Cultura

Filme ‘A Substância’: uma provocação à ‘ditadura da beleza’

Otávio Aranha, de Belém (PA)

16 de novembro de 2024
star5 (6 avaliações)
Atriz Demi Moore em cena do filme “A Substância”, personagem Elisabeth Sparkle

Na década de 1970, tomou forma o fenômeno moderno reconhecido hoje como “mundo fitness”, caracterizado por um ideal de boa forma corporal representado por indivíduos “sarados”, ou seja, com definição muscular aparente (de partes diferentes do corpo para os papéis atribuídos a homens e mulheres, diga-se de passagem).

Contudo, esse “mundo” não se resumiu apenas a prática regular de determinados exercícios. Um novo estilo de vida foi gerado a partir de uma indústria que passou a girar em torno dos cuidados estéticos para com o corpo: aparelhos, halteres, roupas, calçados, fitas de vídeo e academias de ginástica se tornaram febre nas gerações seguintes. Junto a essa nova necessidade criada pelo mercado, um incipiente paradigma corporal foi estabelecido nas subjetividades dos seres humanos: a “ditadura da beleza” corporal, tema central do filme “A Substância”.

O enredo

Após terminar mais uma aula de aeróbica, a personagem Elisabeth Sparkle, interpretada pela atriz Demi Moore, entra apressadamente no banheiro masculino da companhia de TV na qual trabalha e ouve despropositadamente o seu chefe. O debochado fala sobre o corpo dela exatamente no dia que ela faz cinquenta anos, anunciando o indicativo de sua demissão e a contratação de uma substituta mais “nova”.

Abalada, Elisabeth entra em contato com um laboratório experimental clandestino que lhe oferece um produto milagroso: a “substância” lhe permite voltar a ter um corpo bonito e jovial, desde que siga rigorosamente as instruções.

Numa cena que deverá marcar a atuação cinematográfica por gerações, a personagem injeta a substância, o que lhe provoca uma espécie de “mitose” acelerada de suas células e gera de seu dorso, um outro ser: Sue.

O paradoxo do navio de Teseu

Segundo um mito grego, Teseu e sua tripulação embarcaram na ilha de Creta num velho e antigo navio em direção a uma longa viagem. No caminho, o navio sofreu diversos reparos, peças danificadas foram trocadas por novas de modo que, ao chegar em seu destino, todas as peças e engrenagens haviam sido completamente substituídas, do que resulta o seguinte paradoxo: o navio que chegou ao porto é o mesmo que saiu da ilha de Creta ou se trata de outro navio? A questão, refletida por filósofos e cientistas ao longo de séculos, tem por base uma interessante pergunta filosófica: o que define a identidade de um corpo?

No filme, Elisabeth e Sue são um único ser, ainda que sejam seres diferentes. A consciência de ambas é uma só, mesmo que se expressem de modos diferentes. Seus corpos são diferentes, mas devem compartilhar do mesmo fluido vital. Elisabeth é a matriz, Sue é a réplica, mais jovem, nova, esbelta, flexível, forte e definida corporalmente. Elisabeth quer ser o corpo da Sue, mas Sue não deseja ser Elizabeth. Sue é Elizabeth e Elizabeth é Sue! Todavia, Sue nega a existência de Elizabeth, que a odeia por isso, ao mesmo tempo que a ama por ser o seu “melhor eu”.

A separação do sujeito de si mesmo de modo a se tornar irreconhecível é desenvolvido de forma genial e evolui à medida que se desenvolve esta dimensão da alienação humana até o ponto de se tornar completamente grotesca aos padrões estéticos humanos.

Elizabeth Sparkle é um produto da indústria da estética corporal, sua utilidade, mensurada em pontos de audiência na companhia de TV, desvanece-se com o seu envelhecimento natural, milimetricamente considerado pela “ditadura da beleza”. Sua angústia, tristeza e inconformidade para com o seu próprio corpo, reflexos dos ecos das falas dos homens em seu cérebro, induz-lhe o uso da seringa e a promessa de um “melhor eu”.

Mas como alguém poderia respeitar as regras e ciclos de um experimento sobre o seu corpo se já não respeita os próprios ciclos naturais dele? O paradoxo dos corpos separados de um único ser toma a forma de um conflito que se aprofunda com o passar do experimento. O conflito se agudiza a tal ponto que um nega o outro, ainda que a negação do outro resulte em sua própria negação.

Demi Moore e Coralie Fargeat

A interpretação da sexagenária atriz é um ponto alto da trama. Moore já foi considerada um “símbolo sexual” de Hollywood e sofreu com as pressões, assédios e imposições de padrões estéticos, o que afetou enormemente a sua saúde emocional. De certa medida, sua vida e carreira se aproximam da personagem. Margaret Qualley que dá vida a Sue, também demarca bem a contradição entre os personagens.

O filme foi escrito, dirigido, co-editado e co-produzido pela quase estreante Coralie Fargeat, que se utiliza do gênero “body horror” com muita propriedade. Além dos ângulos em detalhes, que captam bocas, olhos, mastigação, combinados a amplificação dos ruídos, levam a experiência sensorial cinematográfica ao extremo, objetivo do gênero; por sua vez, os planos abertos lembram o trabalho do gênio do terror, Stanley Kubrick.

Em seu primeiro longa, Revenge (2017), Fargeat também se utiliza de uma temática delicada: a vingança de uma mulher após ter sido abusada e arremessada ao abismo por seu parceiro. Com menos sangue e horror que “A Substância”, o protagonismo feminino é o ponto alto dessa primeira película, tratada com mais complexidade e realismo no segundo longa de sua carreira. Numa entrevista, Fargeat afirmou que a ideia para “A Substância” surgiu de sua própria experiência pessoal, quando foi afetada negativamente pelos julgamentos masculinos sobre o seu corpo, uma das expressões da “ditadura da beleza”.

A indústria da estética corporal

Uma indústria precisa vender seus produtos, deriva-se dessa necessidade as vultosas campanhas de marketing, propaganda, divulgação, mensagens sutis, etc., para nos inculcar a compra de determinados produtos e serviços.

Dessa lógica das relações de troca de mercadorias, novas necessidades e, portanto, subjetividades são criadas nos seres humanos. Segundo estimativa da Grand View Research, uma das maiores consultoras de mercados do planeta, só no ano de 2023, o que chamamos de “indústria da estética corporal” atingiu o valor global de US$ 127,1 bilhões ‒ aproximadamente R$ 633 bilhões, na cotação atual – constituindo-se num dos mercados mais promissores do mundo, o que lhe rendeu alguns bilionários em plena pandemia da covid-19.

No Brasil, dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) indicam que foram realizados cerca de 1,5 milhão de procedimentos estéticos no ano de 2023, que geraram em torno de R$ 48 bilhões para a economia do país. A última edição do “Índice FinanZero de Empréstimos” (IFE), relatório de demanda dos pedidos de créditos, revela que empréstimos para fins estéticos atingiram um pico ano passado, com um aumento de 97% nas solicitações.

A mais valia está contida na mercadoria, oculta nas relações sociais de troca, no qual precisa de um valor de uso para se materializar. Valor de uso, valor de troca e mais valia estão no interior de um mesmo processo, dentro de um sistema global de produção que precisa nos gerar cada vez mais e novas necessidades, sejam elas do estômago ou da fantasia.

A construção de novas “necessidades” humanas, tais como um preenchimento labial, uma harmonização facial ou implante de silicones nos seios para fins não reparadores, procedimentos que alimentam essa indústria bilionária, são um resultado complexo da construção de uma dada subjetividade sobre o corpo, no qual o considerado “belo”, torna-se um objeto de consumo, o que engloba tanto os procedimentos cirúrgicos supracitados, quanto os serviços privados de academias de ginástica, em suas dezenas de variantes.

Todavia, o problema central sobre a “beleza” corporal no interior das relações do sistema global de produção de mercadorias possui outro lado: as pessoas, sobretudo mulheres, no qual a construção dessa subjetividade atua com maior foco, que não tem condições, por inúmeros motivos, de consumir os produtos ou serviços dessa indústria.

Se as pessoas que são convencidas a realizar um procedimento estético cirúrgico, por exemplo, para se enquadrarem no padrão de “beleza”, o fazem por não se conformarem com o seu próprio corpo, as que não conseguem fazer e se enquadrar nesse “padrão estético”, podem criar fortes sentimento de frustração e baixa autoestima, um grande problema do mundo contemporâneo sob a égide do modo de produção capitalista.

O corpo bizarro: resultado da indústria dos corpos belos e perfeitos

A luta das personagens numa autofagia sem limites representa a metáfora da mulher brigando com o seu próprio corpo, seja para permanecer mais magra ou definida, seja para se adequar as exigências dos homens, que chegam a considerar a mudança de posição dos seios para a face, num dos diálogos presentes no filme.

O machismo, a misoginia, o etarismo e o foco da câmera em determinadas partes do corpo, desprezando sua totalidade, resultam numa tentativa desesperada e deprimente de autoaceitação corporal. O novo ser, que materializa uma obra de arte picassa, torna-se bizarro ante o padrão de beleza dominante, mas não é isso que os silicones, botoxes e demais anabolizantes também provocam?

Não importa, a “ditadura da beleza” corporal não é democrática, ela acusa o que estiver fora de seu “padrão” e não terá receio em retirar da calçada da fama, o que antes era a sua melhor expressão. Talvez um outro modo de produzir a vida, planificada em torno as necessidades sociais, científicas e artísticas, traga-nos novas concepções do “belo” e do “corpo”. Até lá, importante considerar um pensamento sobre o belo, supostamente atribuído a Bob Marley:

“Quem se importa com a perfeição? Nem a lua é perfeita, está cheia de crateras. O mar é incrivelmente lindo, mas salgado e escuro nas profundezas. O céu é sempre infinito, mas muitas vezes nublado. Portanto, tudo que é bonito, não é perfeito, é especial. Então, toda mulher pode ser especial para alguém.