Dois senhores da morte: o tráfico e o governo Cláudio Castro
O Rio de Janeiro viveu uma das páginas mais sombrias de sua história recente com a Operação Contenção, realizada nos complexos da Penha e do Alemão. A operação deixou mais de 100 mortos, tornando-se uma das ações policiais mais letais do país. Uma chacina! Participaram mais de 2,5 mil agentes da Polícia Militar, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Choque, em uma megaoperação apresentada pelo governo Cláudio Castro como “necessária para combater o crime organizado”. Mas o resultado concreto foi outro: escolas fechadas, transporte paralisado e moradores aterrorizados por tiros e helicópteros. A cada nova operação, o Estado volta a tratar as favelas como territórios inimigos e os corpos de seus moradores como alvos descartáveis.
O governo Cláudio Castro consolidou uma política de segurança pública baseada na morte, que transforma o Rio em um campo de guerra permanente. Sob o discurso da “contenção” e do “combate ao tráfico”, o que se vê é o uso da força bruta como instrumento de governo. O delegado aposentado Orlando Zaccone, conhecido pelo caso Amarildo, afirmou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo que a polícia utilizou uma “tática troia”, uma espécie de emboscada militar em que os agentes empurram suspeitos para áreas isoladas, cercando-os para executá-los em fuga. Essa prática, denunciada por Zaccone como execução sumária disfarçada de operação policial, mostra o caráter sistemático e planejado da violência: um método de extermínio com aval institucional. O símbolo dessa política foi o chamado “muro do Bope”, utilizado na Operação Contenção.
Extermínio disfarçado de operação
É importante observamos as contradições. Na tarde do dia 28, o governador Cláudio Castro anunciou com entusiasmo o “sucesso” da operação, classificando-a como uma ação necessária e eficaz no combate ao crime organizado. Porém a realidade que emergiu nas horas seguintes desmentiu o discurso oficial. Na manhã do dia 29, moradores dos complexos da Penha e do Alemão encontraram dezenas de corpos abandonados em uma área de mata. Os próprios moradores, diante da omissão do Estado, recolheram e levaram os corpos até a Praça São Lucas, em meio ao desespero e à indignação. As cenas, que chocaram o país, revelaram um abismo entre a retórica do governo e a brutalidade dos fatos: enquanto as autoridades falavam em “operação controlada”, a população das favelas vivia o terror de uma verdadeira caçada humana.
As contradições da Operação Contenção não param aí. O número de mortos, mais de uma centena, superou o de prisões e o de armas apreendidas, deixando evidente que o saldo da operação foi medido em sangue, não em resultados concretos. Mesmo com todo o aparato mobilizado, o governo transformou a morte em símbolo de eficiência e tentou criminalizar os próprios moradores que recolheram os corpos, sob a alegação de “interferência em cena de crime”.
Na perícia dos corpos, há procedimento conduzido sob forte desconfiança, em meio a uma operação que já nasceu envolta em denúncias de execuções e ocultação de provas. A demora nas perícias e as inconsistências nas versões oficiais reforçam a percepção de que o Estado busca encerrar o episódio rapidamente.
Essa postura reforça o caráter desumano de uma política de segurança que se sustenta na repressão e no medo. A chamada “vitória” da operação, portanto, não está no combate ao tráfico, mas na legitimação de um Estado que faz da violência sua linguagem e da morte sua política pública. Basta pensarmos que no dia seguinte os traficantes dominavam o território e seguiam realizando seus negócios. Que combate ao tráfico é esse?
Leia também
Cláudio Castro é o mandante da Chacina no Rio! Fora Cláudio Castro!
Capitalismo
As facções criminosas como parte de um grande negócio burguês ilegal
Estar contra a operação policial realizada no dia 28 de outubro não pode significar, por outro lado, estar a favor das grandes facções criminosas que ocupam favelas e comunidades e também oprimem, perseguem e matam trabalhadores.
É necessário estabelecer um limite inequívoco entre estar contra as ações ilegais do Estado, que atua como se todos os moradores das favelas e comunidades fossem parte dessas facções ou que, no mínimo, olha com desprezo para a vida desses moradores, e, por outro lado, reconhecer a real necessidade de enfrentar o crime organizado.
O tráfico de drogas, assim como o jogo do bicho, é um grande negócio burguês, capitalista e ilegal. Ele movimenta bilhões de dólares todos os anos e, por ser ilegal, gera monopólios armados para defender sua produção, rota de transporte, distribuição e varejo.
Os vários grupos armados que defendem esses negócios se armam não para enfrentar a polícia, isso é uma eventualidade que esses grupos buscam evitar, mas para disputar o mercado entre si. O enfrentamento com o Estado ocorre apenas quando inevitável, já que muitas vezes esses grupos se infiltram ou corrompem agentes públicos.
Disputa de mercados
O verdadeiro motivo pelo qual esses grupos se armam é que a disputa de mercado entre eles não se resolve pelos mecanismos “normais” da economia capitalista, mas por conflitos armados que vão desde o controle da matéria-prima até a venda.
Sua relação preferencial com o Estado e seus agentes de segurança é a de negociar, participar e até cooperar com ele. Não são raros os casos de coronéis da PM que ligam para “chefes” do tráfico pedindo favores e ajuda em investigações. Tampouco são incomuns os políticos que recebem autorização para fazer campanha em determinadas comunidades, em detrimento de seus adversários.
No outro polo dessa relação, a evolução desses grupos – que no Rio de Janeiro controlam cerca de 30% do território da cidade –, especialmente com o surgimento das milícias, gerou uma diversificação dos negócios nesses territórios. As facções criminosas passaram não apenas a controlar pontos de venda de drogas, mas também a extorquir moradores. Serviços como transporte, gás, internet e TV a cabo passaram a ser controlados pelas facções, que obrigam os moradores a consumir produtos e serviços das “empresas” que dominam o território, cobrando preços superiores aos do mercado em geral.
Ao mesmo tempo em que extorquem e oprimem uma parte dos moradores das favelas e comunidades, as facções criminosas disputam o melhor e mais destemido da juventude pobre.
O caso do Marcinho VP, do Morro Dona Marta, que uma vez afirmou “vocês querem que eu seja gari, eu quero ser desenhista”, são exemplos visíveis de que parte dos jovens que ingressam no tráfico o faz por falta de oportunidade (desemprego, falta de acesso a lazer, educação e saúde de qualidade), por revolta social e porque a burguesia prefere mil vezes que esses jovens estejam no tráfico do que em uma organização política que questione o sistema e lute por transformações profundas.
Nunca é demais lembrar que o tráfico cumpriu um papel fundamental na desarticulação dos movimentos sociais nas comunidades e favelas, expulsando e assassinando aqueles que tentavam organizar os moradores de forma independente, tanto do Estado quanto das próprias facções.
Fora Cláudio Castro
A ilegalidade e a inutilidade da operação

Foto Tomaz Silva/Agência Brasil
Reconhecer que é necessário combater as grandes facções criminosas não significa, de forma nenhuma, validar a maneira como o governador Cláudio Castro (e, de quebra, todos os governos, inclusive os do PT na Bahia e no Ceará) afirma querer combatê-las.
As grandes operações policiais em bairros pobres, comunidades e favelas, o aumento do número de policiais e a criação de novos grupos armados, como guardas municipais que se transformam em polícias, servem, na prática, para ampliar a brutalidade do Estado contra os pobres. Em última análise, criminalizam parcelas inteiras da população e legitimam o uso indiscriminado da força.
A legitimação de ações como a ocorrida no dia 28 significa dar à polícia o poder de juiz, júri e carrasco, inclusive o poder de estar acima da lei, atuando com quaisquer métodos contra qualquer um.
Mas o pior é que, além de violentas, ilegais, custosas e moralmente condenáveis, essas operações são inúteis para conter a violência e o crime. Se megaoperações policiais e chacinas resolvessem o problema, ele já estaria solucionado no Brasil. Não há ano sem chacinas, não há mês sem uma grande operação policial. Todos os anos, centenas de traficantes são mortos, dezenas de “chefões” são presos, e o resultado? Novos traficantes surgem, novos chefes se erguem.
Um negócio lucrativo para a burguesia
Há outro caminho para enfrentar os grandes negócios ilegais: seguir o dinheiro. Fiscalizar grandes contas bancárias, envios ao exterior, o uso de offshores e os mecanismos de lavagem de dinheiro. Esse método atinge o topo da pirâmide do crime, desmontando estruturas complexas e difíceis de recompor.
No entanto, esse tipo de combate não é feito por uma razão simples: todos lucram com o dinheiro ilegal, o sistema financeiro, as grandes construtoras, o mercado imobiliário. O dinheiro sujo, para se legalizar, circula no mercado legal. Além disso, tais mecanismos, se aperfeiçoados, atingiriam também os negócios legais da burguesia, evasão fiscal, fraudes contábeis, movimentações financeiras ilícitas. Para a burguesia, é mais barato montar um espetáculo dantesco do que encarar seus próprios crimes.

Protesto contra a chacina no RJ, em São Paulo Foto PSTU-SP
Saídas
Legalização: uma nova política sobre drogas no Brasil
O Brasil precisa de uma mudança profunda na forma como lida com as drogas. A política atual, baseada na repressão e no encarceramento em massa, apenas alimenta o poder do tráfico e destrói vidas nas periferias.
A legalização das drogas, ao contrário do que dizem seus críticos, é uma proposta de enfrentamento real ao crime organizado e de recuperação do controle social sobre essa economia. Ao transformar o comércio hoje ilegal em uma atividade regulamentada, o Estado poderia controlar a produção e a distribuição e reduziria drasticamente a violência associada ao tráfico. Com a arrecadação desta atividade, poderia investir em saúde, educação, cultura e tratamento público de dependentes químicos.
Legalizar também significa romper com o modelo de exploração que transforma milhares de jovens em “soldados” do tráfico, devolvendo à sociedade o poder de decidir sobre suas próprias políticas de consumo. Com a regulação estatal, o cultivo e a venda devem ser controlados pelo Estado e não pelo mercado para retirar o lucro da equação; as substâncias, controladas; e o uso, acompanhado por centros de saúde especializados, com foco médico, terapêutico e recreativo. A legalização das drogas é uma forma de substituir o medo e a violência por políticas baseadas em direitos.
Desmilitarizar e democratizar as forças policiais, colocando-as sob controle popular

Foto Polícia Federal
A democratização da polícia passa, antes de tudo, por romper com sua estrutura autoritária e hierarquizada, herdada do regime militar. Uma instituição que se organiza sob a lógica da guerra interna e da obediência cega.
A desmilitarização, nesse sentido, é um passo importante: significa unificar as forças policiais sob um marco civil, pôr fim à justiça militar e garantir que os agentes da segurança sejam julgados como qualquer cidadão. Isso abriria espaço para que os policiais deixassem de ser instrumentos de repressão e passassem a atuar como servidores públicos comprometidos com os direitos e as necessidades da população.
Mas a democratização da polícia só será efetiva se vier acompanhada de controle popular. É necessário que a população tenha poder real sobre as decisões e práticas da segurança pública, desde a escolha de delegados e comandantes locais até o acompanhamento e a fiscalização das ações policiais.
Transparência, prestação de contas e direito de organização dos próprios trabalhadores da segurança são medidas fundamentais para romper o isolamento entre polícia e sociedade. Contudo, é preciso reconhecer que nenhuma reforma institucional será suficiente se não se questionar o papel que a polícia desempenha dentro de um sistema voltado à proteção da propriedade e à repressão dos pobres. Democratizar a polícia, portanto, não se trata de “humanizar a repressão”, mas de avançar rumo a um modelo de segurança baseado na participação popular, na igualdade e na superação de um Estado que se sustenta pela violência contra os trabalhadores e as periferias.
Leia também
O que está por trás do discurso do “narcoterrorismo”?
Autodefesa: um debate necessário
A classe trabalhadora, embora seja a força que produz toda a riqueza da sociedade, vive sob a dominação de uma minoria que controla o Estado, a economia e o aparato repressivo. Essa dominação não se mantém apenas pela ideologia e pelas promessas eleitorais, mas principalmente pela força das armas e pela repressão cotidiana. Quando os trabalhadores se mobilizam por seus direitos, enfrentam a violência direta do Estado e de grupos armados a serviço da burguesia. Por isso, a autodefesa não é uma escolha abstrata, mas uma necessidade vital para garantir a sobrevivência e a resistência do povo pobre.
A autodefesa nasce da própria experiência de luta dos trabalhadores. Nas greves, os piquetes se organizam para proteger o movimento e enfrentar a repressão; nas ocupações urbanas e rurais, a defesa coletiva garante o direito à moradia e à terra diante da violência policial e demais grupos armados, como o tráfico. Esses exemplos mostram que a autodefesa não é um ato isolado ou individual, mas uma prática coletiva que fortalece a consciência e a organização popular.
Organizar a autodefesa é parte essencial da luta por emancipação. Isso significa construir estruturas de proteção nas comunidades, sindicatos e movimentos sociais, capazes de enfrentar a repressão e assegurar o direito à mobilização. Mais do que resistência, trata-se de um passo político fundamental para que o poder e a força estejam, de fato, nas mãos da maioria trabalhadora.
Continue lendo
Apesar do discurso, Governo Lula repete velha lógica da segurança pública