Nacional

Crise no Ministério da Saúde não é só da saúde

Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

3 de maio de 2024
star5 (2 avaliações)
A ministra da Saúde Nísia Trindade e Lula | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

As pautas de Saúde têm sido um tema frequente. Problemas no funcionamento dos sistemas de Saúde surgem a todo momento nos noticiários e nas conversas com amigos, colegas de trabalho e familiares.

Os gastos estatais e privados com Saúde não dão conta de garantir um bom funcionamento de hospitais, clínicas, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e postos de Assistência Médica Ambulatorial (AMA).

A medicina liberal (consultórios e hospitais privados) nem de longe resolve os problemas da população, por conta de seus custos proibitivos para as famílias da classe trabalhadora e, inclusive, para a “classe média”. Os planos privados vivem uma crise crônica, com aumentos muito acima da inflação.

Os motivos aparentes da crise no Ministério da Saúde

Em março, veio a público uma séria crise no Ministério da Saúde, que levou à demissão de diversos funcionários de seu alto escalão. Entre eles, responsáveis pela gestão dos hospitais federais do Rio de Janeiro, da Saúde Indígena, da vigilância e da atenção primária.

A crise tem diversos componentes. Além da epidemia de dengue, têm destaque os problemas dos hospitais federais no Rio de Janeiro, o enfrentamento da crise de atendimento da população indígena (por exemplo, a alta mortalidade do povo Yanomami), críticas sobre erros da Vigilância Epidemiológica no tocante à dengue e a voracidade do Centrão em relação às verbas do ministério.

Os parlamentares, inclusive alguns de um espectro mais “de esquerda”, ainda se aborreceram com a postura do ministério de usar critérios técnicos para as famosas emendas parlamentares.

Profissionais da saúde federal e, protesto no Rio de Janeiro, março deste ano | Foto: Sindsprev/RJ

QUEM CALA CONSENTE

Crise nos hospitais federais no Rio de Janeiro

Quando o Sistema Único de Saúde (SUS) foi implantado, um dos critérios usados foi o de deixar a gestão dos equipamentos de Saúde mais próxima do controle da população usuária (o que se chamou de “descentralização”). É por isso que as Unidades Básicas de Saúde ficaram sob gestão municipal e os hospitais, em geral, ficaram sob gestão estadual ou municipal. A principal exceção se deu nos hospitais federais do Rio de Janeiro (houve exceção também em Porto Alegre).

A crise dos hospitais do Rio  não é de agora, vem pelo menos dos anos 1990. O que desencadeou a crise atual foram denúncias de corrupção com os gastos hospitalares. O ministério tentou fazer uma intervenção, para centralizar as compras e reduzir os gastos desnecessários, mas isso foi abortado por pressão de setores interessados em “manter as coisas como estão”, inclusive com ação de políticos da base do governo.

Esta guerra trouxe o conflito para a mídia, que a tornou pública. Chegou ao ponto do próprio presidente Lula dar um “puxão de orelhas” na ministra, Nísia Trindade, em uma reunião ministerial. Lula, ao mesmo tempo, disse que a ministra não é substituível e faz parte da sua cota pessoal de ministros. Mas, ao dar o tal “puxão de orelhas”, forneceu combustível para o Centrão fazer todo tipo de crítica e exigência ao ministério.

As raízes do problema: sucateamento e falta de recursos humanos

Um dos maiores problemas dos hospitais federais no Rio é o sucateamento dos equipamentos de Saúde Pública. Por exemplo, avalia-se que haja a carência de contratação de mais de 10 mil funcionários. O problema foi supostamente resolvido com contratações temporárias, um mecanismo muito ruim, pois necessita de recontratação de tempos em tempos, e, quando o trabalhador é treinado para uma função, logo tem de ser substituído.

A falta de recursos humanos tem como explicação a política de austeridade fiscal, que inviabiliza ou debilita os concursos públicos para servidores que querem ter uma carreira no SUS.

Os apoiadores da ministra argumentam que este problema não é de responsabilidade dela. O problema é que, neste caso, o Ministério da Saúde deveria trazer a público a questão e apresentar a solução, que seria realizar concursos; mas não o faz em nome da sustentação política a Lula e Haddad. Quem cala, consente.

Epidemia de dengue provoca lotação em unidades de saúde por todo o país | Foto: Reprodução/TV Tem

DENGUE

A epidemia  tomou o país

Outro foco da crise foi a lentidão nos procedimentos diante da epidemia de dengue. Desde o segundo semestre do ano passado, já havia uma percepção, nacional e internacional, de um agravamento dos casos de dengue.

O agravamento da dengue tem muitas causas, sendo a mais importante o aquecimento global, agravado pelo El Niño, que aumentou os casos em vários países. Mas, é importante enfatizar que o Brasil é o campeão mundial de casos.

Uma das críticas ao Ministério da Saúde foi a demora em trazer a vacina, que chegou em uma quantidade pequena. O ministério se defende, argumentando que a produção mundial de vacinas da dengue ainda é muito reduzida.

Isso é fato, mas também é fato que a chegada e distribuição nacional da vacina foi desordenada, com demora para a definição do público-alvo. Por fim, o público-alvo foi definido como a população de 10 a 14 anos, o que deixa a maior parte da população descoberta.

Recusa impediu maior prevenção

A principal crítica ao ministério foi a falta de nitidez e agilidade em definir a epidemia como uma epidemia, o que facilitaria uma série de medidas, como maior ênfase nas medidas preventivas contra a expansão do mosquito, a possibilidade de usar a mídia para campanhas para combater a proliferação do “Aedes aegypti”. A decretação oficial de epidemia ainda poderia ajudar no apoio aos municípios menores e na disseminação de novas formas de combater o mosquito, como foi o caso do uso de drones.

A distribuição de repelentes e a contratação emergencial de agentes comunitários também teriam sido aceleradas. O fato é que estamos com 4,1 milhões de casos e 1.937 óbitos pela dengue. Há, também, 2.435 óbitos em investigação, segundo dados do próprio Ministério da Saúde divulgados em 29 de abril.

A dengue é uma doença sazonal ligada ao Verão, quando as altas temperaturas e as chuvas propiciam uma disseminação maior do mosquito. A expectativa, agora, é de início de redução de casos no Brasil.

No entanto, ainda estamos tendo situações como a da cidade de São Paulo, onde todos os distritos estão em situação epidêmica, conforme a Secretaria Municipal de Saúde. O distrito com maior índice de casos é a Vila Jaguara, com 10.598 casos para 100 mil habitantes; 35 vezes mais do que os 300 casos por 100 mil habitantes, o patamar para ser declarada a epidemia de dengue.

Covid-19 continua matando

Ainda sobre o tema da vacinação, tem havido queixas sobre a falta de vacina da Covid. O Ministério da Saúde não pode errar aí, pois a Covid segue existindo e matando ou deixando sequelas. Em 2024, tivemos 573.143 casos de Covid e 3.154 óbitos no país, conforme dados, de 20 de abril, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

A Covid segue matando bastante no Brasil e não é admissível não se encontrar a vacina nos postos de vacinação, já que, neste caso, o produto existe e está disponível, inclusive a partir da produção nacional da vacina.

Sem atacar o garimpo não tem Saúde Indígena | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

SAÚDE INDÍGENA

Garimpo e a calamidade Yanomami

A Saúde Indígena é uma competência legal do governo federal. No início do seu mandato, Lula, corretamente, declarou uma “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na Terra Indígena Yanomami”. As principais causas desta situação de calamidade são o garimpo ilegal e o desmatamento. O último ano do governo Bolsonaro registrou o pico deste processo de degradação humana e ambiental.

Nos primeiros seis meses do governo Lula, houve uma queda de 80% no número de garimpeiros no território Yanomami. Porém, no segundo semestre de 2023, houve um importante crescimento de garimpeiros na região, levando a uma expansão do garimpo ilegal em 7%.

Além de promoverem o desmatamento, as atividades do garimpo trazem doenças para as quais os povos da floresta não têm imunidade, detonam a violência física contra os indígenas, dificultam ou impedem que possam seguir usando a floresta para sua alimentação e impedem o acesso das equipes de Saúde que, assim, não tem como atender a população.

Mortes que poderiam ser evitadas

Os militares da região fazem corpo mole no combate a esses invasores. Só se preocupam em vigiar seus quartéis, conforme denunciam os indígenas. O resultado é a grande carência em relação à saúde dos povos originários.

Em 2023 ocorreram 308 óbitos em território Yanomami, dos quais 129 foram por doenças infecciosas e parasitárias (21%) e doenças respiratórias (21%). Casos destes tipos seriam facilmente tratáveis se o modelo de atenção à saúde Yanomami funcionasse de forma plena.

A baixa mobilidade das equipes de Saúde no território, ligada à permanência do garimpo, impacta também na cobertura vacinal de crianças. A malária é um dos problemas ainda não solucionados. Mesmo sem os dados de novembro e dezembro de 2023, o ano acumulou mais de 25 mil casos.

Sem atacar o garimpo não tem Saúde Indígena

A crise da Saúde Indígena não é de responsabilidade exclusiva do Ministério da Saúde. Para, de fato, melhorar este quadro seriam, sim, necessárias melhorias em temas que são de responsabilidade do ministério, como a fixação de profissionais de Saúde na área, acabar com o desabastecimento das farmácias, combater a desnutrição infantil, otimizar a cobertura vacinal das crianças, acompanhar de perto os pacientes graves como os de malária.

Todas estas medidas, contudo, só teriam eficácia se houvesse uma mudança radical na postura do governo federal, tanto no enfrentamento do garimpo quanto na exigência por segurança nos territórios indígenas.

Para isso, o governo teria que se enfrentar com os militares e com os interesses empresariais por trás do garimpo ilegal e do desmatamento. A questão é que parte deste setor é base de apoio deste mesmo governo, que não tem demonstrado nenhum apetite em se enfrentar com o garimpo.

É preciso ir à luta para garantir melhorias na saúde  pública | Foto: Reprodução

OLHO GORDO

A voracidade do Centrão e de outros parlamentares

O orçamento da Saúde, embora muito insuficiente para resolver os graves problemas existentes no setor, é disputado de forma brutal pelos parlamentares e prefeitos. É moeda de troca entre o governo federal e os parlamentares para a aprovação de projetos.  No governo Bolsonaro, o Centrão se especializou ainda mais nisso, com a ampliação das emendas parlamentares secretas.

A Ministra da Saúde Nísia Trindade tentou usar critérios mais técnicos na viabilização destas emendas, gerando atrito e tensão nas relações entre o governo Lula e o Centrão. Este foi o motivo da “bronca” dada por Lula à ministra. Após esta reunião, o ministério “destravou” milhões de reais em emendas, na expectativa de melhorar a relação com o Congresso.

Ultradireita continua interferindo na Saúde Pública

Além dessa disputa entre os políticos e o ministério, existe outra, relacionada à “guerra cultural” que a extrema direita vem usando para aglutinar o apoio de setores religiosos, principalmente evangélicos.

Em março, uma resolução sobre a questão do aborto, emitida pelo ministério, irritou os parlamentares conservadores e o ministério teve que recuar. Existe, também, o tema das comunidades terapêuticas que estavam recebendo financiamento estatal, através do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).

Fruto da mobilização popular, na última semana, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) um parecer vetando a classificação destas comunidades como parte do sistema de Assistência Social, portanto dificultando ou impedindo a liberação de verbas do Ministério da Saúde para tais comunidades. O financiamento das Comunidades Terapêuticas pode voltar para a Saúde, criando mais atrito entre o ministério e o Centrão.

Privatização e crime organizado

Por fim, a privatização da Saúde Pública vem avançando. O processo já vem de muitos anos, através de vários mecanismos, como a terceirização e Parcerias Público-Privadas (PPPs).

Os apoiadores de Lula carregam consigo esta contradição, pois boa parte é contrária à privatização da Saúde, enquanto seu governo acaba por incentivá-la. O caso da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSHER) é um exemplo disso.

Ganhou destaque nos últimos dias a notícia de que algumas Organizações Sociais da Saúde (OSSs) têm, por baixo do pano, o crime organizado, que as usam não só para ganhar dinheiro, mas principalmente para lavar dinheiro do tráfico de drogas. Este tema apareceu em São Paulo, mas certamente não ocorre só na metrópole.

Lutar é o caminho

Os apoiadores do governo federal argumentam que a crise no Ministério da Saúde é uma fabricação da oposição, que a ministra Nísia da Trindade é altamente técnica e que os problemas são herança de Bolsonaro. Ninguém questiona que Bolsonaro desmontou a Saúde e nem a capacidade técnica da ministra, que antes havia sido presidente da Fiocruz.

Mas não se trata de uma crise fabricada pela oposição. Houve, sim, a degola de vários cargos importantes no ministério, a crise da Saúde Indígena persiste, a pressão dos parlamentares continua muito intensa e o governo capitula e segue defendendo a privatização da Saúde na prática.

A política do “tudo em nome da governabilidade e do ajuste fiscal” é a responsável pela crise no Ministério da Saúde. E nada indica que Lula pretenda modificá-la. Para lutar contra isso, e garantir melhorias na Saúde, só resta ao povo trabalhador lutar por suas reivindicações, contra o ajuste fiscal e as privatizações, por mais verbas e contra a corrupção e as emendas secretas do Congresso. Isso significa lutar contra o governo federal e também contra a direita.