Brasil como campo de ensaios: a nova lei da pesquisa clínica e o retrocesso do controle social

Em meio à onda de privatizações, parcerias público-privadas e políticas de incentivo ao chamado “complexo econômico-industrial da saúde”, o governo brasileiro sancionou uma nova lei que pode transformar o país em um verdadeiro campo de testes para as grandes indústrias farmacêuticas. A Lei nº 14.874/2024 — apresentada como um marco de “modernização” da pesquisa clínica — destrói décadas de construção de um sistema de controle social e abre caminho para que populações pobres e vulneráveis sejam utilizadas como cobaias humanas em nome do lucro.
O sistema ético do SUS sob ataque
Desde a década de 1990, o Brasil tinha um dos sistemas mais avançados de controle ético em pesquisa com seres humanos. O Sistema CEP/CONEP, ligado ao Conselho Nacional de Saúde, combinava comitês de ética descentralizados e uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), formada por representantes de universidades, profissionais de saúde e da sociedade civil.
Esse modelo garantia independência e participação popular, colocando o interesse público acima de qualquer interesse comercial. Cada protocolo de pesquisa era submetido a análise detalhada sobre riscos, consentimento informado, benefícios, responsabilidades e acesso ao tratamento após o estudo. Foi esse sistema, por exemplo, que barrou experimentos duvidosos durante a pandemia de covid-19 — entre eles o caso de Manaus, em que uma empresa privada testou o uso de cloroquina em pacientes internados, resultando em mais de duzentas mortes.
Mas tudo isso começou a ruir com a nova legislação aprovada pelo Congresso em 2024 e regulamentada agora por meio de um decreto presidencial assinado por Lula.
A nova lei: “modernização” para quem?
A nova lei cria o chamado Sistema Nacional de Ética em Pesquisa (SINEP) e substitui a CONEP pela Instância Nacional de Ética em Pesquisa (INAEP). Na prática, o que se apresenta como um “avanço institucional” representa uma subordinação da ética aos interesses econômicos.
O novo órgão passa a estar vinculado diretamente à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, a mesma que coordena o “complexo econômico-industrial da saúde” — ou seja, a estrutura voltada a atrair investimentos privados e ampliar a competitividade da indústria farmacêutica. É o fim da independência entre quem regula e quem lucra.
O discurso oficial é sedutor: reduzir a “burocracia”, acelerar aprovações e tornar o Brasil “atraente” para estudos internacionais. Os prazos para aprovação de pesquisa com seres humanos, que antes giravam em torno de 90 a 180 dias — em casos complexos, como estudos multicêntricos ou envolvendo indígenas, gestantes ou crianças, o prazo podia ser maior — para assegurar a revisão por pares, ajustes no protocolo e a garantia do consentimento informado, foram reduzidos para 30, inclusive para ensaios de alta complexidade.
Em casos emergenciais, a autorização pode ter prazos ainda mais reduzidos, inclusive com autorização prévia para iniciar o estudo antes da conclusão da análise ética — algo impensável no modelo anterior. Mas, como alertam os pesquisadores que se demitiram coletivamente da CONEP, não há ciência séria sem controle ético rigoroso. A pressa em nome da competitividade é, na verdade, pressa para o lucro.
Renúncia coletiva e denúncia pública
O alerta mais grave veio de dentro do próprio sistema. No último dia 13 de outubro, 26 integrantes da CONEP apresentaram renúncia coletiva, denunciando o esvaziamento do controle social e o caráter autoritário da nova estrutura. Segundo a nota pública assinada por eles, a nova instância “retira da sociedade o direito de participar das decisões sobre pesquisas em seres humanos e entrega o poder às mãos do governo e do mercado”.
Os pesquisadores apontam ainda que o novo sistema reduz a proteção dos participantes de pesquisa, especialmente em dois pontos centrais: o acesso ao tratamento após o fim dos estudos, que deixa de ser garantido de forma permanente e passa a depender de um “plano de acesso” sujeito à decisão da empresa patrocinadora e a possibilidade de realização de estudos em populações vulneráveis — indígenas, pessoas em privação de liberdade, pacientes internados — com menos instâncias de revisão e fiscalização.
O resultado é uma legislação feita sob medida para os interesses das multinacionais farmacêuticas, que verão no Brasil um terreno fértil para realizar testes rápidos, baratos e com pouca resistência institucional.
O Brasil como “mercado de cobaias”
Numa entrevista ao portal Outras Palavras, um dos conselheiros que renunciou ao CONEP, o epidemiologista Heleno Corrêa, pesquisador da ESCS/UnDF e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) resumiu o perigo: “Dizem que o sistema atual atrasa a ciência. Nós acreditamos que ele atrasa o lucro.”
O país é hoje o segundo maior destino de testes clínicos da América Latina, atrás apenas do México, e reúne condições ideais para atrair empresas estrangeiras: grande população, diversidade genética, desigualdade social e um sistema público de saúde abrangente. Ou seja, o que poderia ser uma vantagem para a soberania científica nacional está sendo transformado em vulnerabilidade — a população pobre como “estoque” para experimentação.
O SUS e a soberania da pesquisa
O que está em disputa não é apenas a regulação da pesquisa, mas o sentido da ciência e da saúde no Brasil. O SUS nasceu com base na ideia de que a saúde é um direito, não uma mercadoria. O mesmo princípio deve valer para a ciência: pesquisa deve servir ao povo, e não aos acionistas das farmacêuticas.
A subordinação da ética à lógica de mercado faz parte de um projeto mais amplo de privatização e desmonte do controle social, que vem se expressando também na terceirização de unidades do SUS, na entrega de dados de pacientes a empresas privadas e no financiamento público de produtos patenteados. A nova lei da pesquisa clínica é mais um passo nessa direção — o da mercantilização da saúde e da vida.
O que defendemos
Para o PSTU, o controle social não é um obstáculo, mas a garantia democrática de que a ciência sirva à humanidade. Portanto, o que precisamos é o contrário do que a nova lei propõe.
Precisamos fortalecer o sistema CEP/CONEP, ampliando sua estrutura e recursos; garantir o acesso pleno e vitalício a medicamentos experimentais para todos os participantes de pesquisa; proibir o uso de populações vulneráveis em ensaios patrocinados por empresas privadas; tornar públicos todos os resultados, positivos ou negativos, de estudos realizados no país; e submeter a política de pesquisa à deliberação dos conselhos de saúde e ao controle popular.
A ciência não pode ser refém interesses privados e de acordos internacionais. Ela deve estar a serviço das necessidades sociais, do SUS e da soberania nacional.
Não ao país das cobaias
Ao desmontar o controle ético e popular das pesquisas, o governo entrega à indústria farmacêutica algo que ela sempre desejou: um país inteiro disponível para experimentação. A promessa de “modernização” esconde um enorme retrocesso em direitos humanos, saúde pública e democracia.
O que está em jogo é o valor da vida humana frente ao poder do capital. Não há “inovação” que justifique a transformação do povo brasileiro em cobaia. Cabe à classe trabalhadora, aos sindicatos, às entidades de saúde e aos movimentos sociais exigir a revogação dessa lei e a reconstrução de um sistema de ética independente, transparente e controlado pelo povo.