Dia 12 de Outubro: A violência no Rio ataca o direito à infância
As Origens do Dia das Crianças
Começa Outubro e somos atropelados por anúncios e propagandas de brinquedos, passeios e atividades infantis, que remetem ao dia das crianças ou semana das crianças. Não é por acaso, a tradição de se comemorar a semana das crianças no Brasil surgiu na década de 60 como parte de uma campanha de marketing de uma fábrica de brinquedos juntamente com a Johnson & Johnson para lançar a “Semana do Bebê Robusto”.
Não vamos nos aprofundar sobre as origens dos conceitos de infância e do surgimento das concepções da proteção das crianças e respectivas datas comemorativas. Deixaremos aqui apenas um breve resumo contextualizador.
A escolha de 12 de Outubro por essas empresas não é um total acaso, em 1924 esta data foi instituída pelo Congresso Nacional como “o dia de festa da criança”. A aprovação deste decreto em 1924 foi influenciada pela realização no Rio de Janeiro, em 1923, do Terceiro Congresso Americano da Criança, em concomitância com o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. Estes congressos são parte de um movimento mais global em defesa da infância e dos direitos das crianças que se expressou também na Liga das Nações que no ano seguinte aprovou em Genebra o Dia Internacional da Criança durante a Conferência Mundial para o Bem-estar da Criança.
O conceito de infância e de direitos das crianças se dissemina a partir da revolução francesa, muito influenciado por filósofos iluministas. Com o avanço e consolidação do capitalismo como modo de produção, par-a-par com a revolução industrial, as crianças da classe trabalhadora se vêem submetidas às mais perversas condições de vida, tendo que trabalhar em fábricas 12-14h por dia, para viver na fome e na miséria junto com suas famílias. Não é por acaso que os maiores avanços na concepção e estabelecimento dos direitos infantis vêm do movimento dos trabalhadores, da Comuna de Paris e dos primeiros anos da Revolução Russa.
O capitalismo estabelece uma contradição permanente e que se aprofunda continuamente, entre uma compreensão crescente da infância e juventude e sobre as necessidades particulares deste grupo etário, e uma quantidade de crianças e jovens cada vez maior que é jogada em condições de vida cada vez mais bárbaras.
O conceito de violência é muito amplo e compreende várias dimensões e fenômenos. Neste texto iremos nos debruçar sobre a violência decorrente dos conflitos urbanos, a violência doméstica e maus-tratos e por fim a violência sexual.
A violência decorrente dos conflitos urbanos no Rio de Janeiro
Trabalho numa upa da Zona Oeste, num dia, num plantão como tantos outros, estou atendendo uma criança de 4 anos e no meio da consulta escutam-se tiros, a pouca distância da unidade de saúde. A criança olha para a mãe e fala: ¨são tiros mamãe¨, a mãe olhou para mim e entendeu o que pensei ¨é… ela já sabe distinguir o barulho de tiros¨. A criança tinha 4 anos… e já sabia identificar o som de tiros. A violência armada do Estado e das facções criminosas assola a infância da grande maioria dos que vivem na periferia e em favelas. Para estas crianças é fundamental reconhecer o som do tiro, é uma necessidade de sobrevivência esconder-se rapidamente debaixo da cama, num corredor da escola, sair da rua…
E para muitas esse reflexo não é suficiente. Em 2023 o número de crianças mortas por bala no grande Rio aumentou dramaticamente, 19 até ao momento em que terminávamos este artigo, durante todo o ano passado foram 2 crianças. Em 7 anos 616 crianças foram vítimas de bala perdida na região metropolitana do Rio de Janeiro, em média uma a cada 4 dias, destas 278 faleceram. 47,6% do total de vítimas foram atingidas durante operações policiais. Em 2020, ano em que vigorou a liminar que proibia operações policiais em favelas, segundo levantamento do ISP, 56 crianças ou adolescentes morreram por intervenção de agente do Estado. O Estado que em teoria deveria ser o provedor dos direitos dessas crianças é diretamente o seu carrasco.
E como se não bastasse sofrer a pior perda que um pai e mãe podem ter na vida, muitos ainda têm que se defender ou defender as vítimas da acusação de serem criminosos. A página oficial da PMERJ no Twitter publicou no dia 07 de Agosto deste ano “um criminoso ficou ferido ao entrar em confronto” com os policiais militares durante um patrulhamento na Cidade de Deus. A PMERJ referia-se a Thiago Flausino, um menino de 13 anos, que segundo testemunhos foi primeiro atingido na perna e depois executado com vários tiros quando já se encontrava no chão. O pai de Heloísa Silva, menina de 13 anos baleada na cabeça pela PRF teve que depor na delegacia enquanto sua filha era levada para o hospital.
Mas esta violência bárbara não atinge a todos por igual. A grande maioria das vítimas é negra e vive na periferia da cidade. São estas as grandes vítimas da “guerra às drogas”, dos conflitos entre facções criminosas, e da ação das forças do estado que nas últimas décadas consolidaram a ideologia de que é legítimo matar na favela e de que qualquer pessoa negra é um potencial bandido.
“Você está me dizendo que eu não posso bater no meu filho???”
Essa foi a pergunta que uma mãe me fez quando durante uma consulta eu disse que bater em crianças é crime, logo após ela ter dito ao filho que se ele não ficasse quieto ela iria lhe bater. A mãe estava genuinamente admirada com a minha afirmação, olhou-me como se eu fosse de outro planeta. E essa não foi a primeira nem a última mãe ou pai e mesmo irmãos que tiveram essa reação perante a afirmação de que não se pode bater em crianças, nem mesmo quando o intuito genuíno é a sua educação.
As raízes desta compreensão são profundas mas há algo na frase desta mãe que é reveladora, é o sentimento de ser proprietário de algo, no caso o filho, a criança, e essa propriedade dá o direito de se exercer violência. No capitalismo as pessoas são coisificadas, desumanizadas, e esse processo é mais intenso nos setores oprimidos, como as mulheres, os negros e negras e as LGBTIs mas também nos grupos vulneráveis como crianças ou idosos.
E em um cotidiano violento a violência se reproduz em todos os âmbitos da vida, as relações individuais são ainda mais marcadas pela violência. Em um estado em que é normal a polícia tratar violentamente e mesmo matar pessoas de um grupo social, os negros e pobres das favelas e periferias, não nos espanta que haja também altos indices de violência contra mulheres, lgbtis e crianças.
O último estudo publicado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP), o Dossiê da Criança e Adolescente, baseado nos registros de ocorrência nas delegacias da polícia civil em 2020. Lembrando que 2020 foi o ano da pandemia, as crianças ficaram em casa, mais expostas a agressores domésticos e mais distantes de suas redes de apoio, havendo por isso um consenso de que os números apresentados sub-representam a realidade. Os delitos com o maior número de vítimas em 2020 foram lesão corporal (3.554), estupro (3.454), ameaça (1.293), injúria (659) e maus-tratos (611). Para além disso foram registrados 190 casos de homicídio doloso de crianças e 40 casos de tortura.
A maioria das vítimas de violência são as meninas negras
Segundo os dados do ISP de 2020 63% das vítimas de violência física e 60,7% de violência sexual eram negras. As meninas e adolescentes do sexo feminino foram a maioria das vítimas de quase todo o tipo de violência registrado: 84,7% de violência sexual, 76,8% de violência moral, 66,3% de violência psicológica e 55% das vítimas de violência física.
O Rio de Janeiro é um dos estados em que mais crianças sofrem violência no Brasil
Em 2020 foi noticiado que o RJ foi o estado do Brasil que mais registrou denúncias de violência contra crianças e adolescentes para cada 100 mil habitantes, através do Disque 100, plataforma do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. No total foram registradas mais de 11 mil denúncias no estado.
Segundo um levantamento pela GNews, publicado em 2022, uma criança/adolescente é estuprada a cada 45 minutos no estado do Rio. O mesmo levantamento concluiu que houve um aumento de cerca de 88% da denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes de 11-14 anos, entre 2017 e 2022.
A maioria dos agressores é familiar das vítimas
Em 59% das denúncias, do Disque-100 em 2020, as crianças foram agredidas pela mãe ou pai, seguido por padrasto ou madrasta (6%), avô ou avó (3%), e tio (3%).
Segundo o levantamento feito pela Fundação para a Infância e Adolescência do estado do Rio, referente ao mesmo ano, 94% das agressões a crianças / adolescentes foram perpetradas por um homem do círculo familiar mais próximo (pai, padrasto, tio, avô)
A vida é bela, que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente. (Leon Trotsky)
Se bem não é possível proteger de conjunto a infância enquanto houver capitalismo, a luta pela defesa dos direitos das crianças, pelas suas condições de vida e bem-estar não pode, obviamente, ser relegado para depois do fim do capitalismo. É necessário desde já exigir dos governos condições dignas de acesso à educação, saúde, habitação, lutar contra a violência estatal contra os mais pobres, em especial contra a juventude negra e pobre.
No entanto, enquanto persistir o capitalismo e a degradação das condições de vida, em especial da classe trabalhadora, a infância e adolescência estarão permanentemente sob ataque. Por isso, par-a-par com medidas urgentes de proteção à infância, devemos lutar por uma sociedade onde as crianças sejam livres e criadoras. Uma sociedade em que não haja mais submissão das crianças e que também seja livre de toda opressão e exploração, uma sociedade socialista.