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Diário da tristeza comum

Primeiro livro em prosa do poeta palestino Mahmud Darwish (1941-2008) chega ao Brasil

Lena Leal

4 de dezembro de 2024
star5 (20 avaliações)

O inimigo pode derrotar Gaza. Pode cortar todas as suas árvores. Pode quebrar seus ossos. Pode plantar seus tanques na barriga de suas mulheres e de seus filhos (…) Gaza não dirá sim aos conquistadores.
(Editora Tabla)

Lançado em Beirute em 1973 e absurdamente atual, cada um dos nove textos que acompanham a vida do poeta – desde a infância roubada na diáspora de 1948 (Nakba), o retorno e a condição de exilado em seu próprio país – saem das páginas como estilhaços da tristeza comum ao povo palestino.

Nascido em 1941 no vilarejo de Al-Birweh, próximo à Akka, foi o segundo de oito filhos de uma família de proprietários de terra, arrasada pela violenta invasão sionista. Lançou seu primeiro livro de poesia aos 19 anos – Pássaros sem asas – e, entre prisões e exilio, ingressa na OLP (Organização pela Libertação da Palestina) em 1970, sendo de sua autoria a Declaração da Independência da Palestina, de 1988. Em 93, rompe com a organização por discordar do teor entreguista dos Acordos de Oslo, e em 95 retorna do exílio e se instala na região da Cisjordânia. Considerado um dos grandes poetas da língua árabe, escreveu dezenas de livros e recebeu premiações em vida, por sua obra.

Olhei a capa. Senti aquele cheiro típico de livro novo e, após dias, dei-me conta que o abria e fechava. Estava a fugir dele, de sua lucidez desconcertante. Sabia que estava por embarcar numa viagem sem volta. Sem desvios melodramáticos ou autopiedosos, página a página, a vida do poeta se entrelaça com o tipo particular de violências múltiplas, hipocrisia e genocídio a que é submetido o povo palestino.

Para além de toda a percepção que possamos ter da longa história de usurpação, massacre e heróica resistência, a leitura do Diário nos faz penetrar em camadas profundas do que significa ser palestino a partir de crônicas mergulhadas numa poesia, ora melancólica, ora irônica ou raivosa. Darwish nos leva para as tristezas e absurdos kafkanianos, mas também para a alegria persistentemente guerreira em defesa da vida palestina, alimentada pela justa indignação diante do saque e genocídio. Ler o Diário nos sacode para que não percamos o sentido da solidariedade internacional a todos os povos oprimidos.

Ghurba como condição de vida: fragmentos biográficos

O mero ato de procurar é a prova de que me recuso a me perder na minha perda.

Ghurba, em árabe, significa o sentimento de quem está fora de sua terra, mesmo que nela esteja. Essa saudade particular, um estado de deslocamento e estranhamento quase indizível se traduz nas palavras do poeta ao longo do livro.

Em “A lua não caiu no poço” acompanhamos a procura de Darwish por sua infância nas colinas do vilarejo, a ida confusa e iludida da família para o Líbano, em 1948, e o choque do retorno. “O que era mais doloroso, ser refugiado no país dos outros ou no seu próprio país?” o poeta se pergunta ao ver as aldeias devastadas para serem ocupadas pelos conquistadores. Para ele, o retorno da família foi uma forma de torná-los “intensamente conscientes” de estarem ali, transformando o tormento em potência de rejeição.

Em “A pátria: entre a memória e a história”, a pergunta sobre o que é, afinal, uma pátria, serve de pano de fundo para andarmos em sua estrada do exílio. As respostas são muitas, atravessando sua história e a da Palestina que, em 1973, completava um quarto de século da usurpação e ocupação pelo Estado de Israel.

E foi no sul do Líbano quando criança que Darwish entendeu, pela primeira vez, o que era a pátria: “era aquela coisa que se perdeu”.

Fecho o livro. Preciso me afastar um pouco. Quando o reabro, está ali, escrito há mais de 50 anos o que define o que vemos acontecer em proporções gigantescas, em Gaza – “Não se trata de guerra nem de luta, mas de genocídio”.

A luta entre memórias

Viemos, atiramos, queimamos, explodimos, expulsamos e mandamos para o exílio” – Yizhar Smilansky,escritor israelense, no romance Khirbet Khizah, 1949

Tal frase, vinda de um escritor israelense, serve para corroborar o que Darwish chama de disputa de memórias em relação ao sentido de pátria. Desde argumentos bíblicos até o uso do Holocausto como chantagem, ele afirma que a invisibilização absoluta do povo palestino e os usos de violência cotidiana permitem visualizar terríveis semelhanças com as práticas nazistas. “Eles ocupam não somente a terra e o trabalho, mas também sua psique”.

Por outro lado, na longa caminhada pelo direito de existir, o poeta descobre que a pátria é agarrar-se à memória e que junto à ela lutar é a única pátria possivel.

Em “Quem mata 50 árabes perde 01 centavo” Darwish se dedica a denunciar o Massacre de Kafar-Qassim, ocorrido em 1956, dias antes do ataque israelense ao Egito. De uma crueldade psicótica, foi decidido toque de recolher no pequeno povoado com a justificativa de que ficava a meio caminho para passagem de tropas. O detalhe é que foi anunciado meia hora antes de iniciar e a ordem (constante nos laudos de um posterior tribunal pantomímico) foi expressa: matar quem estivesse na rua, mesmo com praticamente toda a população não sabendo da ordem, além dos que estavam em deslocamento para casa. Adivinhem o que aconteceu com os assassinos?! O general responsável pela ordem pagou, literalmente, a multa de 01 centavo israelense.

O absurdo como cotidiano

“Acha que vão nos acusar de sermos sírios?
Mas vcs não são?
Sim.
E isso é uma acusação?
Não sabemos.”

Pense em qualquer rotina básica, como atravessar uma rua e ir à padaria. Precisa dormir? Quer festejar aniversário com amigos? Trabalhar? Visitar a mãe? Provar que você existe?Tentar se divertir na rua? Tudo, absolutamente tudo é minuciosamente organizado há décadas pelo Estado sionista para transformar a vida de palestin@s e de vizinhos árabes num inferno cotidiano. No texto que dá nome ao livro, Darwish aciona o modo irônico para revelar algumas situações beirando o patético. Já em “A alegria quando trai” ele narra a profusão de sentimentos envolvendo a expectativa e tristeza na Guerra dos Seis Dias (1967).

Você vê a guerra. De repente se lembra de que a Palestina é o seu país. Negaram-lhe suas canções antigas da escola e as histórias dos revolucionários e poetas que cantavam louvores a ela. Volta enfim de sua viagem ao absurdo.Você sente uma amizade profunda pelos dias

Por fim, o “Silêncio por Gaza” parece saído desses dias tristes de 2024 como um grito profundo que procura nos despertar para que não a deixemos morrer.

Seus poros falam suor, sangue e fogo. Por isso o inimigo odeia o suficiente para matar, tem medo dela o suficiente para cometer crimes e tentar afundá-la no mar, no deserto ou no sangue.

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