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As pétalas que faltam

A história da fuga espetacular de presas políticas no Uruguai

Lena Leal

25 de julho de 2025
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“Já em total nudez/estranha ausência/flor a flor/ser a ser/um cair em silêncio e sem objeto.” – Idea Vilariño (1920-2009)

Início de junho. Caminhar pela Ciudad Vieja é se deparar com paredes que falam. Há um frescor nos prédios antigos, renovados por urgências que precisam deixar suas marcas nos cartazes e murais; poemas & grafites & lembretes sobre futuros outros nos enchem os olhos enquanto descemos até o rio. Entre tantas, uma imagem se repete em postes, muros e janelas: a margarida sem uma pétala. Nos aproximamos e abaixo da flor a inscrição – “Madres y Familiares de Detenidos Desaparecidos”. Criado por uma ex-presa política, o logo identifica a luta por memória, verdade e justiça num Uruguai em que a maioria dos torturadores e assassinos durante a Ditadura Militar (1973-1985) ainda não foram devidamente julgados.

Dias antes, em 20 de maio, ocorria a 30ª Marcha do Silêncio, manifestação que leva milhares de uruguaios às ruas de Montevidéu e que tem aumentado ano a ano, com a adesão de novas gerações. O slogan de 2025, sob o 4º mandato da Frente Ampla – “Saibam cumprir. Onde estão?” – não deixa dúvidas em relação ao descontentamento com a morosidade institucional pela busca de corpos e responsabilização dos militares e civis envolvidos nos anos de chumbo uruguaio.

As 38 mulheres do Presídio do Cabildo: uma história silenciada

Continuando a caminhada, na porta do Centro de Fotografía de Montevideu outra imagem impactante nos convidou a entrar. Como numa costura de acasos, a foto da entrada fazia parte da exposição retrospectiva da fotógrafa uruguaia Ana Casamayo que, por sua vez, participou de uma história épica que ficou nas sombras do esquecimento por décadas: a incrível fuga de detentas no longínquo ano de 1971. Assim que vi a foto das 38 detentas na exposição alinhavei informações para chegar até o livro-reportagem da argentina Josefina Licitra.

A jornalista, por sua vez, soube dos elementos iniciais dessa história também por acaso: ao entrevistar Lucia Topolansky (ex-senadora e companheira de Pepe Mujica) para um perfil do mesmo, ouviu dela num bate-papo informal o relato da tal fuga na qual havia participado.   Entre tantas indagações, saiu da entrevista com uma pergunta que a moveu para ir atrás da história:  como nunca ouvira falar de algo tão engenhoso e único? Foi investigar e constatou que, com exceção de um único livro de tiragem muito reduzida e fora de catálogo escrito por uma ex-detenta, o assunto estava completamente invisibilizado. Nada em revistas, jornais ou documentários. Aí veio outra pergunta crucial: Por que esse fato – que pode ser considerado como uma das maiores (a autora fala em maior dadas as características peculiares) fugas coletivas de mulheres – não consta como parte importante da mística construída em torno da esquerda latino-americana dos anos 60, 70?

O ambiente convulsivo pós-II Guerra Mundial no Uruguai e o movimento tupamaro

Para entender o fato há que se investigar o contexto histórico que o gerou. E é isso que Licitra faz em parte das 224 páginas de seu excelente livro (traduzido por Elisa Menezes e editado pela /re.li.cá.rio/). O percurso da ebulição social no Uruguai dos anos 60 caminha junto à profunda crise econômica do país no pós-II Guerra Mundial, aliado ao impacto da Revolução Cubana e da Guerra Fria que, juntos, criam as condições para a emergência de movimentos sociais explosivos. Nesse sentido o MLN-T (Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros) foi, sem dúvida, sua expressão local mais forte.

A autora se exime, propositalmente, de uma análise mais global em relação aos movimentos na América Latina; prioriza a pesquisa sobre a conjuntura e histórico do movimento tupamaro para que se entenda a geração das jovens mulheres que protagonizaram a fuga do Cabildo em 31 de julho de 1971 e o porquê do silêncio.

Contudo se torna impossível ler o livro sem pensar em algumas características comuns aos demais movimentos de guerrilha que se alastraram pela América Latina, apesar da experiência uruguaia contar com uma genuína proximidade com a classe trabalhadora, seja por sua composição social inicial ou pela ética quase franciscana adotada nas ações do grupo. No entanto, não conseguiram evitar – pela própria lógica da guerrilha de vanguarda – o progressivo e perigoso descolamento do movimento de massas. Assim como os demais, foi diretamente influenciado pelas revoluções chinesa e cubana e sua direção pequeno-burguesa aderiu a uma espécie de heroísmo romântico e vanguardista aliado à imensa confusão teórica, fruto de décadas de domínio da burocracia stalinista.

As origens do Movimento Tupamaro (em alusão ao último imperador inca Túpac Amaru) remontam à organização de um semi-proletariado rural da região norte – a UTAA (União dos Trabalhadores Açucareiros de Artigas), que protagonizou Grandes Marchas até Montevidéu na primeira metade dos anos 60. Estas influenciaram toda uma geração de jovens urbanos que vieram a participar do Congresso do Povo, em 1965, ano em que se funda o MLN- T. Assim, após um processo interno de estruturação adotam a guerrilha urbana em que ficam conhecidos internacionalmente como “Guerrilha Robin Hood”. As ações não violentas e voltadas para distribuição de alimentos entre a população pobre, as denúncias de corrupção nas grandes corporações e uma ética de modo de vida criam a mítica tupamara que atravessa fronteiras e vai até parar nas telas de cinema com o famoso filme do cineasta grego Costa Gravas – Estado de Sítio (1972) – baseado no sequestro de um cônsul brasileiro e um ex-agente da CIA.

Ao avanço da repressão pouco antes do golpe alia-se uma espiral de ações mais violentas, oscilações no apoio popular ao movimento e sucessivos aprisionamentos na já frágil democracia uruguaia. É nesse contexto que se dá a espetacular fuga do Presídio do Cabildo de Montevidéu.

A “Operação Estrela” e o lugar das mulheres na História

Todos nós sobrevivemos a mais de uma coisa e todos fugimos de mais de um lugar. Mas, para além desse desespero atávico e comum, existe uma história e ela é fascinante.” J. Licitra – “38 estrelas – A maior fuga de um presídio de mulheres da Historia” p. 11

As linhas, agulhas, esquadros escolares e fitas métricas recebidas pelas detentas para “cumprirem o papel considerado apropriado para uma mulher daquele tempo” (p.10) se transformaram em instrumentos de medição do meticuloso plano de fuga pela tubulação de esgoto. Segundo a autora, os tupamaros também se tornaram conhecidos pelo alto nível de cálculo, criatividade e ousadia. Assim, entre os anos de 1965 e 66 se embrenharam em expedições ao submundo da cidade e logo já tinham em mãos um  mapa detalhado dos caminhos subterrâneos de Montevidéu, contando com especialistas em bunkers nos subsolos da cidade.

Era dia 31 de julho, elas jogavam truco no quarto da fuga; horas antes organizaram uma festa de aniversário para que o barulho vindo das escavações no subsolo não chegasse até a guarda feminina. Foram meses de preparação e quando bateu o horário de 22h30 desceram pelo buraco de 80 cm de diâmetro para o caminho da clandestinidade, ainda sem saberem que logo ali na frente tudo iria piorar.

Na busca por respostas às suas indagações Josefina foi atrás dessas mulheres e através dos depoimentos de 15 delas montou o que chamou de uma “história com várias camadas de significado em que cada detenta trouxe a sua versão”. Licitra manejou muito bem a arte de coser essas memórias, que sabemos serem construídas a partir de filtros que traduzem nossa percepção individual do que é vivido coletivamente. Ao longo do livro vamos percebendo o quanto havia de diversidade nas avaliações e também como o silêncio é naturalizado quando o protagonismo é das mulheres. A autora, como uma arqueóloga, desenterrou vestígios que a levaram para o centro de sua hipótese inicial sobre o silenciamento em torno da “Operação Estrela” (símbolo dos Tupamaros), em que também participaram da fuga, minoritariamente, militantes anarquistas, comunistas e independentes.

Desde o início do século XX o Uruguai esteve à frente de outros países da América Latina em questões de liberdades individuais, laicidade do Estado e direitos das mulheres. A universalização do ensino público, o direito ao divórcio unilateral por parte das mulheres e a proibição de uso de imagens religiosas em todos os espaços públicos se tornaram marcas desse país que teve que lutar continuamente no século XIX para não ser anexado pela Argentina e Brasil. No entanto, essas mesmas conquistas serviram de subterfúgio para que “as mulheres se dessem por satisfeitas” dentro do movimento guerrilheiro.

A autora então nos traz as famosas “Atas Tupamaras”, redigidas na prisão masculina de Punta Carretas, em que são elencadas as tarefas e limites dados às mulheres no movimento. Elas serviam de ponte: “as companheiras são muito eficazes no transporte de mensagens e objetos”; serviam de fachada como imóveis “ela é quem faz com que o aparelho pareça igual a todas as outras casas”; serviam como integrantes de equipes de serviço e ação: “a mulher geralmente é um bom soldado” (p. 103). Algo como o “toque feminino” que Che Guevara menciona em A guerra de guerrilha. Só não serviam para estar na direção maior e liderar o movimento. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. No entanto, o movimento feminista não para de se mover, também no Uruguai, com novas gerações que sacodem o país, sendo a conquista da legalização do aborto uma expressão dessas lutas.

Protagonistas de uma fuga espetacular, muitas foram presas novamente, muitas passaram pelos porōes da ditadura militar sob a batuta da sanguinária Operação Condor e morreram antes de contar sua história. Elas e tantas outras que não conseguiram sobreviver; as que perderam seus entes queridos; as que foram caladas. Elas são as pétalas que faltam para a História ficar completa.

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