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Entre o feudo e o quartel

Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres

6 de novembro de 2025
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Foto Polícia Federal

A recente plataforma dos governadores do Sul e Sudeste contra a PEC da Segurança Pública reacendeu um velho debate na política brasileira: a tensão entre centralização e autonomia federativa. À primeira vista, parece uma disputa jurídica sobre competências. Mas, por trás dos discursos sobre “democracia” e “autonomia dos estados”, o que está em jogo é o controle político dos instrumentos de repressão do Estado.

Tanto o projeto de centralização proposto pela PEC quanto a reação dos governadores são expressões de uma mesma realidade: o agravamento das contradições sociais e a necessidade crescente de conter, pela força, os efeitos da desigualdade e da crise. A disputa não é entre democracia e autoritarismo, ou entre racionalidade institucional e autonomia federativa. Em ambos os lados, o que está em jogo é o controle do aparato repressivo do Estado — seja pela via da centralização federal, seja pela manutenção dos feudos regionais. O conflito não expressa projetos opostos de sociedade, mas frações da classe dominante disputando quem administra o monopólio da violência estatal.

A PEC e a centralização da coerção estatal

A chamada PEC da Segurança Pública propõe incluir a segurança como direito fundamental e cláusula pétrea da Constituição, além de instituir um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) sob coordenação da União. Na prática, isso significaria ampliar o controle federal sobre as polícias estaduais, padronizar procedimentos e bases de dados e criar mecanismos de gestão e fiscalização centralizados. Em nome da “eficiência”, da “integração nacional” e do “combate ao crime”, a medida reforça a tendência histórica de centralização dos meios de coerção estatal.

Marx e Engels já explicavam, no Manifesto Comunista, que “o Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. A centralização política, nesse sentido, acompanha a centralização do capital. Quando as contradições da sociedade burguesa se agudizam, o poder central tende a concentrar em si os instrumentos de repressão necessários para garantir a ordem e conter as tensões sociais.

Assim, a PEC não representa um avanço democrático nem uma racionalização técnica do sistema de segurança. É, antes, uma resposta de classe à crise social, uma tentativa de reconstruir e unificar o aparato repressivo do Estado diante do risco de explosões populares e da instabilidade política que o aprofundamento das desigualdades tende a produzir.

Os governadores e a defesa dos feudos burgueses

A reação dos governadores de oposição de direita não é progressiva, nem democrática. Ela expressa a resistência das burguesias regionais à perda de poder sobre seus próprios instrumentos de dominação. Controlar as polícias significa, em última instância, controlar a força armada que garante a reprodução das relações de exploração nos territórios.

Como escreveu Engels em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, o Estado surge justamente “para amortecer o choque entre as classes com interesses antagônicos”. Os governadores sabem disso. Em regiões onde a concentração de riqueza convive com favelas, desemprego e violência, a autonomia policial é uma ferramenta política essencial para manter a “paz social” burguesa.

Esse “federalismo da bala” é a forma contemporânea do velho feudalismo político: cada oligarquia regional administra seu próprio braço armado sob o pretexto da segurança pública. Ao se oporem à PEC, os governadores não defendem o povo contra o autoritarismo federal — defendem o direito de continuar administrando, de forma autônoma, a repressão contra os pobres, as greves e os movimentos sociais.

Costuma-se argumentar que os estados do Sul e Sudeste teriam sistemas de segurança mais estruturados, como se essa suposta eficiência justificasse a autonomia. Mas o que vemos é o oposto: são justamente esses estados que concentram algumas das polícias mais violentas e militarizadas do país, responsáveis por chacinas, execuções sumárias e pela repressão cotidiana nas periferias.

O Rio de Janeiro é o exemplo mais acabado de um sistema de segurança falido — com operações policiais que transformam favelas em zonas de guerra e que, mesmo sob comando estadual, é incapaz de reduzir a criminalidade ou garantir segurança à população. Em São Paulo, a política de “tolerância zero” e os altos índices de letalidade policial revelam o mesmo padrão: um modelo de segurança que serve à manutenção da ordem social e à criminalização da pobreza, não à proteção da vida.

Assim, o discurso da “autonomia estadual” encobre a verdadeira função desse aparato: garantir às burguesias regionais o controle direto sobre o instrumento armado da dominação de classe.

O Estado e o monopólio da violência

Marx e Lênin lembram que o Estado não é uma força neutra acima das classes, mas uma “máquina especial de repressão” destinada a garantir a dominação de uma classe sobre outra. O monopólio da violência é, portanto, o núcleo material do poder burguês.

Em “O Estado e a Revolução”, Lênin afirma: “O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. Ele surge onde, quando e na medida em que esses antagonismos não podem ser conciliados.” A centralização ou descentralização do poder repressivo, portanto, não altera sua essência de classe: trata-se apenas de definir quem administra essa máquina.

Em tempos de crise, a burguesia precisa reforçar o controle sobre os corpos e os territórios. A PEC busca centralizar; os governadores, fragmentar. Mas ambos os projetos têm o mesmo objetivo: manter o aparato armado que assegura a continuidade da exploração e da propriedade privada.

Polícias e guardas municipais: o exército interno da burguesia

As polícias estaduais e as guardas municipais são, hoje, o braço armado da burguesia local. São elas que garantem o cotidiano da exploração e a repressão aos pobres, às juventudes negras e aos trabalhadores organizados. São também base social de sustentação política da extrema direita.

A recusa dos governadores em subordinar esses aparatos à União busca preservar essa milícia institucionalizada. A “autonomia policial” que defendem é o direito de manter o terror cotidiano que sustenta a ordem do capital nas periferias. Engels observou que, nas sociedades modernas, “a força pública é o núcleo mais sólido do poder do Estado” — e é exatamente isso que está sendo disputado agora.

Já a Polícia Federal ocupa um lugar particular nesse arranjo repressivo. Apresentada como instituição técnica e voltada ao “combate ao crime organizado”, ela é, na verdade, um dos instrumentos principais de centralização do poder coercitivo do Estado burguês. Seu fortalecimento nas últimas décadas expressa tanto a internacionalização do controle social — sob o discurso da “segurança nacional” e do “combate à corrupção” — quanto a necessidade de disciplinar as próprias instituições políticas e administrativas diante da crise.

A PF é o braço armado do Executivo federal, capaz de intervir sobre governadores, prefeitos e até sobre o próprio parlamento, e cumpre, assim, papel central na manutenção da ordem de conjunto, inclusive com o monitoramento de movimentos sociais e organizações de esquerda.

Centralização ou autonomia: duas faces do mesmo Estado

A disputa em torno da PEC da Segurança Pública revela um Estado burguês cindido, mas funcional: o Governo Federal busca centralizar a repressão em nome da estabilidade nacional; os governadores defendem a autonomia de seus feudos para administrar o mesmo processo em escala local.

Ambos convergem naquilo que é essencial: a defesa da ordem capitalista. Centralização ou autonomia, o resultado é o mesmo — mais repressão, mais militarização, mais violência contra os de baixo. Nenhum desses projetos representa os interesses da classe trabalhadora.

A tarefa dos socialistas não é escolher entre o quartel de Brasília e os feudos estaduais, mas denunciar o caráter de classe de todo o aparato repressivo e lutar por sua destruição revolucionária.

Por uma política socialista diante da crise do Estado burguês

O debate sobre a PEC da Segurança Pública é, na verdade, um sintoma da crise do Estado burguês diante do aprofundamento das contradições de classe. A violência estatal é cada vez mais necessária para sustentar um sistema incapaz de garantir condições mínimas de vida à maioria.

Por isso, nossa alternativa não é a reforma do aparato repressivo, mas sua superação. A verdadeira segurança pública só virá quando os trabalhadores tomarem o poder e dissolverem as forças armadas e policiais do Estado burguês, substituindo-as por milícias populares democráticas, sob o controle direto da classe trabalhadora.

Enquanto isso, nosso papel é denunciar cada tentativa de reforçar a máquina de repressão — seja pela via da centralização federal, seja pela autonomia dos governadores. Não há solução para a violência estatal dentro dos marcos do capitalismo. O que precisamos é preparar a classe trabalhadora para enfrentar o Estado que a oprime, e construir um poder novo, baseado na organização consciente e armada dos explorados.

Referências bibliográficas

-Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
-Marx, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte.
-Engels, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
-Lenin, Vladimir I. O Estado e a Revolução.
-Lenin, Vladimir I. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky.

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