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Ainda uma criança…E já carrega nos braços um bebê

Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres

13 de novembro de 2025
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Ela tem treze anos. Treze. E o Estado brasileiro a chama de “mãe”.

O cartório a recebeu com um papel na mão e um bebê nos braços.

Assinou o nome. Na ponta da caneta, o peso de um crime. Apenas mais um registro. Foi assim, nesse ato burocrático e frio, que o país descobriu o horror que abrigava: uma criança carregando outra criança, fruto de um estupro cometido pelo padrasto, acobertado pela mãe, ignorado por todos.

Foi o acaso, não o Estado, que rompeu o silêncio. O cartório notificou o Ministério Público porque a idade da menina destoava do nome no papel. Se não fosse por isso, talvez o estupro seguisse, silencioso, cotidiano, invisível — como tantos outros. Hoje, ela e o bebê estão em um abrigo. O agressor, preso.

E o país, segue igual.

O que aconteceu ali não é exceção. É regra. É o retrato mais fiel de um Brasil construído sobre o corpo violado de mulheres e meninas.

O lar como prisão, o silêncio como herança

61% das vítimas de estupro têm menos de 14 anos. Oito em cada dez agressores, é alguém da família. O que os moralistas chamam de “lar sagrado” é, para milhões de meninas, o primeiro cárcere. Onde a infância é assassinada — não por monstros, mas por homens “de bem”.

Essas meninas aprendem cedo a calar. Aprendem que o corpo não é delas, mas a vergonha sim. Que é melhor suportar do que destruir a família. A moral é a cerca que as mantém cativas e o agressor impune. A menina de Santa Catarina é uma entre tantas.

Mas o que o país fez com ela — e com o silêncio dela — é o que o capitalismo faz com todas nós: transforma dor em rotina e crime em destino.

O moralismo: a couraça da barbárie

A extrema direita chama isso de “defesa da vida”. Mas o que eles defendem é a vida dos estupradores. O moralismo que domina o país é o cimento da cultura do estupro. É o disfarce elegante da violência.

Quando os moralistas dizem “família”, querem dizer propriedade.

Quando dizem “valores”, querem dizer submissão.

Quando dizem “vida”, querem dizer controle.

É esse moralismo que alimenta o PLD 3/2025 — que o movimento de mulheres corretamente batizou de PLD da pedofilia. Porque é isso o que ele é: a legalização da tortura contra meninas violentadas.

Querem transformar médicos em delatores, hospitais em tribunais, dor em culpa e maternidade em castigo. Querem garantir que nenhuma menina tenha o direito de interromper uma gravidez resultante de violência, que nenhuma mulher tenha o direito de decidir sobre seu próprio corpo.

Querem — em nome da “vida” — perpetuar a morte em vida… de milhões de meninas e mulheres da nossa classe.

O Estado e sua moral de ferro

O Estado brasileiro, esse mesmo que agora colocou a menina e o filho num abrigo, fechou os olhos quando ela mais precisou de proteção. Não havia escola com educação sexual. Não havia serviço de saúde com acolhimento. Não havia assistente social, psicóloga, nem vizinho que ousasse romper o silêncio.

O Estado só aparece depois — para vigiar, punir, institucionalizar. Para apagar o fogo, depois de incendiar a casa.

E o governo, que se diz progressista, se cala. Tem medo da bancada evangélica, da “opinião pública”, de perder votos — mas não tem medo de perder meninas.

Cada silêncio cúmplice é mais uma pedra no muro que separa a vida real das promessas de “governabilidade”.

Não é omissão. É aliança.

É a velha conciliação que deixa intactos o machismo, a cultura do estupro, a violência contra mulheres e o poder da elite.

O moralismo é a máscara do capitalismo

Nada disso é acidente. O moralismo serve a um propósito político. Ele disciplina os corpos para disciplinar o trabalho. Ele impõe culpa e medo para conter rebeldia. Ele faz das mulheres o sustentáculo invisível de uma sociedade que vive de explorá-las.

Quando a extrema direita ergue a Bíblia contra o aborto, não está defendendo fé — está defendendo a propriedade, o lucro, o controle. O ventre das mulheres é o território onde o capitalismo refaz suas fronteiras morais.

A menina de 13 anos é, nesse sentido, o produto mais cruel dessa lógica.

Ela é a síntese de um país onde a infância das pobres é descartável, onde a dor das mulheres é utilitária, onde a moral é a capa do crime.

A ferida aberta

Há algo que deve calar a alma de quem lê: essa menina ainda vive.

E viver, nesse caso, é sobreviver ao inominável.

Quando uma criança é violentada e obrigada à maternidade, não é apenas o corpo que se rompe — é o próprio sentido da palavra “humano”. Não há sociedade justa que possa se erguer sobre esse tipo de silêncio. Não há moral, nem lei, nem governo que se salve enquanto meninas forem condenadas a ser mães.

E, no entanto, o país segue.

Segue com seus templos lotados, seus discursos sobre “família”, seus projetos de lei que perseguem mulheres, suas escolas sem educação sexual, seus políticos negociando votos com pastores, seus jornais que tratam a tragédia como exceção. Segue, como se o que aconteceu com ela fosse inevitável.

Mas não é.

É resultado.

Resultado de um sistema que só sobrevive mantendo as mulheres sob controle.

De um capitalismo que precisa da opressão de gênero como precisa da polícia.

De uma moral que serve para esconder a violência e garantir a ordem.

Por um mundo sem opressão e sem exploração

Nós, mulheres socialistas, só dizemos o óbvio, que o mundo teme ouvir: nenhuma menina deve ser mãe. Nenhuma mulher deve ser forçada ao silêncio e à maternidade. Nenhuma vida deve ser sacrificada à moral dos opressores.

Queremos educação sexual para decidir.

Contraceptivos para não engravidar.

Aborto legal, seguro e gratuito para não morrer.

Queremos destruir o moralismo, o machismo, a ingerência da Igreja no Estado, e a base material de tudo isso: o capitalismo.

Porque só quando não houver mais propriedade sobre o corpo, nem sobre o trabalho, nem sobre a vida, poderemos dizer que somos livres.

A menina de Santa Catarina é uma ferida aberta na cara do Brasil.

Ela não é um caso — é um espelho. E quem olhar de verdade para ele verá não apenas a dor dela, mas a culpa coletiva de uma sociedade inteira.

Um país que chama uma criança de mãe não merece outro nome senão barbárie.

E é contra essa barbárie que lutamos — com nossas vozes, nossos corpos e nossa revolta — até o dia em que a palavra “vida” volte a significar o que essa menina foi impedida de ter: infância, liberdade e dignidade.

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