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Entre o chilique de Musk e a hipocrisia da suposta defesa da soberania do governo: qual a saída para as big techs?

Diego Cruz and Julio Anselmo

9 de abril de 2024
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Um comentário de oito palavras na rede social X (ex-Twitter) desatou uma polêmica que ganhou repercussão internacional. No último sábado, 6, o bilionário Elon Musk, comentou um post do ministro Alexandre Moraes, na própria rede social do qual é dono, acusando o ministro de censura. “Por que você está exigindo tanta censura no Brasil?”, escreveu o bilionário sobre uma mensagem de Moraes.

Não contente, Elon Musk ameaçou reativar as contas bloqueadas por determinação judicial, mesmo que isso causasse prejuízo à empresa e ela tenha que sair do país. Moraes respondeu incluindo o bilionário no inquérito das fake news, e estipulou multa de R$ 100 mil para cada conta reativada. 

A discussão acendeu um enorme debate que tomou a rede social durante todo o final de semana. De um lado, bolsonaristas e a extrema direita ficaram atiçados com o “apito de cachorro”, elegendo Musk como paladino da liberdade de expressão e aliado contra o que vêem ser uma ditadura no país. De outro, Alexandre de Moraes, e representantes do governo Lula, como o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, tal como setores de esquerda, denunciaram o “ataque à soberania” representado pelas ameaças de Musk.

Até o fechamento deste texto, Elon Musk não havia reativado nenhuma conta. O governo e o Congresso Nacional, por sua vez, falam em apressar a regulamentação das redes sociais.

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A hipocrisia de Elon Musk

Há muita especulação sobre o real motivo por trás das ameaças de Musk. Uma das hipóteses aventadas é a de que o bilionário estaria apontando para as eleições norte-americanas, espalhando aos quatro ventos que o Brasil vive uma ditadura com censura generalizada de opositores e que, caso Biden se reeleja, o mesmo aconteceria nos EUA.

O site Intercept aventa motivos ainda mais pragmáticos. Musk estaria de olho nas recém-descobertas reservas de lítio em áreas exploradas pela Vale. O recurso é crucial para a produção e viabilização de seu conglomerado de empresas, como a Space X, a Starlink e, principalmente, a Tesla, sua fabricante de carros elétricos.

Musk: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso.”

Ou pode ser simplesmente que, em meio a disputas geopolíticas e de mercado, Elon Musk tenha acordado de mau humor, quem vai saber? Fato é que sua atitude esfrega na cara de todos o poder das “Big Techs”, espezinhando qualquer conceito de soberania, tal quando, respondendo a um usuário do antigo Twitter sobre pretensões golpistas dos EUA na Bolívia (que também produz lítio), afirmou: “Vamos dar um golpe em quem quisermos! Lide com isso”.

Musk tenta ridicularizar o país sob o hipócrita argumento da defesa da liberdade de expressão, ou, mais concretamente, liberdade de expressão à ultradireita e golpistas cujo objetivo é justamente acabar com as liberdades democráticas, incluindo a de expressão. A hipocrisia fica ainda mais gritante considerando que, desde que comprou o Twitter, vem impulsionando conteúdos de extrema direita, enquanto restringe e censura conteúdos que considere impróprios, como o de denúncias ao genocídio que o Estado de Israel vem perpetrando em Gaza. 

Elon Musk pode parecer um sujeito excêntrico, mas não rasga dinheiro. Prova disso é que não “denuncia” a ditadura chinesa, país onde mantém uma fábrica da Tesla em Xangai. Também não “denuncia” a Arábia Saudita, país  que tem o problemático hábito de esquartejar jornalistas críticos ao regime. Isso porque, na compra do Twitter, Musk recebeu 1,8 bilhão de dólares de um príncipe saudita, que hoje é o segundo maior investidor da rede. Para se ter uma ideia, um usuário do Twitter com apenas 10 seguidores foi condenado à morte por criticar o rei saudita. Cobrado na própria rede, Musk não disse nada.

O poder das Big Techs

Elon Musk é a face mais caricata de um problema mais sério que seus tweets: o poder avassalador das Big Techs. Com o domínio de algoritmos que direcionam conteúdo baseado em informações e hábitos pessoais, mantém um poder talvez sem precedentes dentro de uma indústria na história do capitalismo. Não coincidentemente, o avanço desses algoritmos beneficiaram principalmente o crescimento da extrema direita mundo afora.

Lucram com “discursos de ódio”, um eufemismo para o racismo declarado, o machismo (a proliferação dos conteúdos “redpill” por exemplo), LGBTIfobia e xenofobia, porque isso gera engajamento, logo, mais publicidade e mais lucros. Outra fonte de lucro das big techs é a venda de informações, desde o seu hábito de navegação, ou até mesmo os caminhos que percorre pela rua. 

A Meta, por exemplo, dona do Facebook, Instagram e Whatsapp, coleciona processos de violação de privacidade de usuários (um deles nos EUA se refere ao rastreamento de pessoas mesmo quando estavam desconectadas). Ou de vendas de informações privadas a terceiros. 

Hipocrisia do governo e do STF

Se Musk é hipócrita em se colocar como paladino da liberdade de expressão, o mesmo se pode dizer do governo, do STF e demais setores que afirmam que “bilionário não manda no Brasil”. Enquanto denuncia o ataque à soberania, o governo Lula  vem permitindo, neste exato momento, que a Avibras, uma das poucas empresas de tecnologia e materiais bélicos, seja desnacionalizada e vendida à Austrália. Sem falar nos bilhões de subsídios estatais às montadoras estrangeiras, que superam os investimentos prometidos. Ou a Petrobras, saqueada por investidores em Nova Iorque. Ou mesmo a dívida pública paga a banqueiros e megafundos financeiros internacionais às custas de investimento em saúde e educação.

Bilionários mandam no Brasil. Empresas e fundos estrangeiros dominam o agronegócio, e quase todos os setores da nossa economia, num processo de recolonização que só avança com as privatizações e projetos de PPP’s tocados pelo Governo Lula. Como falar de soberania se parte do centro de São Paulo estava há poucos dias sem luz por conta da Enel, uma empresa italiana que, em meio a disputas acionárias em seu país de origem, vem promovendo um brutal corte de custos?

E isso tudo dentro “da lei” e da Constituição.

Xandão ou Musk?

Por fim, a saída para o problema das Big Techs não está no STF ou no PL das fake news. Nessa briga entre Alexandre de Moraes e Elon Musk, se não podemos escolher “o lado” do bilionário, como certa seita exótica fez, tampouco podemos confiar na Justiça ou no Congresso Nacional. 

Não vamos, evidentemente, sair em defesa da liberdade da extrema direita pregar golpe de Estado. O bolsonarismo cresceu e se fortaleceu se aproveitando, entre outras coisas, dos algoritmos das redes sociais (com financiamento pesado e ação profissional ao contrário da lenda da “espontaneidade” da campanha bolsonarista) num processo que, aliás, ocorreu também em várias partes do mundo. Caso tivesse se consumado a tentativa de golpe, não só perderíamos a liberdade de expressão, como a de organização e mobilização, como em qualquer ditadura. Defender liberdade total e irrestrita a golpista seria defender o fim da própria liberdade, ou apontar uma arma para si mesmo. Neste mesmo sentido, tampouco vamos defender a liberdade para que racistas, machistas, LGBTIfóbicos ou xenofóbicos, e toda a corja da extrema direita, possam difundir suas atrocidades livremente e se fortalecerem.

Ao contrário do que apregoa o bolsonarismo, e agora Elon Musk, não vivemos hoje num regime ditatorial, no sentido de que temos liberdades democráticas, ainda que restritas e sempre mais favoráveis aos ricos. Quem defende uma ditadura é o bolsonarismo e a ultradireita. Neste sentido, defendemos sim a restrição à liberdade de expressão e organização da ultradireita, de golpistas e fascistas, que querem acabar com as liberdades e atacar os trabalhadores e suas organizações, como ocorreu na ditadura militar e nos regimes fascistas e bonapartistas durante a história.

Ao mesmo tempo, Alexandre de Moraes não é nenhum heroi, tampouco digno de qualquer confiança por parte da classe trabalhadora. A mão pesada que hoje se abate contra setores da ultradireita pode, amanhã, se voltar contra os trabalhadores e suas organizações. Como foi, por exemplo, a censura imposta ao PCO, por mais esdrúxulas que sejam as posições desta organização. 

Alexandre de Moraes é, assim como o STF e todas as instituições desse regime, um representante da burguesia. Vale lembrar que ele foi um dos que, recentemente, rejeitaram o vínculo empregatício dos trabalhadores da Uber, garantindo o lucro dessa empresa que faz parte das Big Tech às custas da precarização. E o STF, com Barroso à frente, acabou de dar um calote nos aposentados ao rejeitar a tese da Revisão de Toda a Vida, a fim de ajudar Haddad a cumprir a meta de zerar o déficit.

E essa própria burguesa pretensamente democrática que Moraes e o STF expressam também não é tão contraditória assim à ultradireita, e portanto, não é capaz de enfrentá-la de forma consequente. Vamos lembrar do apoio praticamente unânime ao genocídio sionista em Gaza. Ou do apoio às chacinas e barbárie policial perpetrada país afora, como na Baixada Santista pelo governo “moderado” de Tarcísio.

Um erro nada inocente, mas muito comum, principalmente na imprensa, é igualar a extrema direita aos socialistas. São, por princípio, antagônicos. Se ambos se contrapõem ao atual regime democrático burguês, a ultradireita o faz para impor uma ditadura e o fim de todas as liberdades democráticas. Já os socialistas revolucionários lutam para derrubar esse regime dos ricos, mas para conquistar mais liberdades democráticas, e um outro sistema, mais justo e igualitário, onde os trabalhadores e o povo pobre decidam os rumos do país, e não um punhado de bilionários como é agora, ou meia dúzia de ditadores, como desejam os bolsonaristas.

Dito isto, na medida em que esse atual regime é ameaçado pela ultradireita, é necessário defender as liberdades democráticas que temos hoje, mas sem se comprometer com um sistema cuja existência se define por perpetuar a exploração e a opressão, numa ditadura burguesa disfarçada de democracia.

Tirar as Big Techs do controle dos bilionários

Então, qual a solução para a questão das Big Techs? É impossível enfrentar essas empresas sem bater de frente com os monopólios da Internet. É preciso enfrentar os bilionários como Musk, Zuckerberg, ou Bezos, arrancando esse enorme poder que concentram hoje. A resistência de Elon Musk não é pela liberdade de expressão, porque a própria existência do X, e a forma como ele funciona como negócio, já é uma restrição à liberdade de expressão.

Só tirando dele esse controle, transformando a rede numa verdadeira tribuna pública de debate, transparente, de código aberto, e controlado pelos trabalhadores, é que se poderia falar numa real liberdade de expressão.  E isso passa pela expropriação e estatização das Big Techs, com controle popular, abrindo seus códigos e expondo publicamente os segredos dos algoritmos. Sem violação de privacidade e comercialização de dados.

A Internet e as redes sociais não devem ser, por si só, demonizadas. Como tudo no capitalismo, é a manipulação e o redirecionamento do desenvolvimento tecnológico para o aumento dos lucros e do poder de um punhado de bilionários. Mas, assim como ocorre em qualquer setor da economia, como a indústria farmacêutica, ou a automatização nas fábricas, poderia ser utilizada em benefício da maioria da população, tornando-se ambientes saudáveis e realmente democráticos, e não algo destrutivo, instrumentalizado pela ultradireita e disseminador de uma série de doenças mentais, como a ansiedade. Mas para isso, é preciso não só enfrentar os bilionários, mas destruir o capitalismo e construir um outro sistema.

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