Colonização e Stalinismo
O crime não se resume aos expurgos

A degeneração da primeira revolução socialista da história, a Revolução Russa, resultou no surgimento de um novo setor social dominante que Leon Trotsky, um dos protagonistas da revolução, chamou de burocracia. Tragicamente, não deixa de ser irônica a observação de que Stálin, o mesmo sujeito que ocupou um papel secundário nos eventos decisivos da revolução de 1917, seja, posteriormente, a figura que cumpriu a posição de liderança máxima desse novo setor social nos caminhos da degeneração e burocratização.
Atualmente é bastante comum ver aquele militante ingênuo de esquerda que se pergunta sobre a importância de estudar o stalinismo. Pode ser uma dúvida honesta. Mas vale destacar que a desconsideração sobre a relevância do tema se dá, entre outros motivos, pela falta de compreensão de que “stalinismo” é um tema que não se restringe apenas à burocratização da revolução russa, mas, também, a uma racionalidade política que trouxe consequências concretas para a luta de classes durante o transcorrer do século XX, influenciando, ainda, a nossa luta até os dias atuais. Não se trata de uma discussão acadêmica supérflua para medir quem conhece mais esse processo histórico, por mais que para o recém militante seja precisamente isso que possa parecer.
Nossa ideia, aqui, não é focar nas causas que levaram essa casta pequeno burguesa à ascensão, degenerando os rumos revolucionários da União Soviética (URSS) num processo contrarrevolucionário mundial que exterminou os principais dirigentes do Partido Bolchevique. Contudo, uma resposta aos dilemas colocados a respeito dessa problemática se faz relevante esboçar aqui: não há sentido em afirmar que toda revolução socialista tem como fim uma ditadura sanguinária, autoritária e burocrática.
Vamos a uma breve contextualização. A partir do momento que a contrarrevolução stalinista tomou o poder na Rússia, iniciou-se também, a contrarrevolução mundial. Nas palavras de Martin Hernandez:
“[A] maior farsa da história do movimento operário mundial.
Os stalinistas apareciam como representantes da Revolução de Outubro, como os grandes lutadores contra o fascismo, como aqueles que expropriaram a burguesia, como os que enfrentavam o imperialismo e como os que defendiam incondicionalmente os estados operários (‘o socialismo real’). Na realidade, contudo, nasceram combatendo a Revolução de Outubro, capitulando ao fascismo, lutando contra a expropriação da burguesia, apoiando o imperialismo e, finalmente, restaurando o capitalismo nos ex-estados operários.”
Muitos militantes de esquerda, principalmente os mais novos, conheceram o marxismo por influencers – do YouTube ou de outras redes sociais. Muitos desses influencers como Ian Neves, Gaiofato, Jones Manoel são figuras defensoras do período stalinista da antiga URSS ou da atual China capitalista, não dos tempos de democracia operária. Por essa influência, nossos recém camaradas podem, muitas vezes, acreditar que o stalinismo se resume aos crimes de Stálin, uma vez que, dada a amplitude desses acontecimentos, essa é uma dimensão inegável até mesmo para esses influencers. No entanto, ainda que reconheçam até certo limite os crimes de Stálin, por uma consequência lógica, acabam influenciando muitos a interpretar esses crimes de forma distorcida. Por vezes, os caracterizam como uma consequência “inevitável” dos dramas da revolução; em outras, dão o tom de que esses crimes foram um “mal necessário”; ou, ainda, como eventos pontuais no contexto da guerra civil. Nada mais falso. O extermínio de toda uma geração de dirigentes operários que participaram ativamente da revolução de 1917 e tiveram papel fundamental na construção da democracia operária nos sovietes começou anos depois do término da guerra civil. Alguns historiadores que escreveram tanto sobre a guerra civil, quanto sobre a burocracia, como Jean Jaques Marie e Pierre Broué, são indispensáveis para entender melhor esse processo. Incluindo, aqui, os trabalhos de Leon Trotsky em “A revolução traída” e em “Stalin, o grande organizador de derrotas”. Além desses, há uma série de livros recém lançada pela Editora Sundermann, de Vadím Rogóvin, que também servem como uma criteriosa e extensa pesquisa sobre o tema.
O stalinismo foi o grande aliado do imperialismo no século XX – um século repleto de revoluções socialistas derrotadas por conta da política ditada pelo Kremlin e seguida pelos partidos comunistas (PCs) de todo o mundo. A burocracia teve papel fundamental no pós segunda guerra, quando a barbárie colocou em xeque o capitalismo perante os trabalhadores. Os PCs usaram todo o seu prestigio fazendo os trabalhadores baixarem a guarda, e confiarem nos governos burgueses e nos planos de reconstrução da Europa. E para justificar seus acordos com as burguesias e com o imperialismo – o que incluiu até mesmo o acordo com Hitler antes da segunda guerra –, o stalinismo criou a narrativa de que era possível construir o socialismo na URSS mesmo que as revoluções não triunfassem em outros países. Essa foi a fracassada teoria do “socialismo em um só pais”, que servia para justificar a convivência pacífica da burocracia soviética com o imperialismo. Assim justificavam todas as traições às revoluções ao redor do mundo, porque, no seu delírio idealista, no futuro a URSS seria o paraíso socialista e todos iriam querer seguir esse modelo. Enquanto isso não acontecesse, os proletários do mundo não deveriam provocar o imperialismo com novas revoluções.
No pós-guerra, a “Internacional Stalinista”1 executou equívocos políticos cujos resultados são incalculáveis para o destino dos trabalhadores na luta pela sua emancipação.
Partindo de uma incorreta e falsa análise linear dos modos de produção, a burocracia forjou as condições para as derrotas dos processos e situações revolucionárias em várias partes do mundo. Logo, para além dos crimes cometidos no interior da URSS, o stalinismo agiu concretamente, também, no sentido da ruína das agitações revolucionárias numa dimensão internacional. Essa abordagem linear e mecanicista dos modos de produção criou a teoria da revolução por etapas, que orientou os PCs mundo, sobretudo nos países dependentes, a se aliarem às burguesias nacionais.
Assim, por esse esquema explicativo sobre os modos de produção, diziam que a humanidade se iniciou pelo comunismo primitivo e seguiria, linearmente, se desenvolvendo: passando pelo escravismo, feudalismo, capitalismo para somente então ter a possibilidade de chegar ao socialismo. Essa leitura carece de respaldo histórico se considerada a produção capitalista mundializada. Inútil para finalidades revolucionárias, mas muito útil para frear ou retardar revoluções, porque se todos os países precisam passar pelo pleno desenvolvimento capitalista, isso significa que se a classe trabalhadora em um país fosse inflamada pela chama revolucionária e estivesse em rebelião, essa chama agitando os ânimos deveria – e foi – ser apagada pela frieza estrábica da sua interpretação mecanicista.
Além disso, notem, o stalinismo excluiu do seu esquematismo determinista o modo de produção asiático. Essa forma de sociedade tem o antigo Egito como exemplo, caracterizado por possuir um formato de organização e comando a partir de uma casta burocrática – caracterização essa que se ajusta perfeitamente à denúncia contra a própria burocracia soviética.
A ilusão provocada por esse modelo antidialético só possui efeito sobre aqueles que, sob o efeito da ignorância ou da ingenuidade, desconhecem a lei do desenvolvimento desigual e combinado e o funcionamento do capitalismo mundial, seu comércio global e sua divisão mundial do trabalho.
Ainda sobre as consequências do mecanicismo stalinista, sobre o Brasil se afirmava, via Partido Comunista Brasileiro (PCB), a problemática do seu “passado feudal”, que fundamentava grande parte da interpretação sobre o atraso do país. Tal abordagem era aplicada na ampla maioria dos países onde existia um PC. Então, a tarefa da classe trabalhadora não era a revolução socialista, pois, segundo o seu preceito idealista, “as condições ainda não estavam maduras”. No entanto, as condições estavam sempre maduras para apoiar um setor da burguesia que, na visão dos PCs, era “progressista”. Na pratica, a revolução socialista era sempre um projeto para um futuro distante – sabe-se lá quando!
A URSS, para o stalinismo, se tornou o exemplo do que convencionaram chamar de “socialismo real”. O irônico dessa denominação é que como se, com ela, dissessem “Olhem para nós. Sigam nossas diretrizes que vocês também chegarão ao fim das classes sociais”, sendo que a Revolução de Outubro se realizou talvez no país mais atrasado da Europa, com a grande maioria da população analfabeta, muito conservadora, praticamente semifeudal, e com uma indústria capitalista muito débil e na mão do imperialismo inglês e francês.
Retomando, ainda, sobre o Brasil, ao afirmarem que o processo de colonização com capitanias hereditárias e escravidão seriam formas de feudalismo, a orientação do PCB, alinhada com a camarilha stalinista, era de que o país necessitava passar, primeiro, por uma revolução burguesa que desenvolvesse o setor industrial e que favorecesse melhores condições de trabalho e de liberdades democráticas. Portanto, somente depois dessas condições plenamente consumadas se poderia pensar em socialismo.
Para isso, a classe trabalhadora organizada, com forte influência do PCB até 1964, deveria apoiar um setor “progressista” da burguesia brasileira, postura que corresponde à chamada teoria dos campos progressistas. Essa visão influencia até hoje grande parte da esquerda reformista e stalinista – pelo menos o setor de fora do governo, pois, no governo, seguem rigorosamente a agenda capitalista. Dessa maneira, o único campo que avança é o do imperialismo, enquanto retrocede o da classe trabalhadora, aumentando a precarização do trabalho e a sua miséria.
Tal visão fez o PCB abandonar a independência da classe operária e se alinhar a Jango. Conduziu o proletariado, que estava fervendo em uma situação revolucionária, não para tomar o poder, mas para apoiar um projeto burguês dito progressista. Jango, um grande proprietário de terras, foi sendo empurrado a levar adiante um projeto de reformas que ficou conhecido como as “reformas de base”. Essa ebulição social levou o imperialismo e a burguesia nacional a abandonarem esse governo e recorrerem ao famigerado golpe cívico-militar.
Essa visão da revolução por etapas estava tão penetrada na teoria do PCB que o partido apoiou, incondicionalmente, o presidente Juscelino Kubitschek e seu projeto desenvolvimentista, todo amarrado com o imperialismo estadunidense, mesmo quando este não dava a mínima para o “Partidão”, como era conhecido o PCB, negando a legalização do partido e prometendo ao Senado dos EUA que não o legalizaria. Outro episódio gritante foi a conhecida subida de Prestes no palanque de Getúlio Vargas, mesmo depois desse ter mandado sua esposa, Olga Benário, para ser assassinada pelos nazistas.
As consequências políticas foram a derrota do processo revolucionário e a vitória da contrarrevolução: um golpe de estado em 1964 que durou 21 anos e que massacrou a classe trabalhadora organizada, além de destruir o PCB. Pela própria formação social brasileira, não existia, nunca existiu e não existe qualquer setor burguês progressista. A burguesia, num estado de puro parasitismo, preferiu se alinhar ao imperialismo como sócia minoritária porque temia – e teme – mais a revolta social e a perda do poder do que enfrentar o imperialismo num projeto burguês nacional. A situação revolucionária anterior ao golpe de 64 poderia fazer a classe trabalhadora passar por cima tanto de Jango quanto do próprio PCB, mas a História não é um campo de análise sobre fenômenos conjecturais e especulativos, sobre o que poderia ter sido, antes, é um campo que se debruça sobre o que já foi e é.
Não nos deteremos aqui em analisar a fraqueza da burguesia brasileira e os motivos de ser uma classe social covarde e entreguista, que aceita ser uma diminuta sócia medíocre do imperialismo e que sempre se antecipou com acordos de cúpula, temendo a revolta popular em curso. Mas vale ressaltar que isso não é exclusividade brasileira. Isso se dá em todos os países explorados pelo imperialismo. Mesmo países que fizeram alguma reforma agrária ou revolução política de independência nacional dirigida pelas burguesias coloniais contra as metrópoles, estão todos, hoje, no mesmo campo dos chamados países subdesenvolvidos.
Fechamos pontuando que foi um erro afirmar que houve feudalismo no Brasil, por mais que reconheçamos que alguns intelectuais tenham trazido contribuições significativas nos estudos sobre o período escravocrata, como Jacob Gorender, Ciro Flamarion Cardoso, entre outros.
“[…] a instauração do capitalismo não foi, nem poderia ser, linear. Em seu avanço para conformar o mercado mundial, o capital mercantil deparou-se com todo tipo de modos de produção e relações sociais pré-capitalistas, nas quais penetrou. Apesar de ser correto que seu objetivo último fosse dissolvê-las, não significa que não tenha utilizado – e até estimulado – instituições e relações de produção pré-capitalistas enquanto isso lhe foi proveitoso.” – Ronald León em Apontamentos para uma visão marxista da colonização hispano-lusitana.
Tal citação está de acordo não com a antimarxista teoria stalinista da revolução por etapas, mas coerente com os estudos de Marx e Engels sobre acumulação primitiva de capital; circulação de mercadorias; criação do mercado mundial; e sobre o capital comercial. O papel das grandes navegações do século XVI; a exploração de ouro e prata nas américas; o desumano trabalho escravo; proporcionado por uma empresa que organizava e geria esse tipo nefasto de comércio são algumas dinâmicas que, para além de O Capital, já eram apontadas por ambos no Manifesto do Partido Comunista.
O central ao analisar o caráter da colonização é determinar o objetivo da produção e não o modo ou como é produzido. O processo que culmina no capitalismo na Europa é uma longa transição entre o feudalismo decadente e o capitalismo ascendente. Esse processo se iniciou no século XVI e foi até o século XIX. A colonização não teve como objetivo desenvolver o feudalismo, mas, sim, ser base para o desenvolvimento do capitalismo. Logo, isso faz dela um processo necessariamente antecedente.
Observando, por fim, as consequências históricas e os desdobramentos das postulações equivocadas dos stalinistas, voltemos a pensar naquele desavisado militante de esquerda que julga incômodo e chato compreender o papel do stalinismo na história. Considerando a possibilidade dessa postura não se tratar, apenas, de simpatia por Stálin, é importante frisar que tais “[…] conclusões determinam o curso histórico de nossas formações econômico-sociais, além de definir o caráter da atual revolução latino-americana, isto é, suas tarefas e o papel das classes nesse processo”. Em política, o que compreendemos do passado fundamenta, empiricamente, nossa consciência para a ação futura e a avaliação de nossos vacilos presentes. Ainda hoje, grande parte da esquerda apoia a ideia do neodesenvolvimentismo, enquanto avançamos, a cada dia, ao neocolonialismo. Essas são, talvez, variantes de um velho problema com roupagem reciclada, mas que, no fim das contas, servem apenas para frear e iludir as massas. O stalinismo, nas consequências finais, não desenvolve resultados revolucionários, além de acabar entregando tudo ao imperialismo. Em especial no Brasil, nos tornamos cada vez mais um fazendão de commodities que não fabrica nem rolos de aço. Isso aprofunda as nossas desigualdades sociais e a localização dependente do país na divisão internacional do trabalho. Para o militante honesto que verdadeiramente vê no capitalismo o maior inimigo da emancipação humana em direção a um mundo mais justo e legitimamente humano, a problemática sobre o stalinismo pode ser relegada a uma questão meramente acadêmica e irrelevante?