Mulheres

Basta de violência e misoginia organizada: é hora de enfrentar o projeto reacionário que ataca as mulheres

Marcela Azevedo, da Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU

2 de dezembro de 2025
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“Influenciador” Thiago Schutz, conhecido como “Calvo do Campari” Foto: Divulgação

Os dois episódios recentes em São Paulo — o influenciador conhecido como “Calvo do Campari” preso por tortura contra a namorada e a mulher brutalmente arrastada na Marginal Tietê — chocam pela brutalidade, mas revelam algo ainda mais profundo: vivemos um momento histórico em que a violência contra as mulheres é alimentada por um projeto reacionário organizado, que transforma ódio, humilhação e desumanização em identidade política.

Não se trata apenas de um aumento quantitativo do machismo. O que vemos é uma mudança qualitativa: a violência ganhou outro conteúdo ideológico e outra forma de organização. O que enfrentamos, atualmente é uma ideologia reacionária estruturada, difundida em escala massiva e legitimada como “visão de mundo” por influenciadores, políticos, religiosos, empresários e homens comuns em busca de alguma forma de poder num cenário de crise.

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Não é mais o “machismo de sempre”

No passado recente, o machismo aparecia majoritariamente como comportamento individual ou como moral conservadora difusa. Hoje, porém, não é mais apenas o homem que agride porque “perdeu o controle”; é o influenciador que performa violência, lucra com ela e a justifica como “masculinidade verdadeira”.

Ideologias misóginas — red pill, masculinismo, incels, “coaches da virilidade” — têm consequências concretas para a vida das pessoas. Elas estruturam comportamentos, moldam relações, organizam percepções e definem o que indivíduos sentem que têm direito de fazer com o corpo e a vida das mulheres. Produzem prática social — e, no limite, produzem morte. Combatê-las é enfrentar a violência concreta, objetiva, que destrói vidas todos os dias.

A base material das novas ideologias

Ideologias com essa força não brotam do nada. Elas se enraízam na crise estrutural do capitalismo, que desorganiza a vida social, precariza o trabalho, destrói direitos e empurra amplos setores para uma existência marcada pela instabilidade e pela falta de perspectiva. É nesse vazio que ideologias misóginas se apresentam como resposta.

Para amplos setores de homens — especialmente jovens da pequena burguesia empobrecida e da classe trabalhadora precarizada —, a masculinidade violenta vira uma espécie de “propriedade privada compensatória”: algo que resta quando tudo o mais já foi perdido. A misoginia atual não é um atraso residual de um patriarcado pré-capitalista, mas uma ferramenta reatualizada de dominação num sistema em crise, que precisa reorganizar hierarquias para estabilizar seu próprio regime.

Como combater: ideologia, política e materialidade

Se essas ideologias têm base material e cumprem uma função política, o combate também precisa ser total. É preciso enfrentar a misoginia onde ela se produz e reproduz: na cultura, nas instituições e nas condições materiais de existência.

A disputa ideológica é uma frente central. A extrema direita compreendeu isso perfeitamente e produz diariamente um imaginário que naturaliza ou glorifica a violência contra as mulheres. Precisamos opor a isso outra cultura política: que desmascare a lógica da dominação, reafirme a humanidade das mulheres e desmonte as farsas que transformam violências em “masculinidade”.

Mas essa disputa só ganha força real quando nasce da organização: da construção de comissões de mulheres nos locais de trabalho e estudo, de núcleos de mulheres trabalhadores e jovens nos bairros populares, de espaços de solidariedade de classe que rompam o isolamento das mulheres onde a violência se reproduz.

Também é necessário o combate político e institucional. Delegacias que desestimulam denúncias, Judiciário que absolve agressores, governos que cortam verbas, políticas públicas desmontadas: tudo isso compõe a engrenagem que permite à misoginia se expressar sem barreiras. A luta precisa enfrentar esses governos, denunciar pactos conservadores, exigir recursos, políticas e serviços públicos — não por ilusão no Estado, mas porque a luta política determina onde estarão os meios para proteger vidas e impedir a violência.

Por fim, mas não menos importante, é indispensável o combate material. Sem emprego, renda, moradia, creches e serviços públicos, milhões de mulheres permanecem presas a relações violentas. A precarização, o desemprego e a sobrecarga doméstica não são problemas “paralelos”: são parte das condições que tornam a violência possível. E são também o terreno no qual a extrema-direita recruta homens desamparados, oferecendo a fantasia de poder baseada na dominação sobre as mulheres. Por isso, lutar contra a violência é lutar por direitos, salários, serviços públicos, jornada menor, autonomia econômica.

A unidade das três dimensões

A violência contra as mulheres só se sustenta porque articula ideologia, instituições e condições materiais de vida. Um combate que ataque apenas uma dessas dimensões deixa as outras intactas e, portanto, se torna impotente. Nossa tarefa, enquanto movimento de mulheres trabalhadoras e socialista, é unificar essas frentes: disputar consciência, enfrentar governos e conquistar condições materiais de vida dignas.

Não enfrentamos apenas indivíduos violentos, mas um projeto reacionário que precisa da subordinação das mulheres para se manter de pé. Por isso, a resposta tem que ser coletiva, política e de classe.

A violência organizada que hoje se volta contra as mulheres só pode ser derrotada com outra força organizada: a força das trabalhadoras e dos trabalhadores em luta. E é essa força que nós do MML buscamos mobilizar quanto organizamos as mulheres trabalhadoras com independência de classe para enfrentar o machismo, o capital e toda forma de opressão. Porque lutar contra a violência é lutar pela vida das mulheres — e lutar pela vida das mulheres é lutar pela transformação radical da sociedade.

Marcela Azevedo é da Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU e do Movimento Mulheres em Luta (MML)

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