Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro. Ou não
Tem Inteligência Artificial para tudo, só não tem para aquilo que não queremos fazer

Se você vive nesse mundo e tem acesso à internet, provavelmente viu algo nas últimas semanas sobre transformar sua foto em uma ilustração no estilo dos estúdios Ghibli, de Hayao Miyazaki. Até a ROTA e as Forças Armadas de Israel entraram na onda.
A moda, por mais passageira que fosse, foi suficiente para levantar um debate nas redes sobre o quão ético isso era. Quer dizer, Miyazaki sequer foi consultado sobre isso, e não demorou para que pipocassem memes com sua famosa declaração sobre o uso de IA: “Sinto que isso é um insulto à própria vida.”
Discutiu-se bastante sobre os direitos autorais do autor nesse caso. Mas o problema jurídico (ainda não resolvido) é que os direitos se aplicam a criações realizadas, e não a um estilo em abstrato. Tampouco alguém que aplica o filtro em uma foto pessoal poderia ser acusado de plágio. A culpa seria então da empresa detentora da IA? Mas ela não pode ser responsabilizada pelo uso que seus clientes fazem — tal como uma montadora não pode ser culpada por acidentes de trânsito…
O imbrólio é tanto que não dá para reduzir a discussão a uma postura moralista do tipo “essa é a arte de Miyazaki e precisa ser respeitada.”
Alto lá.
Primeiro, a declaração de Miyazaki é frequentemente descontextualizada. Ela foi dita em 2016, quando, convenhamos, as IAs ainda estavam engatinhando. Até duas semanas atrás, elas mal conseguiam desenhar uma mão com cinco dedos.
Segundo — e talvez esse seja o ponto mais importante —, a Arte não pode ser reduzida ao objeto artístico em si. Essa concepção ficou para trás no século passado com as vanguardas modernistas. Desde então, a arte está muito mais no gesto do que no objeto.
Desde que Duchamp assinou um mictório e o expôs numa galeria, essa questão está posta: a Arte é maior que o objeto. Implicam-se aí a subjetividade, a intencionalidade e o gesto — tanto de quem faz quanto de quem consome. Não à toa, a segunda metade do século XX viu nascer as performances, uma forma de arte sem objeto.
Mas voltemos a Miyazaki. Sua arte não são apenas suas ilustrações. O que torna obras como Meu Amigo Totoro (1988) e Túmulo dos Vagalumes (1988) tão potentes não é, nem de perto, o estilo característico do Estúdio Ghibli. Mas sim a sensibilidade profunda e a potência narrativa com que captam aspectos subjetivos e emocionais da experiência humana: o medo, o trauma e a busca por significado e felicidade.
Isso — até agora — IA nenhuma consegue fazer.
Acho que o debate deveria seguir por aí. Porque entre a nossa existência singular enquanto indivíduos e a universalidade humana — o ser genérico, como diria Marx — existe um particular que nos conecta.
Esse particular é justamente a experiência estética, e é por isso que a Arte importa, para além da técnica. Quando lemos Graciliano Ramos, não queremos ser Fabiano, nem a cachorra Baleia, mas sabemos exatamente o que é sonhar com um mundo cheio de preás.
É essa experiência de conectar o nosso singular ao universal que faz da Arte, Arte. Grandes obras sobrevivem ao tempo porque nunca perdem a capacidade de nos conectar com o que há de mais humano em nós. Através da Arte, nos humanizamos — e nos reencontramos.
Miyazaki, portanto, não é diminuído pela IA. Contraditoriamente o contrário: para mim, frente aos rumos que o mundo toma, suas obras se tornam mais necessárias. Afinal, desenhar qualquer IA desenha. Mas entender as angústias que fazer de mim ao mesmo tempo um humano universal e singular, é outra história. Aqui eu fico com Miyazaki.
Isso significa que a Arte é a solução para os males do Capitalismo? Seria a arte a panaceia para os males da alienação? Não exatamente… Afinal, o próprio capitalismo ameaça o desenvolvimento artístico.
Mas isso fica para um próximo texto.