Cultura

‘Bye Bye’ Cacá Diegues, o contador das histórias do Brasil

Wellingta Macedo, de Belém (PA)

15 de fevereiro de 2025
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Cacá Diegues lutou a vida toda em defesa do cinema nacional | Foto: Divulgação

Ontem (14/2), faleceu Cacá Diegues, um dos mais importantes e emblemáticos cineastas brasileiro. Cacá foi responsável por grandes sucessos do cinema nacional, numa época em que não existia streamings e grandes propagandas de filmes brasileiros com uma grande campanha midiática como a que está por trás de Ainda Estou Aqui, filme brasileiro de Walter Salles indicado a três categorias no Oscar 2025 (melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz, para Fernanda Torres) e que levou mais de 3 milhões de pessoas, até o momento, às salas de cinema no Brasil, além de outras premiações importantes, como o Goya, o Oscar do cinema espanhol.

Podemos dizer que sucessos como Ainda Estou Aqui, são resultados do trabalho e amor incansável de Cacá Diegues em ser, insistentemente, um cineasta brasileiro em tempos de ditadura e censura, em anos de chumbo, de fechamento da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e de um certo “ranço” e preconceito em relação aos filmes brasileiros, que eram taxados de filmes que só têm “sexo e palavrões”. Como se não existissem sexo e palavrões em outros cinemas.

A insistência de Cacá em realizar filmes no país foi falada pelo próprio cineasta em entrevistas. Principalmente, quando comparava ser um cineasta no Brasil era com ser um astronauta no Paraguai. Para Cacá, o cinema era uma forma de conhecer o mundo, tal qual ser astronauta, que quer conhecer outros planetas. Através de seus filmes, Cacá nos fez conhecer o nosso Brasil, a nossa história, esse mundão espalhado em cinco regiões, a partir de suas histórias onde o povo brasileiro sempre foi o grande protagonista.

A paixão pelo cinema e o ativismo político

Carlos José Fontes Diegues, Cacá para os amigos e fãs, nasceu nordestino, em Maceió, capital de Alagoas, em 1940. Aos 6 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e foi morar no bairro de Botafogo, onde passou infância e adolescência. Desde cedo, Cacá demonstrou sua paixão pela sétima arte mesmo tendo se formado em Direito, pela PUC-Rio. Inclusive, foi na faculdade que ele — ao lado dos amigos que depois virariam também cineastas, David Neves e Arnaldo Jabor — fundou um cineclube, dando os primeiros passos como cineasta amador, no que viria a ser sua profissão conhecida do grande público.

Cacá também foi presidente do diretório estudantil e dirigiu o jornal O Metropolitano, o órgão oficial da União Metropolitana de Estudantes (Umes). Depois, se junta ao famoso Centro Popular de Cultura, o CPC, ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes). Esses dois grupos foram a base, no final da década de 1950, do que viria a ser o Cinema Novo, um dos movimentos mais importantes do cinema no Brasil.

Cacá foi um dos líderes do movimento ao lado de, ninguém mais ninguém menos, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade, as outras caras do Cinema Novo, um cinema que revolucionou a estética e a linguagem do audiovisual nacional e virou referência para várias gerações de cineastas e cineclubistas no Brasil e exterior.

Os primeiros filmes e a utopia de fazer cinema no Brasil

Envolvido com o ativismo político que o Cinema Novo trazia em suas obras e vivendo o contexto do golpe militar, que fechou o regime no Brasil e instaurou uma ditadura, nos três primeiros filmes de Cacá — Ganga Zumba (1964), A grande cidade (1966) e Os herdeiros (1969) — estavam imbuídos do espírito estético do movimento que ele havia ajudado a fundar.

Por exemplo, Ganga Zumba, que conta a história do líder do quilombo dos Palmares, foi feito em locações como era a proposta do Cinema Novo. A ambientação histórica mostra a preocupação do diretor em retratar a vida dos negros no quilombo e sua luta. O Cinema Novo era um cinema engajado, com um senso de humanidade e realismo. Essas características estavam presentes nas obras de Cacá nesse período.

AI-5, exílio e Xica da Silva

Os anos de chumbo chegam e a utopia de fazer um cinema engajado, um manifesto de um Brasil mais humano, cai por terra para Cacá. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), ele deixa o Brasil, em 1969, ao lado da então esposa, a cantora Nara Leão, com quem teve dois filhos. Os dois se separaram 12 anos antes de Nara falecer e tiveram uma relação intensa, de altos e baixos. Cacá carregou, durante anos, a alcunha de ser um marido machista e opressor, que proibira Nara de cantar. Fato por ele negado em sua autobiografia.

Quando volta ao Brasil em 1972, realizou o filme Quando o Carnaval Chegar, uma de suas grandes parcerias com o cantor e compositor Chico Buarque. O roteiro do filme foi feito por Chico, Cacá e Hugo Carvana, outro grande nome do nosso cinema.

Chico Buarque colabora também na trilha sonora do filme. Além dele, Nara Leão e Maria Bethânia participam e cantam na trilha sonora do filme. Nesse longa-metragem, Cacá trouxe pela primeira vez a história de um grupo mambembe, que vai voltar a aparecer depois, em outra obra sua.

Em 1976, ele experimenta seu maior sucesso popular cinematográfico com Xica da Silva. Baseado no livro homônimo de João Felício dos Santos, tendo Zezé Motta e Walmor Chagas nos papéis principais, o filme conta a história da mulher negra escravizada que ganha alforria ao se casar com um homem branco e passa a viver como uma sinhá branca. Xica da Silva leva muitos brasileiros ao cinema, transforma Zezé Motta em símbolo sexual e revela a hipocrisia do mito da democracia racial e o racismo em nosso país, em plena ditadura militar. O filme cai no gosto popular e vira referência tanto positiva, quanto negativa também, para outras obras da dramaturgia brasileira onde a mulher negra foi retratada, com todos os estereótipos raciais que a cercam.

Por Xica da Silva, Cacá foi premiado no Festival de Brasília como melhor diretor e Zezé Motta foi eleita melhor atriz.

Bye Bye Brasil e crise do cinema brasileiro: dias melhores virão

Com o sucesso popular de Xica da Silva, Cacá tornou-se um cineasta famoso e experimenta o lado ruim da fama ao ver seus filmes, como Xica da Silva, objetos de crítica de uma esquerda mais “ortodoxa”. A isso, ele vai criar a expressão “patrulhas ideológicas” para reclamar de alguns setores da cultura, que desqualificavam alguns produtos que não eram “engajados”. Isso ocorria em meio a discussão e luta pela redemocratização do país e de renovação do cinema. É nesse período que Cacá produz Chuvas de Verão (1978) e a sua grande obra prima, na minha avaliação crítica, Bye Bye Brasil (1979).

Bye Bye Brasil é uma comédia, um microcosmo imagético e sonoro do nosso país. É considerada uma das grandes obras cinematográficas do final da década de 1970. Em novembro de 2015, Bye Bye Brasil entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros, elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Com três personagens carismáticos e bem brasileiros — Salomé, Lord Cigano e Andorinha — três artistas mambembes que cruzam o país com a Caravana Rolidei fazendo espetáculos, Cacá encantou o público e voltou ao sucesso popular, capturando um Brasil esquecido, longe dos grandes centros urbanos, colocando a cara do povo pobre na grande tela. O filme foi gravado na Amazônia: em Belém, capital do Pará; na Transamazônica; e na cidade Altamira (PA). Nesse filme, Cacá retoma sua parceria com Chico Buarque, que compôs a música homônima, virando um dos maiores clássicos da MPB.

Bye Bye Brasil é considerado um marco desse período e uma espécie de “despedida” da identidade romântica de um Brasil que ainda mantém a esperança, apesar das torturas, mortos e desaparecidos políticos. Sua paisagem geográfica, social, histórica, meio ficcional, meio documental de um país e seu povo.

Como que antevendo o que estava por vir, Cacá passou os anos 1980 enfrentando a crise e as incertezas do cinema brasileiro na chamada “década perdida”. Em 1984, realizou em parceria com uma produtora francesa e filma o épico Quilombo, com grandes nomes da dramaturgia negra como Zezé Motta, Antônio Pômpeo, Grande Otelo e Tony Tornado.

Realizou, na fase crítica do cinema nacional, dois filmes de baixo custo muito importantes para a nossa cinematografia. Um trem para as estrelas (1987), com trilha sonora de Cazuza, e Dias melhores virão (1989), um dos meus preferidos, com Marília Pêra, Rita Lee, Paulo José, Zezé Motta e José Wilker. O filme é uma homenagem singela aos dubladores brasileiros e crítica ao cinema de Hollywood. Fiz uma análise crítica dessa obra no antigo programa “Cinema Livre”, da Web Rádio Censura Livre. Você pode conferir aqui.

Retomada, novos sucessos, imortal da Academia

O escritor Jorge Amado e o cineasta Cacá Diegues durante a gravação de ‘Tieta do Agreste’, em 1995 | Foto: Acervo Fundação Casa de Jorge Amado

Com a nova Lei do Audiovisual, promulgada em 1993, Cacá Diegues seguiu na ativa e acompanhou o movimento da retomada do cinema brasileiro. Realizou filmes voltados ao grande público com adaptações já conhecidas em outros formatos e versões. É assim que surgem os sucessos de publico com Tieta do Agreste (1996), com Sônia Braga como protagonista e trilha sonora assinada por Caetano Veloso, e Orfeu (1999), um remake do filme de 1959, Orfeu do Carnaval, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro para a França em 1960. Na versão de Cacá, o filme se passa numa favela do Rio de Janeiro.

Em 2003, Cacá realizou o simpático Deus é Brasileiro, com Antônio Fagundes e Wagner Moura, em começo de carreira. O filme caiu nas graças do público pelo carisma da dupla protagonista e é uma adaptação de um conto do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro.

Cacá Diegues, em vida, com mais de 18 filmes, foi um dos realizadores brasileiros mais reconhecidos no mundo. Entre as diversas honrarias recebidas está o título de Comendador da Ordem de Mérito Cultural e a Medalha da Ordem de Rio Branco, dada pelo governo brasileiro. Em 2018, foi eleito novo imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) para ocupar a cadeira de nº 7, que tinha sido ocupada pelo também cineasta Nelson Pereira dos Santos.

Cacá teve três filhos, sendo dois com a cantora Nara Leão, Francisco e Isabel, e Flora, fruto da relação com a produtora de cinema Renata Almeida Magalhães. Flora faleceu aos 34 anos, em 2019, em decorrência de um câncer no cérebro. Cacá se afastou dos trabalhos quando a filha recebeu o diagnóstico e ano passado, numa entrevista, declarou que havia perdido o gosto pelas coisas, inclusive o interesse pelo cinema.

Cacá Diegues morreu aos 84 anos, no Rio de Janeiro. Um contador de histórias do nosso cinema nacional. Capturou como poucos, a essência humana do povo brasileiro em suas obras, com suas tragédias e situações cômicas. Um homem que viveu o seu tempo e o retratou pela tela mágica da sétima arte. Foi um astronauta que desbravou o mundo através dos seus filmes, que ficarão para a eternidade, nos levando ao passado para entender o presente e projetar nosso futuro.

Bye Bye Cacá, boa viagem!

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