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Cada classe com seus demônios

A indignação dos porta-vozes do Sistema com a Vai-Vai vem da verdade incômoda expressa no desfile

Israel Luz

14 de fevereiro de 2024
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Ala no desfile da Vai-vai representando a polícia militar como demônio (Foto:Divulgação)

“Eu não consegui me mexer… não sei explicar a reação que eu tive de raiva. Eu peguei uma bronca de policiais”. Foi assim que uma mãe da zona norte de São Paulo descreveu seu sentimento ao passar na rua por um dos policiais militares que xingou e prendeu injustamente seu filho, um jovem operário, em 2023. Um camarada do PSTU, nascido e criado na Brasilândia, comentou como era normal a molecada da vila dele correr ao ver a viatura chegando. O medo, muito concreto, era levarem um enquadro só por estarem passeando na própria vizinhança. Na fase atual da Operação Escudo na Baixada Santista, multiplicam-se denúncias de abusos graves e, como revelou recentemente a Ponte Jornalismo, crianças já tremem ao ver policiais em algumas comunidades.

Mas você não vai ler notas da direção do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) chamando isso tudo de “inversão de valores”, “humilhação”, coisa “vil e covarde”, todos qualificativos dirigidos contra o certeiro desfile da Vai-Vai neste Carnaval 2024. A entidade desconhece ou faz questão de não ver que, para a população da periferia, negra e indígena em sua maioria, muitas vezes as polícias atuam sim como verdadeiras hordas de demônios.

A declaração do Sindpesp tem, contudo, uma qualidade. Ao mostrar uma representação da força civil se colocando à frente da defesa da força militar, ilustra perfeitamente a unidade de objetivos de todas as polícias. “Não estamos falando, afinal, apenas dos policiais, sejam civis ou militares, mas, sobretudo, de uma instituição de Estado que representa e está a serviço de toda a sociedade bandeirante” (destaque meu).

A São Paulo bandeirante é a São Paulo dos ricos. Os burgueses e seus funcionários que fazem o trabalho sujo nunca perdem a oportunidade de se mostrarem orgulhosos da sua longa história de violência contra o povo. Revelam, assim, como a questão da polícia é a questão do Estado burguês, não somente em termos históricos, de origem, mas de modo terrivelmente atual e cotidiano.

Essa constatação é importantíssima porque ainda há nos setores progressistas que espalham o discurso de que as práticas racistas da polícia são falta de preparo ou, em outras palavras, uma exceção que pode ser corrigida mantendo o poder político como é hoje.

A título de exemplo, vejam o comentário no perfil do Instagram de Eduardo Suplicy (PT) ao denunciar o ataque da PM ao funcionário público Juan Ribeiro de Araújo em S. Vicente no último dia 09/02: “É preciso que os policiais sejam preparados para conter a criminalidade sem colocar em risco a vida dos moradores e dos próprios policiais. Esse despreparo e truculência tem custado a vida de pessoas inocentes”.

Tanto a Polícia Militar, quanto a Polícia Civil, na realidade são bem-preparadas para seu papel repressivo nesta sociedade injusta. Repito citação de Lélia Gonzales feita na minha primeira coluna, articulando sucintamente ação policial e capitalismo:

“A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista […] tem por objetivo próximo a imposição de uma submissão psicológica através do medo. A longo prazo, o que se pretende é o impedimento de qualquer forma de unidade e organização do grupo dominado mediante a utilização de todos os meios que perpetuem sua divisão interna. Enquanto isso o discurso dominante justifica a atuação desse aparelho repressivo falando em ordem e segurança sociais. A partir daí, o sistema se beneficia com a manutenção de tais condições, na medida em que, desse modo, conserva à sua disposição a mão de obra mais barata possível” (Lugar de Negro, 1982).

Desse ponto de vista, a importante bandeira da desmilitarização ganha um sentido mais amplo do que só transformar as polícias militares em organizações civis.

Primeiro, trata-se de repensar e mudar toda a lógica da chamada segurança pública, hoje expressão das necessidades mais íntimas da minoria rica que se sabe minoria e, por isso, compreende bem o valor da violência organizada contra nós.

Segundo, significa lutar pelo poder dos trabalhadores com uma agenda socialista impulsionada pela mobilização dos de baixo. Como assim? Com o controle das decisões políticas, poderemos finalmente pautar a segurança coordenadamente com programas amplos de geração de renda e emprego, ao contrário do receituário neoliberal focalizado e da permanente flexibilização trabalhista. A garantia de condições dignas de moradia e Educação e Saúde públicas de qualidade entra igualmente nessa conta.

Ao mesmo tempo, teríamos condições de interromper a falsa guerra às drogas. Este suposto combate ao tráfico, em moldes importados dos EUA, multiplica a violência nas cidades em vez de cortar o mal pela raiz. Sem moralismo é preciso, de um lado, apostar na descriminalização das drogas para acabar com o poder econômico dos capitalistas do crime, fonte de corrupção do próprio Estado burguês; de outro lado, tratar os efeitos nocivos do uso excessivo como questão de saúde pública.

Nos territórios periféricos, o poder da maioria tem ainda outra implicação: deve permitir criar mecanismos de democracia efetiva, pelos quais os comandantes da força de segurança única sejam eleitos e demitidos, quando for o caso, pela população dos bairros.

Para concluir, constatemos que a indignação dos porta-vozes do Sistema com a Vai-Vai vem da verdade incômoda expressa no desfile, fosse ou não a intenção dos seus elaboradores. Ao se levantarem contra a representação de uma de suas mais importantes instituições, tentam exorcizar o próprio medo do efeito mobilizador e potencialmente revolucionário que tem a denúncia dos seus crimes. Cada classe com seus demônios.

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