A questão ucraniana
Publicado originalmente no site da LIT-QI
León Trotsky
A questão ucraniana, que muitos governos e tantos “socialistas” e mesmo “comunistas” trataram de esquecer ou relegar às profundidades da história, acha-se novamente na ordem do dia, desta vez com força redobrada.
O recente agravamento da questão ucraniana relaciona-se intimamente com a degeneração da União Soviética e da Comintern, os êxitos do fascismo e a iminência de uma nova guerra imperialista. Crucificada por quatro estados, a Ucrânia ocupa agora no destino da Europa a mesma posição que uma vez ocupou a Polônia, com a diferença de que as relações mundiais são atualmente muito mais tensas e os ritmos do processo muito mais acelerados. No futuro imediato, a questão ucraniana está destinada a jogar um importante papel na vida europeia. Não é à toa que Hitler propôs tão ruidosamente a criação de uma “Grande Ucrânia”; e não foi também por menos que arrumou esta questão com tanta rapidez.
A Segunda Internacional, exprimindo os interesses da burocracia e da aristocracia operária dos estados imperialistas, ignorou completamente a questão ucraniana. Inclusive, a sua ala esquerda não lhe dedicou a necessária atenção. Basta lembrar como Rosa Luxemburgo, muito embora o seu brilhante intelecto e o seu espírito genuinamente revolucionário, julgou admissível afirmar que a questão ucraniana era a invenção de intelectuais. Esta posição deixou uma profunda marca até no próprio Partido Comunista Polonês. Os dirigentes oficiais da seção polonesa da Comintern viram a questão ucraniana mais como um empecilho do que como um problema revolucionário. Daí as constantes tentativas oportunistas de desviar a questão, suprimi-la, passá-la silenciosamente por alto ou postergá-la para um futuro indefinido.
O Partido Bolchevique, não sem dificuldade e só gradualmente, sob a constante pressão de Lênin, pôde adquirir uma abordagem correta da questão ucraniana. O direito à autodeterminação, quer dizer, à separação, foi estendido igualmente por Lênin quer para os poloneses, quer para os ucranianos. Ele não reconhecia nações aristocráticas. Toda tentativa de evadir ou adiar o problema de uma nacionalidade oprimida considerava-a expressão do chauvinismo grão-russo.
Após a tomada do poder, teve lugar no partido uma séria luta pela solução dos numerosos problemas nacionais herdados da velha Rússia tzarista. No seu caráter de comissário do povo para as nacionalidades, Stálin representou invariavelmente a tendência mais burocrática e centralista. Isto tornou especialmente evidente na questão da Geórgia e na da Ucrânia [2]. Até hoje, a correspondência não foi publicada. Esperamos poder editar a pequena parte de que dispomos. Cada linha das cartas e propostas de Lênin vibra com a urgência de conformar, na medida do possível, as nacionalidades que tinham sido oprimidas no passado. Em troca, nas propostas e declarações de Stálin, salientava invariavelmente a tendência para o centralismo burocrático. Com o fim de garantir “necessidades administrativas”, quer dizer, os interesses da burocracia, as mais legítimas reclamações das nacionalidades oprimidas foram declaradas manifestações de nacionalismo pequeno-burguês. Estes sintomas já podiam perceber-se bem cedo, em 1922-1923. Desde essa altura, tiveram um monstruoso crescimento, levando a uma completa asfixia qualquer tipo de desenvolvimento nacional independente dos povos da URSS.
Na concepção do velho Partido Bolchevique, a Ucrânia Soviética estava destinada a se converter no poderoso eixo em volta do qual adeririam as outras seções do povo ucraniano. Durante o primeiro período da sua existência, é indiscutível que a Ucrânia Soviética foi uma poderosa força de atração a respeito das nacionalidades, além de estimular a luta dos operários, os camponeses e a intelectualidade revolucionária da Ucrânia Ocidental escravizada pela Polônia. Mas, durante os anos da reação termidoriana, a posição da Ucrânia Soviética e, com ela, a reclamação da questão ucraniana no seu conjunto, mudou bruscamente. Quanto mais profundas foram as esperanças despertadas, mais tremendas foram as desilusões.
A burocracia também estrangulou e saqueou o povo da Grã-Rússia. Mas nas questões ucranianas as coisas complicaram-se ainda mais pelo massacre das esperanças nacionais. Em nenhuma outra parte as restrições, purgas, repressões e, em geral, todas as formas de mentiras burocrática assumiram dimensões tão assassinas como na Ucrânia, ao tentar esmagar poderosos anseios de maior liberdade e independência profundamente arraigados nas massas. Para a burocracia totalitária, a Ucrânia Soviética tornou-se uma divisão administrativa da unidade econômica e de uma base militar da URSS. Que não fique qualquer dúvida: a burocracia de Stálin erige estátuas à memória de Shevchenko, mas o faz apenas com o fim de esmagar mais minuciosamente o povo ucraniano sob o seu peso e obrigá-lo a cantar hinos à camarilha violadora do Kremlin no idioma do Kobzarii [3].
A respeito das partes da Ucrânia que hoje estão fora das suas fronteiras, a atitude atual do Kremlin é a mesma que com todas as nacionalidades oprimidas, as colônias e semicolônias: são moedas de troca nas suas combinações internacionais com os governos imperialistas. No recente 18º Congresso do “Partido Comunista”, Manuilski, um dos mais repugnantes renegados do comunismo ucraniano, explicou com bastante franqueza que não só a URSS, como também a Comintern (a “falsa-união” segundo a formulação de Stalin) recusavam solicitar a emancipação dos povos oprimidos quando os seus opressores não eram inimigos da camarilha moscovita no poder. Stálin, Dimitrov e Manuilski defendem atualmente a Índia contra o Japão, mas não contra Inglaterra. Os burocratas do Kremlin estão prontos a ceder de vez a Ucrânia Ocidental à Polônia em troca de um acordo diplomático que lhes pareça proveitoso. Ficam longe os dias em que só se atreviam a episódicas combinações.
Não fica rastro da anterior confiança e simpatia das massas ucranianas pelo Kremlin. Desde a última “purga” assassina na Ucrânia, ninguém no Ocidente quer passar a fazer parte da “satrapia” do Kremlin, que continua a levar o nome da Ucrânia Soviética. As massas operárias e camponesas da Ucrânia Ocidental, da Bukovina, dos Cárpatos ucranianos, estão confundidas: a quem recorrer? O que pedir? Esta situação desvia naturalmente a liderança para as camarilhas ucranianas mais reacionárias, que exprimem o seu “nacionalismo” tentando vender o povo ucraniano a um ou outro imperialismo em pagamento de uma promessa de independência fictícia. Sobre esta trágica confusão baseia Hitler a sua política na questão ucraniana. Dissemos numa ocasião: se não fosse por Stálin (por exemplo, a fatal política da Comintern na Alemanha), não haveria Hitler. A isso pode acrescentar-se agora: se não fosse pela violação da Ucrânia Soviética por parte da burocracia estalinista, não haveria política hitlerista na Ucrânia.
Aqui não vamos nos deter para analisar os motivos que levaram Hitler a descartar, pelo menos por um tempo, a palavra de ordem da “Grande Ucrânia”. Estes motivos devem procurar-se, de uma parte, nas fraudulentas ligações do imperialismo germânico e, de outra, no temor de evocar um espírito maligno que poderia ter resultado difícil de exorcizar. Hitler presenteou os sanguinários húngaros com os Cárpatos ucranianos.
Embora não o fizesse com a aprovação expressa de Moscou, mas pelo menos com a segurança de que esta aprovação viria no futuro. É como se Hitler tivesse dito a Stálin: “Se estivesse me preparando para atacar a Ucrânia Soviética amanhã, teria mantido os Cárpatos em minhas mãos”. Em resposta, Stálin, no 18º Oitavo Congresso, saiu abertamente em defesa de Hitler contra as calúnias das “democracias ocidentais”: Hitler tenta atacar a Ucrânia? Nada disso! Lutar contra Hitler? Não há a menor razão para isso. Obviamente, Stálin interpreta como um ato de paz a transferência dos Cárpatos ucranianos à Hungria.
Isto significa que parte do povo ucraniano tornou-se moeda de troca para os cálculos internacionais do Kremlin. A Quarta Internacional deve compreender com clareza a enorme importância da questão ucraniana, não apenas no destino do Leste e Sudeste europeus, mas da Europa no seu conjunto. Trata-se de um povo que demonstrou a sua viabilidade, numericamente igual à população da França e que ocupa um território excepcionalmente rico e, aliás, da maior importância estratégica. A questão da sorte da Ucrânia está colocada em todo o seu alcance. Cumpre uma palavra de ordem clara e definida, que corresponda à nova situação. Em minha opinião, há na atualidade uma única palavra de ordem: Por uma Ucrânia Soviética de operários e camponeses, unida, livre e independente.
Este programa está, antes de tudo, em irreconciliável contradição com os interesses das três potências imperialistas: Polônia, Romênia e Hungria. Só pacifistas irrecuperavelmente imbecis são capazes de julgar que a emancipação e unificação da Ucrânia pode levar-se a termo por meio de pacíficas conversas diplomáticas, referendos ou decisões da Liga das Nações, etc. Com certeza, não são melhores as soluções que os “nacionalistas” propõem, que consistem em se colocarem ao serviço de um imperialismo contra o outro. A tais aventureiros, Hitler deu-lhes uma impagável lição entregando (por quanto tempo?) os Cárpatos aos húngaros, que imediatamente exterminaram não poucos ucranianos leais. Enquanto a questão depender do poderio militar dos Estados imperialistas, a vitória de um bando ou outro só pode significar um novo desmembramento e uma vassalagem ainda mais brutal do povo ucraniano. O programa de independência da Ucrânia na época do imperialismo está direta e indissoluvelmente ligado ao programa da revolução proletária. Seria criminoso alimentar ilusão alguma sobre isso.
Mas – gritarão em coro os “amigos” do Kremlin – a independência da Ucrânia Soviética significaria a sua separação da URSS? O que tem isso de terrível?, contestamos. É-nos alheio o culto apaixonado pelas fronteiras estatais. Não defendemos a posição de uma totalidade “unida e indivisível”. Depois de tudo, inclusive a constituição da URSS reconhece o direito dos seus povos federados à autodeterminação, quer dizer, à separação. Assim, nem sequer a própria oligarquia do Kremlin ousa negar tal princípio, embora só tenha vigência no papel. A mais mínima tentativa de apresentar abertamente a questão de uma Ucrânia independente significaria a imediata execução sob o cargo de traição. Mas é precisamente este desprezível equívoco, esta desapiedada perseguição de todo pensamento nacional livre, o que tem levado as massas trabalhadoras da Ucrânia, em grau muito maior do que as da Grã-Rússia, a considerar monstruosamente opressivo o domínio do Kremlin. Perante tal situação interna, é naturalmente impossível falar que a Ucrânia Ocidental se una voluntariamente à URSS, do modo como esta é atualmente. Por consequência, a unificação da Ucrânia pressupõe a libertação da Ucrânia Soviética da bota stalinista. Também nesta questão a camarilha bonapartista colherá o que tem plantado.
Mas, não significaria isto o enfraquecimento militar da URSS? Uivarão com horror os “amigos” do Kremlin. Respondemos que o enfraquecimento da União Soviética se deve às tendências centrífugas em permanente crescimento que a ditadura bonapartista gera. Em caso de guerra, o ódio das massas à camarilha governante pode levar ao colapso das conquistas de Outubro. A fonte dos sentimentos derrotistas acha-se no Kremlin. Em troca, uma Ucrânia Soviética independente converter-se-ia, embora apenas fosse por próprio interesse, num poderoso baluarte sul-ocidental da URSS. Quanto mais rápida for socavada, derrubada, esmagada e varrida a atual casta bonapartista, mais firme tornará a defesa da República Soviética e mais seguro está o seu futuro socialista.
Naturalmente, uma Ucrânia independente de operários e camponeses poderia a seguir unir-se à Federação Soviética; mas voluntariamente, sobre condições que ela mesma julgasse aceitáveis, o que por sua vez pressupõe uma regeneração revolucionária da URSS. A autêntica emancipação do povo ucraniano é inconcebível sem uma revolução ou uma série de revoluções no Ocidente, que possam conduzir em última instância à criação dos estados unidos soviéticos da Europa. Uma Ucrânia independente poderia unir-se a esta federação como membro igualitário e indubitavelmente fá-lo-ia. A revolução proletária na Europa, por seu turno, não deixaria em pé nem uma pedra da repugnante estrutura do bonapartismo stalinista. Nesse caso, seria inevitável a estreita união dos estados unidos soviéticos da Europa e a regenerada URSS, e representaria infinitas vantagens para os continentes europeu e asiático, incluindo, com certeza, a Ucrânia. Mas aqui estamos a desviar-nos para questões de segunda ou terceira ordem. A questão de primeira ordem é a garantia revolucionária da unidade e independência da Ucrânia de operários e camponeses na luta contra o imperialismo, de uma parte, e contra o bonapartismo moscovita, de outra.
A Ucrânia é especialmente rica em experiências de falsos caminhos de luta para atingir a emancipação nacional. Ali, tudo foi testado: a Rada [governo] pequeno-burguesa, e Skoropadski, Petlura, uma “aliança” com os Hohenzollern e combinações com a Entente [4]. Após estes experimentos, só cadáveres políticos podem continuar a depositar esperanças em qualquer fração da burguesia ucraniana como líder da luta nacional pela emancipação. Unicamente o proletariado ucraniano é capaz não só de realizar esta tarefa – revolucionária em essência -, como também de tomar a iniciativa para conseguir a sua solução. O proletariado e só o proletariado pode congregar à sua volta as massas camponesas e a intelectualidade nacional genuinamente revolucionária.
Ao começo da última guerra imperialista, Melenevski (“Basok”) e Skoropis-Yeltujovski tentaram colocar o movimento de libertação ucraniano sob a ala de Ludendorff, general dos Hohenzollern. Para tal, disfarçaram-se de esquerdistas. Os marxistas revolucionários expulsaram-nos a pontapés. Eis a forma como devem agir os revolucionários no futuro. A iminente guerra criará uma atmosfera favorável a todo o tipo de aventureiros, caçadores de milagres e buscadores do tosão de ouro. Estes cavalheiros, que têm especial preferência para aquecer as mãos no fogo da questão nacional, não devem ser admitidos nas fileiras do movimento operário. Nem o mais mínimo compromisso com o imperialismo, seja fascista ou democrático! Nem a mais mínima concessão aos nacionalistas ucranianos, sejam clerical-reacionários ou liberal-pacifistas! Não à “frente popular”! Completa independência do partido proletário como vanguarda dos trabalhadores!
Esta é a política correta para a questão ucraniana. Falo aqui pessoalmente e em meu próprio nome. Cumpre abrir a discussão internacional sobre o tema. O primeiro lugar nesta discussão corresponderá aos marxistas revolucionários ucranianos. Vamos escutá-los com grande atenção. Mas convém-lhes apressar! Resta pouco tempo para preparativos!
22 de abril de 1939
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Notas:
A questão ucraniana: Socialist Appeal, 9 de Maio de 1939, onde se intitulava “O problema da Ucrânia”.
[2] No verão de 1922 surgiram desavenças sobre a maneira em que a Rússia controlava as repúblicas não russas da Federação Soviética. Stalin estava por apresentar uma nova constituição, muito mais centralista que a sua predecessora de 1918, que restringiria os direitos das nacionalidades não russas transformando a Federação de Repúblicas Soviéticas numa União Soviética, à qual se punham com toda a força georgianos e ucranianos. Lenin, desta vez, apoiou Stalin; em Dezembro de 1922, depois de receber o relatório de uma comissão de inquérito independente que tinha enviado à Geórgia, mudou de opinião sobre os acontecimentos nessa região. Propôs então que os direitos dos georgianos, ucranianos e outras nacionalidades não russas eram mais importantes que as necessidades de centralização administrativa que aduzia Stalin. Lenin exprimiu esta opinião no seu artigo “A respeito do problema das nacionalidades ou sobre a ‘autonomização’”.
[3] Taras Shevchenko (1814-1861): poeta ucraniano que chegou a ser considerado o pai da literatura nacionalista do seu país. Fundou uma organização para promover a igualdade social, a abolição da escravatura, etc. Continua a ser o símbolo das aspirações e fins do povo ucraniano. Kobzar foi o seu primeiro livro de poesias (publicado em 1840), considerado geralmente como uma das maiores obras da literatura ucraniana.
[4] Pavel Skoropadski (1873-1945): general do exército czarista, em 1918 foi durante um breve período o governador títere da Ucrânia quando as tropas alemãs ocuparam o país e dissolveram a Rada. O seu regime caiu logo após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Simom V. Petlura (1877-1926): foi socialdemocrata de direita antes da Revolução. Em Junho de 1917 foi designado secretário geral para assuntos militares da Rada ucraniana. Aliou-se com a Polônia na guerra soviético-polaca de 1920.