Negros

Sobre a campanha por uma ministra negra no STF

Secretaria de Negras e Negros do PSTU

17 de outubro de 2023
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Projeção na Biblioteca Nacional em 24 de agosto de 2023 pede indicação de ministra negra ao STF | foto: Coalizão Negra Por Direitos

Lula indicou para o Supremo Tribunal Federal (STF) seu advogado, Cristiano Zanin, em 1º de junho deste ano. Desde então, o debate sobre a representatividade negra no Supremo tomou as redes sociais. Com o anúncio da aposentadoria de Rosa Weber, esse debate veio com uma força ainda maior, afinal, seria a segunda nomeação de Lula ao STF ainda neste mandato. Lula, que em sua campanha disse defender políticas de representatividade, hoje é pressionado para aplicar essas políticas pela base eleitoral que o elegeu.

Os dados demográficos geram questionamentos inevitáveis sobre a representatividade no STF. Por um lado, o Brasil possui uma comunidade negra que representa 56% do país, sendo que as mulheres negras representam 28% da população (maior grupo populacional). Por outro, em 133 anos de STF (criado no dia 22 de junho de 1890), apenas três juízes negros, três juízas mulheres, e nenhuma juíza negra, dentre os 171 ministros que já passaram por lá e integraram o Poder Judiciário. Isso demonstra como o racismo se expressa em todas as esferas.

Quem são as organizações que movimentam a campanha?

Em setembro, uma grande campanha se iniciou nas redes sociais, com o uso da hashtag #PretaMinistra. Várias personalidades, como artistas, intelectuais e políticos, se manifestaram a favor da campanha. O vídeo com o título “Eu Avisei”, de Gregório Duvivier, no canal do Youtube da HBO e já conta com mais de 750 mil visualizações. Além disso, diversos jornais da grande mídia (nacional e estrangeira) estão cobrindo ações de divulgação da campanha. É o caso do vídeo que passou na Times Square, em Nova Iorque (EUA); do outdoor colocado em frente à reunião do G20 em Nova Deli (Índia); e de uma exposição de arte que ocorreu em 14 cidades espalhadas pelo país.

Duas organizações compõem centralmente a campanha: o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) e a Coalizão Negra por Direitos. Ambas estão idealizando iniciativas para difundir a campanha e investindo nas ações que repercutem na mídia e nas redes. Além dessas organizações, 25 deputadas federais (de partidos como o PT, PSOL, PSB e PCdoB) assinaram uma carta endereçada a Lula pedindo que ele indique uma mulher negra para o STF.

Até o momento pode-se dizer que a campanha é essencialmente digital, com algumas intervenções presenciais que visam ser registradas para viralizar nas redes. Ainda que não tenha emplacado em um movimento de massas, existe grande apoio na vanguarda da luta antirracista a essa pauta. Isso demonstra uma possibilidade de que ganhe destaque no calendário do movimento, como o 20 de novembro.

PT e Lula reagiram de forma negativa à campanha.

O PT não emitiu oficialmente uma posição. Apenas Lula se posicionou diante do tema duas ou três vezes. Em geral, ele minimiza a relevância da representatividade como critério de escolha do próximo ministro e dá o tom do que irá aparecer na campanha da militância petista nas redes.

Ele diz não querer “compromisso” de indicar mulher ou negro ao STF. Disse que vai “levar isso em conta na escolha”, mas que o critério é que a pessoa deve “ser altamente gabaritada do ponto de vista jurídico, ter compreensão dos problemas sociais do país, ter o mínimo de sensibilidade social”. Esses critérios de mérito foram colocados em contraposição à representatividade, como se fossem excludentes entre si. Dessa forma, Lula estabelece o argumento da meritocracia contra a representatividade.

Em outro trecho de suas falas, ele afirma: “[Eu vou escolher] uma pessoa que tenha respeito, mas não medo da imprensa. Uma pessoa que vote adequadamente sem ficar votando pela imprensa”. Apesar de não dizer diretamente, é possível concluir que Lula está se referindo ao processo da Lava-Jato, que se utilizou da mídia para gerar uma pressão popular e que, por fim, resultou em sua condenação à prisão, legitimada pelo STF. Assim, Lula estabelece um segundo argumento: o critério para se definir quem é “de esquerda” ou “progressista” é o apoio ou não à Lava-Jato, e não outro.

Vale reafirmar que parte dos quadros petistas ainda apoia a campanha de uma mulher negra no STF, porém, uma grande parte dessa militância, nas redes, passou a combater essa campanha. O que era um “não compromisso com uma mulher negra” virou um “compromisso com um homem branco”, com os argumentos que traremos a seguir.

Por um lado, estão utilizando o exemplo de Joaquim Barbosa, um ministro negro indicado ao STF por Lula, mas que votou pela condenação de José Genoíno e de Delúbio Soares no caso do mensalão. Na lógica da militância petista, não é o PT que deu um giro à direita ao adotar os métodos da corrupção, mas sim Joaquim Barbosa é que era de direita, porque queria punir corruptos “de esquerda”. Dentro dessa lógica, Joaquim Barbosa seria um “negro de direita”, tal como Sérgio Camargo ou Fernando Holiday.

A partir desse caso, iniciam uma luta teórica anti-identitarismo. Dizem que Zanin está sendo “linchado” nas redes com “cancelamento” de uma militância “identitária”, e que ele deveria ser defendido por não ser lavajatista. Mesmo Zanin tendo votado contra a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo; votado a favor da ação de policiais em territórios indígenas; e votado contra a descriminalização do consumo de drogas.

Dizem que uma mulher negra não é necessária no STF, mas sim um progressista. Isso prepara o caminho para a aceitação de um dos 3 nomes que são os favoritos para ocupar a vaga de Rosa Weber no STF: o ministro da Justiça, Flávio Dino, o advogado-geral da União, Jorge Messias, e o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas.

Representatividade na política

A pauta da representatividade nos poderes do Estado brasileiro não se inicia com essa nomeação para o STF. A Emenda Constitucional nº 117, de 2022 impôs aos partidos políticos uma cota de 30% de candidaturas femininas, com a obrigação de destinação de dinheiro do fundo eleitoral e do tempo de rádio e televisão nessa mesma proporção para as mulheres.

Esse foi um marco importante para a participação das mulheres na política. Quem se saiu melhor na aplicação da política de representatividade foram os partidos de esquerda. Para ficar em três exemplos: o PCB apresentou a candidatura de Sofia Manzano para presidente e Antonio Alves para vice (mulher branca e homem negro); a UP apresentou a candidatura de Leonardo Péricles para presidente e Samara Martins para vice (homem negro e mulher negra); e o PSTU apresentou a candidatura de Vera para presidente e Raquel Tremembé para vice (mulher negra e mulher indígena).

O PSTU, inclusive, é historicamente o partido que apresenta o maior número de candidatos negros nas eleições, tendo apresentado a primeira chapa presidencial 100% negra do Brasil, em 2018 com Vera para presidente e Hertz Dias para vice.

Porém, os grandes partidos patronais tiveram muita dificuldade de aplicar a política de representatividade, tendo que pagar multas milionárias. Isso gerou uma reação no Congresso, que apresentou uma proposta de emenda à constituição para anistiar os partidos que não cumpriram cotas para mulheres e negros. Essa PEC propõe não aplicar as multas para os partidos referente às eleições de 2022.

Vale dizer que a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, fez uma declaração na Câmara dos Deputados durante a comissão que analisa essa PEC que anistia as multas dos partidos que não cumprem a cota de gênero na distribuição de verbas. Ela afirma que os valores estabelecidos não eram exequíveis e que os partidos não teriam dinheiro para arcar com a cobrança. Para ela, as multas do TSE inviabilizam a existência dos partidos porque são muito altas, mas não explicou porque deveriam existir partidos que não são capazes de destinar sequer 30% das verbas para mulheres fazerem campanha.

Os revolucionários e a luta pela representatividade política

A pauta da representatividade na política não é uma exclusividade do STF, mas pertence a todos os poderes do Estado. Mas se engana quem pensa que isso é um debate recente, que se iniciou nos últimos anos, ou que nasceu como uma agenda da ONU para desviar os movimentos negros do mundo para pautas “não-revolucionárias”. Para exemplificar, vamos trazer uma intervenção do revolucionário russo Leon Trotsky em um debate sobre a criação de uma organização de negros em 1939 com a direção do SWP (Partido Socialista dos Trabalhadores) norte-americano:

“Quantos negros há no Congresso? Um. Existem 440 membros na Câmara dos Deputados e 96 no Senado. Então, se os negros tiverem quase 10% da população, eles têm direito a 50 membros, mas têm só um. É uma imagem clara da desigualdade política. Nós podemos, com frequência, opor um candidato negro a um candidato branco. Essa organização de negros pode sempre dizer: ‘Nós queremos um negro que conheça nossos problemas’. Isso pode ter consequências importantes”.

Os dirigentes do SWP não estavam satisfeitos com essa formulação de Trotsky, e contra argumentaram dizendo que votar em um negro só porque é negro é um programa de frente popular; que não poderiam apoiar um negro do partido democrata; ou ainda que bastaria o partido apresentar candidatos negros em bairros de maioria negra e pedir aos negros que votassem nos candidatos brancos nos bairros de maioria branca.

Trotsky rebateu esses argumentos da seguinte forma: “Se somos fracos e não conseguimos que a nossa organização escolha um revolucionário, e eles escolhem um democrata, podemos até retirar nosso candidato com uma declaração concreta de que estamos nos abstendo de concorrer não contra um democrata, mas contra um negro. Consideramos que a candidatura do negro em oposição à do branco, mesmo que ambos sejam do mesmo partido, é um fator importante na luta dos negros por igualdade; e neste caso podemos apoiá-los criticamente”.

Como devemos tratar essa questão?

Em primeiro lugar, é importante compreender a legitimidade da pauta em si. Se os negros são maioria no nosso país, não é possível aceitar que sejam minoria no STF ou em qualquer outra esfera de poder do Estado que afirma representar o povo brasileiro. Qualquer formulação que dê a entender o contrário disso deve ser combatida por nós. Essa pauta pode se combinar com todas as outras que defendem a ampliação dos direitos democráticos. Assim como combinamos a luta pelas cotas nas universidades com a luta pela universalização do ensino superior.

Quanto mais completa a representatividade dos poderes do Estado, mais evidente se torna para os setores oprimidos que a luta por seus interesses não virá através das instituições burguesas ou apenas da representatividade racial, mas sim de sua luta e organização contra o capitalismo, a questão de raça deve estar atrelada a questão de classe. Isto é, que a privação de direitos, o preconceito e os problemas econômicos se devem ao capitalismo não à falta de representantes de seus interesses ou de sua identidade, seja ela racial, de gênero ou qual for.

É importante lembrar que em 2015 nos EUA, quando Freddie Grey, de apenas 25 anos, foi assassinado (o que desencadeou um verdadeiro levante em Baltimore), o presidente, a prefeita e o chefe de polícia eram negros. Inclusive, 63% da população de Baltimore é negra. Porém isso não impediu que mais um jovem negro fosse morto nas mãos da polícia norte-americana e se desencadeasse no país uma onda de protestos antirracistas.

Não nos opomos à pauta da ministra negra, contudo, não podemos fazer deste o centro de nossas exigências ao governo e, muito menos, o centro de nossas ações e campanhas, sobretudo num momento em que negros e negras são chacinados, criminalizados e encarcerados nas periferias e favelas do país, com a anuência e conivência do governo federal, governadores e prefeitos que além de atacar os direitos dos trabalhadores, tentam normalizar seus crimes e mortes.