A Turquia em mais uma encruzilhada histórica

Dez dias após a prisão de Ekrem İmamoğlu, uma manifestação gigantesca reuniu cerca de 2 milhões de pessoas em Istambul. O eixo do protesto é a liberdade do então prefeito da principal cidade turca. Após apenas 4 dias em custódia, em 22 de março de 2025, a prisão de Ekrem Igmamoğlu foi decretada em base a depoimentos de testemunhas secretas. Além de corrupção e de liderar uma organização criminosa, pesa sobre ele a mais infame e perigosa das acusações sob o regime do autocrata Erdoğan: conexão com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) considerado terrorista e espécie de inimigo número 1 do Estado.
Leia a declaração da LIT-QI
A operação policial aconteceu apenas um dia após o diploma universitário de Imamoğlu ter sido cancelado pela Univerisade de Istambul. Alegaram que a transferência dele de uma universidade privada no Chipre do Norte foi irregular. A transferência aconteceu em 1990, mas agora, e somente agora, notaram esse pequenino empecilho burácratico cuja consequência é colossal: sem diploma superior não se pode concorrer à presidência na República da Turquia. Em que pese o nítido caráter anti-democrático e anti-popular deste item constitucional, a questão do diploma também toca Erdoğan, que jamais apresentou um, nunca se encontrou um colega de seus “anos de faculdade” nem se sabe de algum professor com quem tenha estudado. Entretanto, é o atual presidente, além de pretenso novo sultão.
A prisão do principal opositar do regime foi a faísca para uma nova onda de imensos protestos espalhados literalmente por todo o país. Seguramente, estamos testemunhando o maior levante político-social desde o histórico processo que ficou conhecido como Parque Gezi, em 2013. Mesmo com as manifestações proibidas, estações de metrô bloqueadas dificultando a circulação das pessoas rumo aos atos, restrições e bloqueios às redes sociais, além da intensa repressão do aparato policial e clamores de Erdoğan de que não cederá aos “vândalos e ao terror das ruas”, as praças seguem recebendo mais e mais pessoas a cada dia.
Nas universidades se alastram como pólvora as assembléias e paralisação de aulas. Essencialmente protagonizados pela juventude, os protestos têm como slogan muito difundido o “Levante sua voz, Turquia!”. A fala de um jovem manifestante de 20 anos nos dá uma ideia do que se passa ali. Quando perguntado porque enfrentava a repressão policial ele disse: “Estou aqui pela religião, mas não pelo AKP; por Atatürk, mas não com o CHP: pela pátria, mas não com o MHP e pelos curdos, mas não com o HDP”. A presença da juventude é especialmente marcante, desafiando o autoritarismo crescente do regime, e fazem questão de deixar nítida a sua determinação, e não são raros os cartazes com os dizeres “Não temos medo” ou “Venham, não tenham medo!”. AKP é o partido reacionário atualmente no poder e o outros serão analisados mais adiante.

Estandartes da Confederação Sindical DISK marca presença no histórico ato de 29 de março. Ao centro o slogan de Ekrem: “Tudo vai ficar bem”. Slogan que ele ouviu de um rapaz de 22 anos nas ruas, durante ato de campanha. Dias depois o rapaz foi preso pelo regime e, desde então, Ekrem incorporou em suas falas
Mas que é Ekrem Igmamoğlu e seu partido?
Vindo de uma família de comerciantes e fazendeiros da cidade de Trabzon, na região do Mar Negro, ele estudou em escolas privadas e, após se formar em Administração, fez fortuna no ramo da construção civil. Seu inegável carisma apela aos setores conservadores, aos curdos e aos setores mais explorados da população em contraste com um certo caráter elitista de seu partido o CHP (Cumhuriyet Halk Partisi), Partido Republicano do Povo. Trata-se do partido mais tradicional do país, criado pelo próprio Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da República – e figura onipresente tanto oficialmente quanto nos protestos – quando do fim do Império Otomano. Partido burguês profundamente secular e nacionalista, seu projeto é a manutenção da democracia liberal burguesa, da falácia da economia de livre mercado como meio para se atingir a justiça social e da adesão da Turquia à União Européia. Resumindo, trata-se da oposição de caráter liberal e social democrata de maior expressão ao projeto autoritário e teocrático de Erdoğan.

Manifestantes seguram livro de discursos e bandeiras com a figura do assim chamado pai fundador do estado moderno turco, Gazi Mustafa Kemal Atatürk
Imamoğlu protagonizou a série de derrotas mais amarga que Erdoğan teve de engolir, após muito custo é claro. Em 2019, após 25 anos de a prefeitura estar nas mãos do AKP (Adalet ve Kalkınma Partisi) Partido do Desenvolvimento e Justiça de Erdoğan, veio uma derrota. Por uma margem minúscula, apenas 13.000 votos. O AKP não admitiu o resultado das urnas, exigiu recontagem e a conseguiu. O resultado foi mantido e Ekrem assumiu. Após duas semanas, o órgão responsável pelas eleições cancelou o pleito e novas eleições foram convocadas: agora Ekrem esmagou o candidato governista com uma diferença de 800.000 votos e assumiu inquestionavelmente a prefeitura da cidade chave para o país. Cargo para o qual foi reeleito em 2024. Nesta eleição, o partido de Erdoğan perdeu não apenas Istambul, mas também a capital Ankara e as outras 3 cidades mais importantes do país: Izmir, Bursa e Antalya.
Nos mapas abaixo vemos quanto o AKP (laranja) perdeu terreno tanto para o CHP (vermelho) quanto para o HDP (Halkların Demokratik Partisi ) Partido Democrático do Povo (roxo), centrado na representação do povo curdo, nas últimas eleições locais:
Vale mencionar que um dos pilares da cultura turca contemporânea, a paixão pelo futebol, é ausência notável dos recentes protestos. Presença constante nos protestos de 2013, as torcidas organizadas chamavam atenção pela ferocidade da resistência à repressão policial, porém ainda não foram vistas no levante atual.
Nos últimos 12 anos, o governo implementou uma série de medidas para enfraquecer a oposição política vinda das arquibancadas, especialmente após o processo histórico de Gezi/2013. A introdução do Passolig, um sistema de ingressos eletrônicos que exige registro com dados pessoais, foi imposta em 2014 como uma forma de controle e vigilância sobre os torcedores, afastando grupos oposicionistas e desmobilizando protestos. O caso do grupo Çarşı, do Beşiktaş, que teve membros acusados de tentativa de golpe devido à participação em Gezi, exemplifica essa repressão. Apesar da absolvição final dos acusados em 2024, o prolongado processo judicial e a vigilância constante esvaziaram a influência política das arquibancadas, transformando os estádios em espaços mais controlados e menos engajados socialmente.
Além da repressão direta, o governo incentivou a rivalidade extrema entre clubes para fragmentar a solidariedade vista em Gezi, quando torcedores de diferentes times se uniram em protestos. No entanto, reações esporádicas ainda surgem, como as manifestações contra o governo após os terremotos de 2023, reprimidas com investigações e ameaças. Embora o AKP tenha conseguido silenciar boa parte das arquibancadas, o ambiente do futebol segue imprevisível, e a qualquer momento os estádios podem voltar a ser um espaço de resistência política.
Nova onda repressiva
Só em fevereiro de 2025 foram cerca de 300 pessoas presas: desde líderes da extrema direita acusados de insultar o presidente, passando por ativistas, jornalistas, sindicalistas, artistas e empresários críticos ao regime, até políticos de menor escalão. Vários deles acusados, como sempre, de terrorismo e ligações com o PKK. Importante também notar que, junto com o Imamoğlu, mais de 100 pessoas foram presas, incluindo “sub prefeitos” de Istambul, responsáveis pelas administrações locais da imensa metrópole. Todos do CHP. Até a noite de 26 de março de 2025 já são mais de 1500 pessoas presas nas manifestações. E contando.
O tempo da operação desencadeada em 19 de março foi absolutamente preciso: um dia após o cancelamento do diploma e cinco dias antes das primárias que elegeram Imamoğlu o candidato presidencial do CHP para a próxima eleição presidencial programada para 2028. Num processo inédito, a escolha do candidato foi aberta a não membros do partido. Cerca de 15 milhões de pessoas compareceram e escolherem o candidato kemalista à presidência. Apenas 1 milhão e meio eram membros do partido, o restante dos votos demonstram a enorme força de mobilização do processo de luta que se desenrola.
Cenário interno
Erdoğan aproveitou uma situação interna relativamente mais calma, com a inflação a dar sinais de estar controlada, ao nível mais baixo em dois anos. Entretanto, é evidente a qualquer observador minimamente sério que não se trata de puro e simples apoio a İmamoğlu o que se vê nas ruas por todo o país. A situação econômica turca é chocante. A falta de boas expectativas profissionais no futuro próximo e a perspectiva de um país profundamente religioso e anti-democrático aterroriza boa parte da juventude urbana. Certamente isso tudo os move a lutar.
O desemprego gira em torno de 15 a 10% em geral, e entre 20 a 25% entre a juventude nos últimos 10 anos. A inflação na última década atingiu patamares históricos: em 2015 foi de 8,77%. Em 2017 chegou a 11,93% e 20,31% em 2018. E seguiu subindo com os anos de pandemia: 36% em 2021 e alarmantes 64% em 2022. Dois anos atrás, em 2023 a inflação foi de quase 65% e em 2024, 44%. Obviamente tal escalada inflacionária corroeu o poder de comprar e piorou violentamente o nível de vida da classe trabalhadora e dos jovens especialmente.
Para se ter uma ideia, o salário mínimo era de 2.943 liras turcas em 2020. Em 2022 já havia subido para 6.471 liras. Em 2023 foi para 13.414,50 liras e hoje está em 26.005,50 TL.
Além disso, o brutal terremoto de fevereiro de 2023 desencadeou outra crise e ampliou fortemente a indignação direcionada ao governo e seus agentes. Além dos danos causados pela detruição material e a imensa perda de vidas, há outro fator. Os terremotos não são novidade por lá e, desde alguns anos, as empresas de construção de civil são obrigadas por lei a investir em projetos adaptados a tal situação. Com o terremoto, prédios residenciais e comerciais que deveriam resistir a tremores de terra se esfarelaram em segundos ceifando milhares de vidas. Investigações simples concluíam que alvarás falsos eram vendidos dando como adequados projetos que não deviam sair do papel não fosse a corrupção generalizada do setor. A ânsia burguesa por lucro a qualquer custo mais uma vez mostra suas mãos empapadas de sangue inocente…

“Greve geral e boicote! Pare a vida, não gaste seu dinheiro”
“Mas eu já nem tenho nada, irmão…”
Cenário externo
Alguns elementos notáveis da realidade contribuem para fortalecer e motivar a escalada autoritária de Erdoğan.
Primeiro, a ascensão de Trump que encoraja ditadores a agirem despudoradamente e, neste sentido, deixa Erdoğan claramente com as mãos livres. No dia 25 de março, inclusive, Trump chegou a comentar que Erdoğan é um “bom líder” numa reunião de gabinete. Ao que tudo, indica a Casa Branca não dará sequer alguma declaração condenando as arbitrariedades ilegais, a repressão policial ou sindical nem muito menos levantará a voz em nome dos direitos humanos do povo turco. Vale notar que a rede social X do queridinho de Trump, Elon Musk, bloqueou mais de 700 perfis de jornalistas, figuras políticas, estudantes, organizações independentes críticas ao Regime e que divulgavam os protestos em andamento.
Segundo, a queda de Assad – adepto de um ramo minoritário do Islã, o Alauísmo – na Síria. Em seu lugar, atualmente governa Ahmed Hussein al-Shar’a, partidário do ramo ultra-conservador do Islalismo Sunita conhecido como Wahhabismo. Quem também é sunita e congrega ideais político/religiosos muitos semelhantes é Erdoğan e a Turquia deve ser por onde o gás e o petróleo sírio fluirá em direção à Europa.
Terceiro, a Turquia tem o segundo maior exército da OTAN e, com as recentes declarações de Trump no sentido de diminuir seu apoio militar em direção à Europa, não parece exatamente boa ideia por parte dos governos europeus aplicarem qualquer sanção real ou desferir qualquer crítica muito contundente ao governo de Erdoğan, exceto as declarações inócuas de praxe. Além do já antigo acordo pelo qual a União Européia paga bilhões de euros à Ancara para que esta impeça a passagem de imigrantes, especialmente sírios, em direção às fronteiras européias.
Por fim, as ondas de manifestações voltam a ressurgir em alguns pontos do mundo. Especialmente em países bastante próximos da Turquia. Na Sérvia estamos vendo protestos gigantescos que não arrefecem mesmo com a renúncia do Primeiro Ministro Miloš Vučević, e seguem exigindo mudanças profundas no país. Na vizinha Grécia, recentemente, uma Greve Geral de 24 horas paralisou o país pressionando fortemente o governo de Kyriakos Mitsotakis. Na Hungria também as mobilizações têm se fortalecido justamente para se opor a uma lei recente que, além de efetivamente proibir eventos de Orgulho LGBTQ+, restringe o direito de reunião em geral.
A Questão Curda
Ainda que nas últimas décadas o Estado turco tenha removido algumas restrições como, por exemplo, ao uso da língua curda, a situaçãos segue candente e cheia de episódios violentos. Hora as organizações curdas, via seus braços armados, ataca as forças de segurança e militares turcos, hora as forças armadas turcas atacam localidades curdas no leste do país, ou mesmo na Síria e no Iraque. Vale lembrar que a antiga luta do povo curdo é por um estado independente, o Curdistão, que perpassaria territórios de vários países da região.
Fundado em 1978, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, popularmente conhecido como PKK (Partiya Karkerên Kurdistan) engajou-se na luta armada contra o Estado turco em 1984, e segue assim empenhado até hoje. Seu principal líder e fundador é Abdullah Öcalan, que está preso desde 1999 em quase absoluto isolamento na pequenina ilha-prisão chamada İmralı, no Mar de Mármara. Único detento da ilha e acompanhado por cerca de 1000 agentes de segurança, Apo (tio) – como é conhecido – chegou a estar 10 anos sem contato com seus advogados. Inicialmente foi condenado à morte, mas em 2002 a Turquia aboliu a pena de morte como parte dos esforços para aderir à União Européia. Assim sendo, Öcalan cumpre prisão perpétua atualmente.
Entretanto, acontecimentos recentes estão prestes a mudar essa situação.
Em outubro de 2024, Devlet Bahceli, presidente do partido chauvinista da extrema direita MHP (Milliyetçi Hareket Partisi) Partido do Movimento Nacionalista – aliado de Erdoğan, é claro – propôs a liberdade a Öcalan em troca da deposição das armas do PKK.
Há pouco menos de um mês Öcalan veio a público com uma carta lida por lideranças do DEM (Partiya Wekhevî û Demokrasiya Gelan, em curdo) Partido da Igualdade e Democracia dos Povos. Este que é um importante partido de representação do povo curdo na política turca e muito próximo do HDP, cujo principal líder, Selahattin Demirtaş, está preso desde 2016 no extremo oeste do país, na fronteira com a Bulgária, o mais distante possível do curdistão. Ele foi o terceiro candidato mais votado para a presidência em 2014 e, em 2018 concorreu mesmo preso e foi o terceiro colocado novamente atrás apenas do AKP e do CHP.

Abdullah Öcalan (ao centro) com a delegação do Partido DEM, na ilha-prisão İmralı lendo seu histórico anúncio. Fev/2025
Eis alguns trechos da histórica declaração de Öcalan:
“O PKK nasceu no século XX, na época mais violenta da história da humanidade, em meio às duas guerras mundiais, sob a sombra da experiência do socialismo real e da guerra fria ao redor do mundo.
O PKK chegou ao fim de sua vida útil. Estou fazendo um apelo à deposição de armas e assumo a responsabilidade histórica desse apelo. Convoquem o congresso e tomem uma decisão.
Todos os grupos devem depor as armas e o PKK deve se dissolver”
Mas por que tal acordo agora?
Por hora só podemos especular, e apenas o tempo – talvez muito tempo – mostrará os reais interesses envolvidos e as razões profundas para tal movimentação política.
Atualmente, Erdoğan está impedido de concorrer à presidência pela Constituição que ele mesmo aprovou em 2015. Caso o partido DEM – terceito maior partido no Parlamento – se junte à aliança AKP+MHP poderiam promover alterações constitucionais abrindo caminho para mais uma candidatura e, quem sabe, uma maldita terceira década de Erdoğan no poder. Mesmo que não promovam tais alterações, a deposição de armas do PKK e a consequente liberdade de Öcalan trariam um imenso capital político ao DEM e relevância às organizações curdas em sua luta por autonomia.
Outro elemento que indica um possível interesse curdo nesta aliança está ligado ao segundo mandato de Trump. Não está claro ainda se ele manterá o apoio norte-americano ao curdos na luta contra o Estado Islâmico na Síria. Seja como for, o presidente Recep Tayyip Erdoğan declarou recentemente que “sempre manteria o punho de ferro pronto caso a mão que estendemos fosse deixada no ar ou mordida”.
Fratura inter-classe burguesa
É evidente que tais impasses e tensões politícas e sociais interferem nos negócios e isso, apenas isso, é o que conta para os burgueses. Sejam eles religiosos conservadores apoiadores de Erdoğan, ou seculares progressistas apoiadores de Imamoğlu. Apesar de disputarem ferozmente os rumos do país, ambos compartilham uma série de valores. Por exemplo, Erdoğan veio a público rapidamente defender a operação policial “que combate a corrupção e o terrorismo” alertando para a independência do Judiciário. Ele nada teria a ver com as operações e prisões, trata-se tão somente da Justiça agindo. A oposição argumenta que isso não passa de hipocrisia.
Neste caso, todos os envolvidos são hipócritas. Quem aponta e quem se defende está de mãos dadas na trincheira da falácia da independência entre Executivo, Judiciário e Legislativo, esse colossal mito burguês. O caráter de classe que sustenta os três poderes é o mesmo que emana deles. O caráter de classe, o conteúdo burguês dos três poderes os coloca em harmoniosa sintonia e agem como uma orquestra regendo o sistema capitalista em cada detalhe, apesar de aparentes conflitos. A essência burguesa dos poderes os leva a se articularem e se sustentarem mutuamente para a manutenção da propriedade privada.
Basta ver que, tanto um fanático religioso profundamente autoritário como Erdoğan, ou o liberal adepto da democracia burguesa e suas instituições tradicionais, advogam a mesma ilusão, a mesma falácia destinada a enganar a classe trabalhadora: os 3 Poderes são independentes – ou ao menos deveriam ser – e este seria o único sistema possível, a melhor e derradeira opção jamais criada na Terra!
Esta é parte de uma recente declaração no perfil do Instagram de İmamoğlu:
“Quando chegarmos ao poder, não faremos o que vocês fizeram conosco. A justiça será a garantia de todos, a lei garantirá a segurança da vida e da propriedade de todos e ninguém poderá usurpar a propriedade, a honra,a dignidade ou a reputação de outra pessoa”
Qualquer semelhança com o fanatismo de Lula pelas instituições burguesas – que prometeu confiar seus algozes às mãos da mesma justiça que o prendeu pouco antes – não é mera coincidência: trata-se da ideia canalha que estes setores ditos progressistas se esforçam por fomentar, segundo a qual tais instituições estariam acima das pessoas e até mesmo das classes sociais, agindo de forma imparcial e independente.
Mas não caímos nesse engodo e recuperamos a definição de Marx e Engles, para quem o Estado nada mais é que o “balcão de negócios da burguesia”. Longe de ser um mediador neutro entre as classes, funciona como um instrumento direto da classe dominante para gerir seus interesses econômicos e políticos. Assim como Lenin que agudiza tais afirmações ao deixar o mais evidente possível: “O Estado é o instrumento de um ditadura de classe, uma ditadura da burguesia sobre os trabalhadores” através da violência institucionalizada, das forças armadas e dos poderes judiciais para reprimir qualquer ameaça à ordem burguesa.
Não que esse entendimento nos leve a colocar sinal de igual entre uma ditadura religiosa e a democracia burguesa. Não pode haver dúvidas que o melhor cenário para a classe trabalhadora desenvolver suas lutas é onde os direitos humanos são minimente respeitados, os direitos civis como voto direto, reunião, assembléia, organização sindical entre outros estão garantidos e possam ser plenamente exercidos.
Entretanto, não há dúvida que existe uma profunda fratura na classe burguesa turca atualmente.
Quem ajudará a manter e aumentar seus lucros? Essa é a pergunta que eles se fazem todo dia em seus palácios e gabinetes e da qual depende o futuro tanto de Recep e seu AKP quanto de Ekrem e do CHP. Basta ver que sérios alertas se acenderam ao verificar-se a intensidade da queda da bolsa turca: –8,72% em 19/03 e -7,81% em 21/03. A queda foi tão brutal que é a pior desde a Crise de 2008, enquanto analistas burgueses esperam que o Banco Central turco mantenha a atual taxa de juros básica de 42,50%.
A desvalorização da lira turca já é de cerca de 14% desde a notícia da prisão de Ekrem. Os líderes do CHP, da tribuna da Prefeitura de Istambul, alertam e expressam suas reais preocupações: “que estrangeiro investirá aqui nessa situação caótica?” Entretanto, a mobilização de massas os importa agora e reafirmam continuamente que seguirão nas ruas todos os dias até que Ekrem seja liberto. Conclamam estudantes, trabalhadores, aposentados e todos que apoiem sua causa.
A tática adotada pelo CHP a partir de 23 de março é a de exigir antecipação da eleição presidencial marcada para 2028, ao mesmo tempo que se choca abertamente com os setores burgueses que, de alguma forma, contribuem com o regime ou tenham silenciado sobre a atual situação. O chamado a um boicote de diversas marcas, incluindo grandes conglomerados midiáticos, surtiu efeito imediato. No mesmo dia do anunciado boicote, alguns canais de TV controlados por afiliados de Erdoğan passaram a mostrar os protestos e noticiar os comícios do CHP em frente à prefeitura de Istambul. Como a greve e as paralisações da produção e circulação são a arma mais poderosa da nossa classe contra os patrões, este boicote deixou claro que, quando o bolso é tocado, é preciso negociar imediatamente!
Abaixo a lista divulgada pelo CHP incentivando o boicote a empresas de diversos setores de alimentação, transportes, redes de mercados, cafés e padarias e sites de apostas. Além, é claro, de vários veículos de mídia pró governo:
O desenrolar dos acontecimentos é incerto, como todo processo político social onde milhões de pessoas se mobilizam e se dispõem a lutar. Nesses cenários estão os germes das revoluções, é preciso lembrar. Entretanto, a espontaneidade dos protestos é proporcional à necessidade de liderança política e, atualmente, as principais forças ali presentes não apresentam nenhuma perspectiva de ruptura política ou social. A menos que se considere como ruptura o desmonte do imenso aparato repressivo/policial/jurídico, midiático, legislativo e de forte cunho religioso que Erdoğan ergue e do alto de onde se sustenta há mais de duas décadas.
Erdoğan, que era Primeiro Ministro, alterou a Constituição para tornar-se presidente e seguir no poder. Os repetidos expurgos no Judiciário já domaram completamente este Poder que age somente conforme os interesses da presidência. O Legislativo é controlado pela maioria obtida entre AKP e MHP. Segundo a BBC, cerca de 80 veículos da mídia turca é controlada por Erdoğan e seus asseclas. Pouco a pouco a legislação turca, que é radicalmente secular (como fruto da Reformas promovidas por Atatürk ao fundar a República), vem sendo alterada em direção a um Estado orientado pela religião. As denúncias e evidências de fraudes em eleições são escandalosas e recorrentes.

Enquanto a gigantesca manifestação acontecia alguns do principais canais de TV noticiavam: “Compras pro feriado em Eminönü: Quais os itens preferidos? Como estão os preços?”; “Como estão os preços na véspera do feriado?”; “Mais de 242 mil passageiros viajarão”; “Número de mortos no terremoto de Myanmar passa de mil”
E a nossa classe?
A Turquia tem 4 centrais sindicais. As maiores como TÜRK-İŞ – a maior e mais antiga – contando com cerca 1,35 milhões de trabalhadores em sua base (54% dos sindicalizados do país) e a HAK-İŞ contando mais de 800.000 membros (34% dos sindicalizados) são abertamente pró-governo e a segunda é radicalmente religiosa. Estas centrais foram as que mais cresceram desde a ascensão do AKP ao poder e seguem ampliando sua influência.
As duas outras, bem menores, são: DISK (Türkiye Devrimci İşçi Sendikaları Konfederasyonu) ou Confederação dos Sindicatos Revolucionários da Turquia com cerca de 330.000 trabalhadores em sua base e a KESK Confederação dos Sindicatos dos Funcionários Públicos com cerca de 300.000 sindicalizados. Ambas compartilham muitos elementos de composição político ideológica: anti-neoliberalismo, oposição ao AKP em geral, aproximação de defesa dos direitos do povo curdo. Obviamente, são os sindicatos que mais encontram dificuldades e são perseguidos pelas forças policiais e acusados de ligações com o terrorismo.
Após 2016, quando ocorreu uma suposta tentativa de golpe de Estado contra Erdoğan, o endurecimento do Regime foi brutal neste sentido: além de prisões arbitrárias por conta da recorrente acusação de conexão com o terrorismo pelo simples de se defender os direitos dos curdos, decretos de emergências do governo demitiram mais de 150.000 trabalhadores, muitos deles sindicalizados; outros tantos foram colocados em listas que os impediam de conseguir empregos; alterações legais dificultavam a sindicalização e especialmente a realização de greves.
Essas duas centrais marcaram presença no gigantesco ato de 29 de março de 2025 em Istanbul:

KESK: “Por uma vida digna: Boicote, Greve, Resistência”
DISK: “Por nosso trabalho, nossos direitos, nosso futuro e pela Democracia: Estamos de pé!”
Depois de AKP e CHP, a terceira força política da Turquia é o HDP. Fundado em 2015 sendo o sucessor de outras organizações pró-autonomia do povo curdo, tem aí sua essência. O partido se apresenta da seguinte forma: honesto, democrático, partidário da liberdade e da igualdade, pela paz, pelo trabalho e pelo auto governo, pró igualdade de gênero e verde. Resumindo, um partido da esquerda reformista, focado na representatividade do povo curdo.
TIP (Türkiye İşçi Partisi) Partido do Trabalhadores da Turquia. Fundado em 2017, trata-se de uma dissidência do Partido Comunista da Turquia, após divergências durante os protestos de Gezi em 2014. Elemento decisivo para sua caracterização, o partido se pauta pela independência de classe. Se coloca como adepto do marxismo-leninismo, reivindica a Revolução Russa de 1917 sem críticas ao processo contrarrevolucionário protagonizado por Stálin posteriormente. Teve pouco mais de 1% dos votos na última eleição parlamentar e elegeu 4 deputados pela Aliança do Trabalho e da Liberdade. É presença constante nos atos anti-governo nas principais cidades do país.
Juntos, TIP e DEM formaram a Aliança Trabalhista e pela Liberdade que conta ainda com outros partidos de menor expressão e conta com 64 cadeiras na Grande Assembléia Nacional, o Parlamento turco.
HKP (Halkın Kurtuluş Partisi ) Partido da Libertação Popular. Reivindica os pioneiros do movimento comunista turco dos anos 1920 e não tem expressão eleitoral/institucional, porém é presença marcante nos protestos e pequenos círculos da esquerda anti capitalista das grandes cidades.
União do Poder Socialista (Sosyalist Güç Birliği ) foi uma aliança eleitoral formada pelo Partido de Esquerda (SOL), Partido Comunista da Turquia (TKP), Movimento Comunista da Turquia (TKH) e Movimento Numa declaração conjunta assinada por 226 pessoas, incluindo acadêmicos, artistas, advogados, jornalistas e ativistas, eles resumiram assim sua plataforma política centrada no combate à influencia religiosa nos destinos do país:
“Todos nós ansiamos por uma república livre onde a cidadania seja estabelecida, a discriminação e as oposições devido a diferenças étnicas, religiosas, sectárias e de gênero sejam eliminadas, e todos vivam igualmente e em fraternidade. Convidamos todos que desejam concretizar isso para uma luta comum.”
A Aliança obteve cerca de 160.000 votos nas eleições de 2023 e não elegeu ninguém.
Os rumos de povo nenhum está dado a priori, antes que as classe se choquem e possam, assim, mover as alavancas da História. A encruzilhada turca atual é ainda a continuidade do embate iniciado quando o Império Otomano foi derrotado e fatiado pelas potências européias na Primeira Guerra Mundial: República democrático burguesa ou Teocracia Islâmica? A segunda opção vem sendo meticulosamente construída por Erdoğan.
Nos anos 1920. Atatürk, o líder supremo e inconteste daquela nascente nação, havia esmagado impiedosamente toda e qualquer oposição. Mas antes, para chegar ao poder, havia liderado as tropas que lutavam contra os exércitos das potências européias imperialistas que invadiram e ocupavam o país. Situação muito semelhante à vivida no mesmo período pela nascente União Soviética que, após a Revolução de Outubro de 1917, havia sido invadida pelas mesmas nações imperialistas. Tal situação levou Atatürk a contatar Lênin, demonstrar que travavam semelhante luta anti-imperialista e, assim, foram estabelecidas conexões militares e diplomáticas que resultaram no envio de ajuda militar e material soviética em forma de ouro e equipamento bélico.
Mesmo assim, pouco depois do estabelecimento da República da Turquia em 1923, foi desencadeada a perseguição que prendeu ou assassinou as principais lideranças e ativistas comunistas, minando qualquer possibilidade de desenvolvimento do movimento revolucionário turco. Vigorava ali, com Atatürk e seu CHP, um regime de partido único fortemente amparado no culto à personalidade (impressionantemente muito vivo ainda hoje) do líder inquestionável e a amizade dos comunistas já não era mais bem-vinda.
Com a morte de Atatürk em 1938 e a Segunda Guerra Mundial (quando o país se manteve espantosamente neutro), a Turquia adere aos modelos políticos europeus, adota o anti-comunismo como doutrina e entra para a OTAN logo nos primeiros anos da Aliança em 1952. O restante do século é uma selvagem sequência de golpes e ditaduras que reprimiram tanto as organizações da classe trabalhadora quanto as expressões políticas do Islã. Só nos anos 1990 é que um primeiro revés será conhecido pelo secularismo nacionalista radical: era Erdoğan e seu AKP chegando ao poder.
Ou seja, no embate turco, a classe trabalhadora em sua organização independente está em profunda e rigorosa desvantagem desde muito tempo…
Hoje também não se apresenta no horizonte a perspectiva de uma mudança radical, revolucionária no sentido de a classe trabalhadora, através de seus órgãos independentes, tomar e conduzir o poder. A revolução não está na próxima esquina turca.
Por tudo isso também é preciso lembrar que, mesmo que não ocorra ali uma revolução social, o retorno da burguesia secular (personificado atualmente em İmamoğlu) seria um enorme avanço para a classe trabalhadora turca e um sopro de alívio enviado ao mundo que assiste de olhos atentos o que se passa ali. Não é a primeira vez que Erdoğan enfrenta a fúria e o ímpeto da juventude e dos trabalhadores nas ruas. Porém, nas outras ocasiões ele prevaleceu pela repressão, perseguição, violência e censura. Nada garante que não será diferente dessa vez. Da mesma forma como nada garante a continuidade do Regime.
A luta de classes por vezes se escancara e agudiza dessa forma, botando em marcha forças sociais imensas e, caso a classe trabalhadora entre em cena e consiga se organizar para além da influência de sindicatos pelegos e partidos reformistas, absolutamente tudo é possível. Inclusive derrubar Erdoğan e, quem sabe até, superar o oposição burguesa de Ekrem e seu CHP velhaco.