A Rússia sob Putin
Publicado originalmente no site da LIT-QI
Diego Russo
A restauração do capitalismo na URSS nos anos 80, realizada pelas mãos do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), conduziu, como havia previsto Trotsky ainda nos anos 30 do século passado, a uma queda no nível de vida da população equivalente à de uma guerra.
A queda na produção industrial foi mais acentuada do que a sofrida durante a 2ª Guerra Mundial. De 2ª potência econômica do mundo, de ser o primeiro país a enviar um ser humano ao espaço, se tornou um mero exportador de produtos primários, como gás, petróleo e minérios. A educação e saúde públicas, antes motivo de orgulho nacional, foram sucateadas. Professores, médicos e enfermeiros passaram a viver na miséria, cobrando pequenos subornos para poderem sobreviver. As conquistas sociais da revolução foram sendo eliminadas uma a uma. Ao contrário do que diziam os defensores do capitalismo, que a restauração capitalista traria riqueza e prosperidade, se confirmou, uma vez mais, o prognóstico de Trotsky, de que a restauração capitalista só traria retrocessos.
A restauração do capitalismo na ex-URSS não foi resultado da ocupação do país por potências imperialistas. A restauração do capitalismo foi implementada pela mão do PCUS, com Gorbachev à cabeça, e acompanhada de discursos “socialistas e leninistas” para confundir a opinião pública. Foi o stalinismo, e nenhum outro, quem restaurou o capitalismo. Mas não demorou a reação das massas contra mais este crime da burocracia stalinista. A restauração capitalista se iniciou em 1986, e já em 1988 explode uma onda de lutas por várias regiões da antiga URSS, que atinge seu ápice em 1989, unificando demandas de nacionalidades oprimidas com demandas econômicas da classe trabalhadora, com a classe operária na linha de frente. Este imenso levante popular derruba primeiramente o monopólio do poder do PCUS (art. 6 da Constituição Soviética), e segue até a derrubada deste partido, responsável pela restauração capitalista. Este processo leva à independência de uma série de nações, como Ucrânia, Belarus, Moldávia, os países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia), países do Cáucaso Sul (Azerbaijão, Armênia e Georgia), países centro-asiáticos (Cazaquistão, Quirguízia, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão). Um processo que se dá conjuntamente aos levantes que derrubaram as ditaduras stalinistas por todo o Leste Europeu (Polônia, Romênia, Hungria, Bulgária, ex-Tchecoslováquia, ex-Alemanha Oriental, ex-Iugoslávia, Albânia), num verdadeiro efeito dominó. Uma revolução continental de fato, só comparável, pela sua extensão e resultados, à onda de levantes que varreu o nazismo da Europa ao final da Segunda Guerra Mundial.
Uma revolução que foi suficientemente forte para derrubar uma dezena de ditaduras de uma só vez, mas que não deteve o processo de restauração capitalista. O que não pode surpreender, já que a restauração foi levada a cabo pelo próprio Partido Comunista, e qualquer oposição de esquerda à ditadura stalinista havia sido duramente reprimida ao longo de mais de meio século. Simplesmente não havia na URSS e no Leste Europeu uma organização política com influência nas massas e contrária à restauração e privatizações.
Após a derrubada do regime do PCUS, Boris Yeltsin, promovido por Gorbachev e também ex-dirigente do Partido Comunista, assume o poder na Rússia, a maior das repúblicas da antiga URSS. O governo Yeltsin foi a cara do desastre econômico resultante da restauração capitalista. Um alcoólatra, que representava os interesses da nova burguesia comercial e bancária surgida da pilhagem dos anos anteriores, cercado de assessores ligados aos imperialismos americano e europeus, e que entregava o país a preço de banana.
Nestes anos, a imensa onda de resistência popular iniciada em 1988 derrota a tentativa de golpe militar para reestabelecer a ditadura em 1991, e segue num processo de lutas, greves e bloqueios de estradas até o final da década de 90, paralisando o Governo Yeltsin. Essas lutas desembocam na chamada “guerra dos trilhos”, em 1998, onde mineiros de todo o país, com amplo apoio da população, bloqueiam todas as vias férreas, exigindo o pagamento de salários atrasados. A luta se estende por todo o país, colocando na ordem do dia o Fora Yeltsin e a demissão de todo o governo. São mais de 10 anos, de 1988 a 1999, de lutas heroicas e ininterruptas da classe trabalhadora russa, com a classe operária em sua linha de frente, impedindo qualquer estabilização de alguma alternativa capitalista.
Em resumo, a burocracia stalinista, que havia destruído fisicamente o bolchevismo nos anos 30 do século passado, ao não ter sido derrubada pelas massas a tempo, restaura o capitalismo nos anos 80, se convertendo na nova burguesia do país. E na sequência, as massas saem às ruas em luta contra as consequências sociais da restauração, derrubando a ditadura stalinista-burguesa, e impedindo, com a força de sua revolta, que se estabilize um novo poder burguês. A história até este momento confirmou as previsões de Trotsky.
Mas esta é metade da história. Há ainda uma segunda metade que, como marxistas, temos a obrigação de explicar. Na virada do milênio, Putin chega ao poder, indicado por Yeltsin. E esses vinte e tantos anos com Putin à cabeça da Rússia foram diferentes dos anos Yeltsin.
Putin estabiliza politicamente o país, interrompe o processo de autodeterminação dos povos que habitam o território da antiga URSS, centraliza a burguesia russa, reafirma a influência russa sobre a maior parte dos países e povos que haviam sido parte da URSS e se firma como um ator importante na geopolítica mundial. Desmonta o movimento grevista e os sindicatos e interrompe a onda de greves no país. Há uma relativa melhora no nível de vida de parte da população russa (até 2014), inclusive melhorias nos serviços públicos, pelo menos nas grandes cidades. No auge deste período, a classe média russa podia viajar para o exterior nas férias, comprar carros de marcas estrangeiras ao invés dos antigos Ladas, sentir-se como “verdadeiros europeus”.
Segundo a propaganda ideológica do regime russo, “a Rússia, antes de joelhos, se ergue novamente”. Durante duas décadas, Putin contava com índices de apoio popular bastante elevados. Intervém ativamente na Síria, Líbia, Ucrânia, Venezuela, Cáucaso, Belarus, Ásia Central, etc. Anexou a Crimeia à Rússia e mantém bolsões pró-russos dentro das fronteiras de vários outros países. É ídolo da chamada “nova direita europeia” e, ao mesmo tempo, de parte da esquerda latino-americana, em especial a de origem stalinista.
É este processo que tentaremos explicar neste artigo. Como se deu esta virada na situação política na transição do Governo Yeltsin para o de Putin? Como que uma situação revolucionária se transformou em reacionária? De onde veio a pretensa “força” de Putin? Qual o caráter de seu governo e regime, e quais as perspectivas para o país e regiões próximas?
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Petróleo, gás e imigração massiva
Geralmente, os analistas ocidentais se remetem a uma razão fundamental para explicar o êxito de Putin – os altos preços do gás e petróleo nas últimas duas décadas. E de fato, a Rússia ocupa o 2º lugar do mundo tanto em produção como em exportação destes combustíveis fósseis. E os preços se mantiveram consistentemente elevados até o início da crise mundial, e mesmo depois de uma queda acentuada, vêm se mantendo altos no último período. Isso possibilita gerar um sobrecaixa elevado para os cofres russos. O que por sua vez permite mitigar alguns efeitos da restauração, como manter uma série de serviços públicos que foram destruídos em outros países onde se restaurou o capitalismo, ou ter um plano mais lento de privatizações. A alta renda petroleira acumulada pelo estado permite impostos baixos e a manutenção de serviços públicos em níveis aceitáveis, o que tem efeitos no nível de vida da população. Não existe a necessidade de se recorrer à saúde e educação privadas, apesar de que frequentemente é necessário pagar pequenos subornos pelos serviços. As tarifas públicas, como água, gás, calefação e eletricidade, subiram bastante de preço, mas ainda seguem em patamares baixos, se comparadas com outros países. A gasolina é mais barata também, apesar de vir subindo.
Some-se ao boom do petróleo o crescimento econômico mundial, com atração de investimentos externos, que permitiram um relativo crescimento também da economia russa, utilizando-se amplamente da força de trabalho imigrante barata das ex-repúblicas soviéticas, em especial da Ásia Central e do Cáucaso. A Rússia se tornou neste período o terceiro país que mais recebia imigrantes no mundo, atrás apenas dos EUA e Alemanha. Os tadjiques, quirguizes e uzbeques, assim como ucranianos, belarussos e povos do Cáucaso, passaram a compor uma parcela significativa e muito explorada da classe operária na Rússia. A decadência econômica em seus países obrigava estes trabalhadores a emigrarem à Rússia para poderem sustentar suas famílias. A alta cotação do rublo até 2014, em função do boom do petróleo, garantia que mesmo com salários baixos, estes imigrantes pudessem enviar parte de seus salários a suas famílias em seus países de origem. As remessas de imigrantes em muitos casos era a principal fonte de recursos em alguns destes países. Para efeito de comparação, os salários nas fábricas e canteiros de obras na Rússia são hoje inferiores aos salários em posições equivalentes na China.
Mas estes elementos econômicos são insuficientes para explicar o conjunto da questão. Não é o petróleo ou a mão de obra imigrante que explicam os baixos salários, a atomização da sociedade, a ausência de organizações da classe trabalhadora, o chauvinismo russo, as ideologias reacionárias, etc. Afinal, nem todos os países exportadores de petróleo e gás, ou que recebem imigrantes em massa, gozam da estabilidade que possui o regime russo. Para compreendermos a questão, é necessário somar, aos fatores econômicos, também fatores POLÍTICOS.
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A Guerra da Chechênia
Houve um acontecimento que marcou a transição do Governo Yeltsin para o Governo Putin – a Segunda Guerra da Chechênia (1999). Durante e após a dissolução da URSS, movimentos nacionais reprimidos por décadas de stalinismo vieram à tona em diversas regiões da Rússia. O ponto mais “quente” neste sentido era o Cáucaso Norte, englobando uma série de povos e regiões historicamente oprimidas, como a Ingushetia, Daguestão, Kabardino-Balcária e Chechênia, entre outras. A Federação Russa tem cerca de 160 nacionalidades diferentes, oprimidas pela amplamente majoritária nacionalidade russa. A Rússia com Yeltsin havia sido derrotada na Primeira Guerra da Chechênia (1994), que vivia então como uma região de fato independente. E o Daguestão ia pelo mesmo caminho, o que levaria à perda de toda a região do Cáucaso russo, que por sua vez poderia servir de gatilho a outros movimentos independentistas.
É neste momento que Yeltsin nomeia Putin (ex-agente da KGB e diretor de sua sucessora, a FSB) como Primeiro-ministro e sucessor. Putin é nomeado em agosto de 1999 e já em setembro coordena as operações contra o movimento nacional no Daguestão e inicia a Segunda Guerra da Chechênia. A guerra é brutal, a capital Grosniy é destruída pela artilharia russa, o movimento nacional é massacrado, e um setor da burguesia chechena, liderado pelo clã Kadyrov, fecha um acordo com Putin, para ocuparem o poder, subordinados a Moscou, construindo um regime ultrarreacionário e repressor. Atentados terroristas em território russo preparam a opinião pública para um apoio massivo às ações militares de Putin no Cáucaso. Há sérios indícios de que estes atentados tenham sido fabricados pelo próprio governo russo (a FSB). Cumprem o papel que os atentados de 11 de setembro cumpririam para Bush um pouco mais tarde, dando-lhe a oportunidade para ganhar a opinião pública, restringir liberdades democráticas, centralizar o Estado e partir para uma agressão militar a outros povos.
Desta forma, Putin e o regime da FSB ganham força política, derrotam os movimentos independentistas e sindicais, constroem a ideologia de que o país estaria de novo “se levantando dos joelhos”, e de uma “reconstrução do Império Russo”. Putin usa esta força política para disciplinar e centralizar a burguesia russa ao seu redor, eliminando descontentes, limpando o espaço político de opositores e construindo um regime fortemente bonapartista, onde todas as demais instituições se subordinam a Putin e à poderosa FSB. Um regime cuja tarefa principal é impedir a autodeterminação de povos sob controle de Moscou e preservar o status da Rússia como uma semicolônia privilegiada, que mantém influência (e ganhos) em países da ex-URSS ou próximos a ela. Portanto, o regime encabeçado por Putin é um regime estruturalmente reacionário internamente e diretamente contrarrevolucionário em relação a processos de independência nacional em sua área de influência.
A Frente Popular com o Partido Comunista em 1999 prepara a derrota
Como Putin conseguiu realizar esta transição, desde uma imensa onda de insatisfação popular e lutas até a vitória na Segunda Guerra da Chechênia e a construção de seu regime bonapartista? Como conseguiu sucesso onde Bush, com muito mais recursos, não conseguiria? Como, no marco de uma situação revolucionária, com um grande ascenso operário e dos povos oprimidos, a sinistra FSB passa a ser a instituição-chave no regime, pela primeira vez desde a morte de Stalin? A chave para a compreensão de tudo isso é o governo de Frente Popular de Primakov-Maslyukov, uma frente entre a FSB e o Partido Comunista da Federação Russa (PCFR), que chega para salvar o pescoço de Yeltsin e abrir caminho para Putin.
Na imensa onda de lutas contra Yeltsin, o Partido Comunista vinha aparecendo como oposição ao governo. Primakov, ex-membro do Conselho Presidencial de Gorbachev, ex-chefe da KGB/FSB, ex-membro do PCUS, e então sem partido, é escolhido por Yeltsin, pressionado pelo parlamento, como Primeiro-Ministro. Encabeça assim o novo governo, apoiado pelo PCFR (e praticamente todos os partidos, sendo um governo de união nacional), tendo Maslyukov, do PCFR, como Vice-Primeiro-Ministro e respondendo ainda pela pasta da Economia. Desta forma, a FSB retorna ao centro do poder pelas mãos do PCFR, para não mais sair até os dias de hoje. O Governo Primakov-Maslyukov é visto então pelas massas como uma esperança, como um governo que interromperia as privatizações, restauraria os serviços públicos, atenderia as reivindicações dos grevistas, etc.
Mas foi tudo ao contrário. Ao assumir o poder, Primakov declarou que não preparava nenhuma “revanche vermelha” e nem interromperia o rumo das reformas pró-capitalistas. Ao contrário, aproveitando-se de sua popularidade, evita a queda de Yeltsin, desmobiliza os processos de lutas existentes, negocia um novo acordo de submissão ao FMI, realiza uma maxidesvalorização do Rublo, aprova uma série de reformas muito duras, que Yeltsin não tinha forças para implementar, como a reforma tributária. A desmobilização e decepção com o novo governo tem um papel claramente desmoralizador. Depois de 10 anos de lutas ininterruptas, de derrubar a ditadura stalinista, de impedir a tentativa de golpe de 1991, de chegar às portas de derrubar o Governo Yeltsin, os trabalhadores da Rússia e povos oprimidos se viram sem alternativa, cansados e desiludidos. Desiludidos com a democracia-burguesa, com o capitalismo, com o stalinismo (identificado com o socialismo). É neste pântano de cansaço e desilusão geral com tudo e com todos, que passam a brotar ideologias ultrarreacionárias e chauvinistas de reconstrução do Império Russo.
É essa desmoralização que permite então desmontar todos os processos de lutas e greves, preparar a sucessão de Yeltsin e a provocação que prepara a opinião pública para a nova guerra contra a Chechênia. Cumprido seu papel nefasto (este governo dura apenas 8 meses), Yeltsin demite o governo Primakov-Maslyukov, e em alguns meses, renuncia e repassa o poder a Putin, com todo o terreno já aplainado para sua ofensiva contrarrevolucionária. Primakov mantinha ainda popularidade, sendo favorito às eleições a presidente de 2000. Mas a dois meses das eleições, retira sua candidatura, abrindo espaço para a vitória eleitoral de Putin, que consolida assim seu poder. Como prêmio, Primakov se torna consultor de Putin, cumprindo uma série de funções em seu governo até sua morte. E o PCFR, por seus serviços prestados, é incorporado como parte do novo regime, tornando-se o principal partido da chamada “oposição pró-Putin”.
Sem compreender-se mais esta traição do stalinismo, que abriu as portas a Putin, não se compreende a realidade russa de hoje.
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Um ponto de virada na situação política
A vitória de Putin inverte a correlação de forças aberta com a revolução de 1989-1991 que havia derrubado a ditadura stalinista no país, fechando uma etapa revolucionária de 10 anos e abrindo a partir daí uma etapa reacionária na Rússia, e diretamente contrarrevolucionária no Cáucaso Norte, que se mantém até os dias de hoje. A nova burguesia russa sob Yeltsin vivia uma grave contradição, pois tinha pela frente a tarefa de completar a restauração do capitalismo num país onde havia um grande ascenso de lutas operárias e populares. Uma classe trabalhadora que vinha da vitória de haver derrotado a ditadura stalinista responsável pela restauração do capitalismo, e conquistado uma série de liberdades democráticas. Se organizavam sindicatos independentes, havia efervescência política, surgiam novos agrupamentos políticos. A imensa confusão ideológica nas massas (de associarem socialismo com stalinismo e democracia com capitalismo) era acompanhada por um poderoso processo de auto-organização em defesa de suas reivindicações e por poderosas greves operárias. Não era possível um plano sério de reestruturação capitalista num país convulsionado. Ninguém investiria num país nestas condições. É por essa razão que a China, onde o levante contra o stalinismo havia sido esmagado pela ditadura do Partido Comunista Chinês, passa a ser o destino prioritário dos investimentos capitalistas, ainda que dirigida pelo PC Chinês. A burguesia russa precisava em primeiro lugar de “estabilidade”, para poder então reconstruir a ordem burguesa. Precisava sufocar os movimentos nacionais e o ascenso operário no país. Precisava de seu próprio massacre da Praça da Paz Celestial. Putin consegue isso com a Segunda Guerra da Chechênia.
Putin se apoiou fortemente no notório chauvinismo russo para consolidar a população russa ao seu redor, estancando os movimentos independentistas no país, afirmando o controle de Moscou sobre todo o território, e inclusive sobre ex-repúblicas soviéticas. Constrói então um novo regime, distinto do de Yeltsin. Um regime fortemente bonapartista, baseado na opressão nacional e exploração dos povos e nações não-russas e, ao mesmo tempo, na exploração do próprio povo russo, intoxicado de chauvinismo. É um regime ultrarreacionário, com a FSB/KGB como instituição central, e que intervém nos países próximos, reprimindo qualquer movimento popular, se afirmando como um bastião regional da contrarrevolução. Este papel contrarrevolucionário ficou evidente ante as revoluções ucraniana, egípcia, síria, belarrussa, cazaque, etc. Se expressa também no apoio a regimes diretamente contrarrevolucionários no Cáucaso e Ásia Central. E até em regiões distantes, como Cuba, Mali, Venezuela ou Nicarágua, Putin se mostra sempre disposto a apoiar qualquer ditadura.
Ao mesmo tempo, desde um ponto de vista econômico, é um regime que se acomoda perfeitamente ao caráter semicolonial do estado russo, dependente de capitais e tecnologia estrangeiros, que sofre uma primarização de sua economia, que se desindustrializa e se privatiza. Um país que se converte mais e mais num provedor de petróleo, gás e minérios para as grandes potências industriais, profundamente endividado e dependente, tecnologicamente atrasado, carcomido pela corrupção de uma burguesia e burocracia de estado totalmente dependentes, intermediárias da pilhagem imperialista da Rússia e dos países próximos.
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A “oposição” a Putin
A ausência de alternativas segue até os dias de hoje, sendo um componente importante da estabilidade do Governo Putin. Depois do partido de Putin, o Rússia Unida, a segunda força política segue sendo o PCFR. Faz populismo contra algumas reformas (sem nunca mobilizar de fato, se limitando a pequenas manifestações para marcar posição e aproveitá-las eleitoralmente), mas no grosso defende a política de Putin, especialmente no plano internacional. O Partido Comunista russo apoiou a anexação da Crimeia, sendo mais realista que o rei, “exigindo” de Putin que reconheça as regiões sob ocupação do Donetsk e de Lugansk como estados autônomos, defendendo a repressão contra a revolução na Belarus e no Cazaquistão, etc. Se coloca contra as manifestações democráticas na Rússia, como as manifestações contra a prisão do opositor liberal Navalniy no ano passado. Na cabeça das pessoas, se for para escolher entre Putin e uma cópia sua em vermelho desbotado, melhor ficar com o original. É um partido ligado à FSB, à hierarquia da Igreja Ortodoxa e às FFAA. Profundamente chauvinista e xenófobo. Faz oposição a algumas medidas isoladas da política de Putin, mas não ao governo de conjunto e muito menos ao regime. É tratado sarcasticamente pelo povo como a “oposição a favor”.
Por outro lado, existe uma parte da oposição liberal (não toda ela) que atua às vezes por fora do regime. Representa aquela parte da burguesia rifada da divisão das benesses do poder. Tem em Navalniy sua principal figura hoje. Está muito isolada e saiu derrotada das lutas do ano passado pela libertação de Navalniy, que segue preso. Tem como política buscar espaços por dentro do regime, sofrendo neste sentido derrotas seguidas, pois o regime não lhe abre brechas. Tem uma pauta democrática e anticorrupção, mas não vai além disso. Defende as privatizações e a abertura da economia do país aos capitais externos. Mas como o próprio Putin implementa em boa medida este programa, estes liberais ficam quase que sem plano econômico, tendo dificuldade de se diferenciarem de Putin neste aspecto. Empalmam com o sentimento democrático de um setor da população, com mais peso na juventude e nas classes médias das grandes cidades, em especial de Moscou. Mas canalizam este sentimento para dentro do regime, chamando a participar nas eleições controladas por Putin, e a votar por qualquer partido de oposição, em especial no Partido Comunista. Transformam assim um voto que seria anti-Putin num voto no regime, do qual o Partido Comunista faz parte, se recusando até mesmo a defender Navalniy da prisão.
Por outro lado, estes liberais ou apoiam ou se calam quanto à política externa chauvinista do regime. Navalniy diz claramente que não devolveria a Crimeia à Ucrânia. Silencia quanto à Guerra da Síria, no máximo criticando o custo econômico desta. Os liberais são vistos como defensores da era Yeltsin, de uma “democracia” que não enchia a barriga de ninguém. E como agentes dos EUA e da UE. Neste sentido, seu apoio eleitoral é muito baixo, sendo mais considerável em Moscou, mas mesmo assim bem minoritário. Não têm nenhum grau de organização junto à classe operária. Mas dirigiram o que houve de manifestações contra o governo nos últimos anos. E os trabalhadores, como mínimo, conhecem Navalniy e escutam o que tem a dizer.
De maneira que o PCFR é o defensor do regime ditatorial stalinista que restaurou o capitalismo na ex-URSS, além de, de fato, apoiar Putin no atacado. Enquanto que os liberais defendem o período Yeltsin. Com uma oposição dessas, Putin pode se apoiar com facilidade no senso comum de que “ruim com Putin, pior sem ele”.
E afinal, a Rússia está se “reerguendo” com Putin? O que é a Rússia hoje?
Apesar da grande campanha midiática, ecoada por setores de esquerda, para mostrar Putin como um nacionalista, anti-imperialista, que enfrenta o governo americano e defende e desenvolve seu país, a realidade é bem diferente.
A Rússia, apesar de sua política agressiva em relação aos processos de lutas nos países limítrofes, não é um novo país imperialista, e nem caminha para se tornar um. E muito menos possui algo de “soviético” ou “socialista”. Com Putin, se aprofundou a colonização do país. A Rússia hoje é mais dependente da exportação de produtos primários, como gás e petróleo, e de capitais e tecnologias estrangeiros, do que era há 20 anos. Neste período se privatizou, se fecharam indústrias, houve massiva entrada de capitais externos na economia local, se primarizou a economia, houve uma queda brutal nos investimentos em ciência, tecnologia e educação. E o país e suas empresas se endividaram junto à banca internacional num nível inédito. As grandes empresas russas, como a Gazprom, Rosneft, Sberbank, etc, têm todas dívidas junto a credores internacionais equivalentes aos valores de seus ativos. Na prática, os credores ocidentais são os verdadeiros donos destas empresas. As multinacionais estão todas presentes na Rússia, ocupando os espaços no mercado interno que anteriormente eram ocupados por empresas nacionais.
A indústria de transformação perde peso dentro do país, e os únicos setores que crescem são aqueles controlados por multinacionais estrangeiras. O setor aeroespacial, outrora orgulho nacional, vem ficando para trás na concorrência internacional, devido à ausência de investimentos e ao atraso tecnológico, que impedem uma renovação de fato. Vivem da glória e investimentos passados. A única exceção a esta decadência geral da indústria é o chamado complexo industrial-militar, por ser um setor estratégico para o regime, com grandes investimentos estatais. Neste sentido, puramente econômico, o governo Putin, apesar das diferenças no sentido político, é uma patética continuação do governo Yeltsin. A Rússia não apenas segue sendo um país semicolonial dependente, como se aprofunda em sua dependência, ano após ano.
A crise econômica mundial atingiu em cheio a Rússia, com a redução de investimentos e, em especial, com a queda nos preços do petróleo. O orçamento do país passou a ser deficitário, reduziu-se a capacidade de investimento, o que obrigou o governo a uma reforma da previdência muito impopular e a cortes profundos nos serviços sociais, o que aumentou a insatisfação social e anuncia novas e novas dificuldades para Putin.
Apesar da recuperação dos preços do petróleo, estes não retornaram ao patamar da década anterior. A crise econômica mundial não se encaminha para nenhuma solução no curto-médio prazo e os investimentos externos desabaram. As conquistas sobreviventes se relativizam, há piora nos serviços, aumentos nas tarifas, e a nova geração já não recebe apartamentos do estado, sendo que os preços dos imóveis privados são inacessíveis para a maior parte da população.
Há insatisfação dentro da Rússia, e entre os próprios russos, com a situação econômica, além de demandas democráticas e nacionais reprimidas. A ideologia chauvinista russa segue cumprindo seu papel, ao impedir que esta insatisfação se dirija contra Putin e seu regime, mas as contradições se acumulam.
As revoluções ucraniana e síria ameaçam o regime
A Revolução Ucraniana, que derruba nas ruas o candidato a ditador Yanukovich, abre uma profunda crise no governo Putin. Foi sua primeira e maior derrota política. Lembremos que a revolução ucraniana derruba o governo Yanukovich mesmo depois de um acordo entre todas as forças políticas da Ucrânia, o governo americano e Putin, visando manter Yanukovich no poder por 8 meses e então realizar novas eleições. A revolução não só derruba o governo, como destrói a odiada polícia política, a Berkuta, com seus membros sendo perseguidos de casa em casa. A revolução ameaçou todo o regime baseado na FSB, alimentou outros processos de independência nacional, colocando em xeque toda a lenda da “reconstrução do Império Russo”. É o primeiro e grandioso ato de um processo revolucionário supranacional, direcionado, mesmo que de forma não totalmente consciente, contra o regime de Putin. Putin percebeu o risco e se viu obrigado a contra-atacar duramente, anexando a Crimeia, fomentando a guerra no leste ucraniano e abrindo uma série de contradições que não desejava, com os imperialismos norte-americano e europeu.
Da mesma forma, a revolução síria ameaçava com expandir a Primavera Árabe até o Cáucaso muçulmano. Daí a violência da reação de Putin, que destrói a Síria com seus bombardeios, salvando a ditadura de Assad, ao custo de centenas de milhares de mortos.
É a mesma razão que leva Putin a apoiar diretamente as ditaduras da Belarus e do Cazaquistão contra os levantes nestes países. Os movimentos nacionais nos países vizinhos e dentro da Rússia vêm se fortalecendo, numa onda que perpassa a Ucrânia, Belarus, Quirguízia e agora Cazaquistão. Da mesma forma, no Cáucaso cresce a instabilidade, como na recente guerra entre Armenia e Azerbaijão, os atritos entre a Chechênia e a Ingushétia ou as escaramuças na Ásia Central na fronteira entre a Quirguízia e o Tadjiquistão.
Uma derrota de Putin no Cazaquistão, Belarus, Ucrânia ou Cáucaso pode vir a ser o catalizador da insatisfação popular represada, desmascarando a ideologia de um novo Império Russo, vindo a pôr fim ao reinado de Putin e da FSB.
Um regime em contradição com a correlação de forças internacional
Desde um ponto de vista geopolítico, o espaço de Putin se resume a aproveitar brechas entre os imperialismos. Putin manobra com as contradições entre os imperialismos americano e europeus para barganhar posições mais vantajosas para si. É daqui que surgem as lendas de um Putin anti-imperialista, nacionalista, patriota, que “enfrenta os EUA”. O auge desta política se deu durante o Governo Bush e sua “guerra ao terror”, onde Putin jogava com as contradições de Bush com a França e Alemanha, para ganhar posições, tornando-se de fato cúmplice da guerra americana no Afeganistão, oferecendo postos de abastecimento em território russo, bases para a OTAN, além de equipamentos militares e pessoal técnico. Com Obama, que tentava reestabelecer laços com a Europa, Putin teve mais dificuldades, e ao final apoiou Trump nas eleições, com a esperança de reviver a “guerra ao terror”, tentativa que fracassou. Hoje, segue jogando com estas contradições, como no caso do gasoduto Nord Stream 2, onde há interesses conflitantes entre EUA e Alemanha, ou, no que é a sua nova carta, nas contradições entre EUA e China.
Por outro lado, ocupa um papel político na arena mundial desproporcionalmente superior à sua real importância econômica, graças a dois elementos herdados da antiga URSS: um arsenal nuclear e FFAA comparáveis aos dos EUA, e influência em toda a região da antiga URSS. Estes dois elementos são um trunfo nas mãos da burguesia russa, e ao mesmo tempo, um ponto de tensão permanente com o imperialismo mundial, e em especial com seu braço armado, a OTAN.
O que em tese seria um governo forte, traz em si também um elemento de instabilidade dentro da ordem imperialista mundial. Desde as derrotas americanas de Bush nas guerras do Iraque e do Afeganistão, os EUA, e com ele o conjunto dos imperialismos, impossibilitado politicamente de embarcar em novas aventuras militares, tem optado por outras táticas. Ao invés de tentar derrotar processos de luta ou de independência nacional com mão de ferro, guerras ou bombardeios, tem preferido, por sua debilidade, desviar estes processos por dentro dos regimes democráticos, através de eleições, para esteriliza-los. É o que chamamos “reação democrática”, ou seja, através de eleições, estabilizar situações políticas convulsionadas. Quando se deu a Primavera Árabe, os imperialismos americano e europeus, impossibilitados de apoiar abertamente seus ditadores amigos, preferiram desviar os levantes através de processos eleitorais, para tentar reestabilizar estes países e manter sua influência e seus bons negócios.
Essa “flexibilidade tática” do imperialismo não serve para Putin. Putin é um governo saído do esmagamento pela força dos movimentos nacionais do Cáucaso. Não há tática “democrática” possível quando se trata da independência de regiões sob influência russa. Quando se dá a Revolução Ucraniana, que leva a novas eleições no país após a queda do governo Yanukovich, o resultado é inaceitável para Putin, pois poderia levar a estender o processo para a Belarus e para a própria Rússia, ameaçando seu governo. O mesmo com a Revolução Síria, onde uma vitória poderia reanimar os processos independentistas nas regiões muçulmanas da Federação Russa, em especial no Cáucaso. Por isso, enquanto os EUA jogavam com sua carta “democrática”, a Putin não lhe restava nada mais que a força bruta. O que abre uma série de diferenças e contradições entre os EUA, UE e Putin em cada uma destas regiões, colocando-os muitas vezes em campos opostos, defendendo governos e regimes enfrentados militarmente entre si. Neste sentido, Putin, que necessita de cada vez mais investimento externo na Rússia, se torna refém de seu próprio regime, incapaz de qualquer flexibilidade tática. É refém de sua imagem de “pulso firme”. A burguesia russa deseja uma integração cada vez maior com o capital internacional, mas a situação geopolítica coloca Putin, em muitos casos, em posições enfrentadas com os governos ocidentais.
Estas contradições desembocaram na anexação da Criméia em 2014, no fomento à guerra no leste da Ucrânia e no apoio militar de Putin à ditadura Assad na Síria, o que por sua vez levou a sanções americanas e europeias contra a Rússia. Estas sanções são um elemento adicional a agravar a situação econômica da Rússia, pois atingem em especial o setor petrolífero, que implora por novos investimentos externos.
Putin necessita cada vez mais de investimentos americanos e europeus e, ao mesmo tempo, se vê obrigado, pela própria dinâmica dos processos, a entrar em seguidos conflitos com estes. É um nó que ele hoje não consegue desatar, e que tende a se agravar no caso de novos processos revolucionários em sua vizinhança. O que não é improvável, pois somente neste último ano vimos a revolução na Belarus, a guerra Armênia-Azerbaijão, o levante quirguiz, a insurreição cazaque, e agora a tensão na fronteira com a Ucrânia.
Putin, com sua política contrarrevolucionária, de fato interligou as revoluções no antigo espaço soviético como uma grande revolução multinacional contra o seu regime. Assim como em 1989-1991, ao que tudo indica, a derrota deste bastião da contrarrevolução exigirá esforços concentrados dos trabalhadores e povos de todas estas regiões contra o seu carrasco comum.