudes desesperadas para nossa sobrevivência e, nesse corre do dia a dia, muitos jovens encontrarão seus próprios meios de saírem da miséria e prosperar financeiramente. E, como estamos em uma sociedade racista onde não há igual oportunidade, tampouco direitos democráticos para todos, para muitos o caminho do crime será o meio de alcançar seus objetivos. E após criar crises, desigualdades e barbáries para nós, o capitalismo irá nos punir com cadeia ou bala sempre que puder. Nós quem pagamos sempre a conta de todo o caos que um punhado de poderosos impõe ao restante do mundo.

Baile funk no Rio de Janeiro Foto Casa Coletiva

Diante disso temos um grande desafio, porque não existe libertação parcial, não é possível falarmos de expressões artísticas livres sem falar antes de pessoas livres, e não há, principalmente para nós de grupos oprimidos, liberdade possível dentro do sistema capitalista, o que nos obriga a nos chocar diretamente com os interesses dos ricos e poderosos do capital e toda sua visão eugenista e elitizada de organizar o mundo como bem entendem. Por isso, não é um detalhe a construção de uma sociedade socialista, mas sim o fator que condiciona a nossa liberdade, inclusive criativa, mas para isso requer organização e união enquanto classe explorada.

Refletindo sobre a opressão que os ingleses submetiam os irlandeses, Marx fala que, enquanto a classe trabalhadora briga entre ela, compete entre ela, as condições de vida e salários são cada vez mais rebaixados, porque nesta lógica sempre haverá um grupo mais ferrado que se submeterá à todas as barbáries para sobreviver, o que coloca a classe de conjunto em uma constante piora. O debate racial e periférico não foge disso, é uma perda tremenda para o conjunto da nossa classe quando Nunes e Marçal cooptam as maiores produtoras de funk do país e parte de seus consumidores, transformando arte marginal em produto. Assim como é uma perda terrível de conjunto quando um MC é perseguido, mesmo que o carinho por ele ou por ela não seja unânime.

E como nos portar no meio dessa confusão? A nossa postura como socialistas revolucionários é, antes de qualquer coisa, repudiar esse projeto de lei, pressionar de alguma maneira (dentro e fora da internet) o presidente da Câmara para que não aprove este projeto extremamente racista e elitista e não depositarmos qualquer confiança nas instituições da justiça burguesa e os governos de direita e da esquerda caviar que a sustenta, e com isso, propor auto-organização da nossa classe para construir o socialismo, enquanto também lutamos por direitos e pautas imediatas. Por isso fica meu convite para que você que está lendo esse texto, faça uma experiência em nossa organização/coletivo.

Por fim, devemos lembrar que o rap não pode jamais se moldar às imposições dadas pela realidade. Muito pelo contrário, o rap é antes de tudo uma arma que podemos utilizar justamente para modificar realidade, onde arte e luta se tornam uma coisa só e, através dessa junção, resistirmos aos ataques de quem nos odeia, que possamos fazer jus ao quinto elemento da cultura hip hop para não sermos enganados: CONHECIMENTO!

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